Opinião

O controle da discricionariedade e a autonomia das instituições

Autores

29 de abril de 2020, 13h33

No dia de hoje, o STF, acolhendo ação de mandado de segurança coletivo impetrado pelo PDT, suspendeu a nomeação do Delegado Federal Alexandre Ramagem Rodrigues como Diretor Geral da Polícia Federal. O Supremo Tribunal Federal, já há muitos anos, como se vê no julgamento do Recurso Extraordinário nº 17.126, decidiu que cabe ao Poder Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos requisitos dos atos discricionários.

No particular, são requisitos legais da nomeação do cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, segundo art. 2º-C da Lei nº 9.266/1996, in verbis:

  1. 2o-C. O cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial.
  2.  

Então, a nomeação do cargo de Diretor-Geral está sujeita à escolha do Presidente da República e incide sobre os Delegados de Polícia Federal da classe especial. A escolha é discricionária e, como todo poder discricionário, evidentemente, submete-se ao controle principiológico constitucional.

Essa foi, evidentemente, a intenção do Supremo, que deixou isso claro em várias das passagens da decisão liminar do Ministro Alexandre de Moraes no MS nº 37.097/DF. Segundo o Ministro, “[a] escolha e nomeação do Diretor da Polícia Federal pelo Presidente da República (CF, art. 84, XXV e Lei Federal 9.266/1996, art. 2º-C), mesmo tendo caráter discricionário quanto ao mérito, está vinculado ao império constitucional e legal, pois, como muito bem ressaltado por JACQUESCHEVALLIER, ‘o objetivo do Estado de Direito é limitar o poder do Estado pelo Direito’”. E prossegue argumentando que  “[l]ogicamente, não cabe ao Poder Judiciário moldar subjetivamente a Administração Pública, porém a constitucionalização das normas básicas do Direito Administrativo permite ao Judiciário impedir que o Executivo molde a Administração Pública em discordância a seus princípios e preceitos constitucionais básicos, pois a finalidade da revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem constitucional, inclusive no tocante as nomeações para cargos públicos, que devem observância não somente ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

Nesse particular, endosso o controle da Administração Pública e acrescento as lições do procurador federal Ricardo Marques de Almeida, que defende que “Sob a Constituição de 1988, a aplicação do princípio da moralidade deve partir valorações axiológicas do que é ou não aceitável feitas pela lei, expressão da vontade geral, que faz suas próprias escolhas e ainda põe a salvo, numa legalidade qualificada, as decisões mais fundamentais da República, nos direitos e garantias fundamentais, que estão protegidos inclusive das vontades das maiorias episódicas que se formam, de tempos em tempos, no Parlamento.  Mesmo assim, muitas vezes, a lei consagra cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, que abrem novo espaço de valoração e decisão. Nesse cenário, compete, em primeiro lugar, à Administração Pública densificar os conceitos de prognose, que são aqueles ‘cujo preenchimento demanda uma avaliação de pessoas, coisas ou processos sociais, por intermédio de um juízo de aptidão’ Em outras palavras, o administrador público, mediante critérios técnicos sustentáveis, apontará a solução que, a seu entender, melhor se ajuste à consecução do interesse público. E, embora possa existir possibilidade de decidir em mais de um sentido, cabe apenas ao órgão do Poder Executivo, órgão legitimado pelo voto popular, a escolha”[1].

O problema despertado no caso concreto, que teria violado a impessoalidade, a moralidade e o interesse público diz respeito ao episódio da exoneração de Sérgio Moro do cargo de Ministro da Justiça, que declarou, ipisis litteris:

‘Foi indicado o nome do atual diretor da ABIN (referindo-se ao delegado federal Alexandre Ramagem, posteriormente nomeado pelo Presidente da República para a Diretoria da Polícia Federal), que é até um bom nome dentro da Polícia Federal. Mas o grande problema é que não são tanto essa questão de quem colocar, mas sim porque trocar e permitir que seja feita a interferência política na PF. O presidente me disse mais de uma vez, expressamente, que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele que ele pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência, seja diretor-geral, superintendente e realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas. Imaginem se durante a própria Lava Jato, o Ministro, Diretor-Geral ou a então Presidente Dilma ficassem ligando para o superintendente em Curitiba para colher informações sobre as investigações em andamento. A autonomia da PF como um respeito a aplicação a lei seja a quem for isso é um valor fundamental que temos que preservar dentro de um Estado de Direito O presidente me disse isso expressamente, ele pode ou não confirmar, mas é algo que realmente não entendi apropriado. Então o grande problema não é quem entra mas porque alguém entra. E se esse alguém, a corporação aceitando substituição do atual Diretor, com o impacto que isso vai ter na corporação, não consegue dizer não para o Presidente a uma proposta dessa espécie, fico na dúvida se vai conseguir dizer não em relação a outros temas’

Por sua vez, declarou o Presidente da República, também em 24/4/2020:

Sempre falei para ele: ‘Moro, não tenho informações da Polícia Federal. Eu tenho que todo dia ter um relatório do que aconteceu, em especial nas últimas vinte e quatro horas, para poder bem decidir o futuro dessa nação’

Pois bem. O problema, aqui, não estaria na pessoa do Delegado Federal Dr. Alexandre Ramagem Rodrigues, que preenche absolutamente todos os requisitos legais e constitucionais para o cargos, incidindo sobre ele ainda a presunção constitucional da inocência tão abalada pelas decisões que inverteram o princípio da presunção constitucional da inocência, antecipando a execução da pena para a segunda instância. O nome, segundo o ex-Ministro, é um “bom nome dentro da Polícia Federal”.

A decisão, pelo que me pareceu, está na intenção do indicando, o Presidente da República, o que viciaria qualquer ato seu. Segundo ainda o ex-Ministro, “o grande problema é que não são tanto essa questão de quem colocar, mas sim porque trocar e permitir que seja feita a interferência política na PF”.

Então, a questão que se coloca não é o controle da finalidade do ato administrativo, mas definir o conteúdo jurídico da autonomia constitucional de instituições de Estado, como a Polícia Federal, e por que não, a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal, carreiras irmãs (art. 29 do ADCT), que, cada um em sua medida, adotam costumes como a realização de listas tríplices para escolhas de seus chefes.

O atual Procurador-Geral da República não foi eleito por seus pares em lista tríplice, que não é requisito legal para sua nomeação, que tampouco foi questionada no STF. Do mesmo modo, não o foi a nomeação do Advogado-Geral da União ou do antigo Diretor-Geral da Polícia Federal.

Ao contrário do que se decidiu no caso da nomeação de Lula para o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil (MS nº 34.070/DF) ou de Cristiane Brasil para o cargo de Ministra do Trabalho (McRcl nº 29.580/DF), em que se deu dimensão ao desvio de finalidade ou ao conteúdo da moralidade administrativa, o julgamento do caso Alexandre Ramagem dará dimensão da autonomia da Polícia Federal – e de outras carreiras de Estado — e da extensão dos poderes do Presidente da República. Nos casos de Lula e Cristiane Brasil, o problema residia nos nomeandos. No caso de Ramagem, pelas declarações transcritas na decisão, não é o caso.

Portanto, o desvio de poder é o manejo de uma competência em descompasso com sua finalidade. No caso, a competência é de nomear. A finalidade é a boa gestão da PF. E tudo isso sob a presunção constitucional de inocência. É inegável, portanto, que o STF está definindo um direito de natureza organizacional, de interesse de corporações, que até então era revelado por emendas constitucionais, como as EC nº 19/1998, nº 45/2004, nº 74/2013 e nº 80/2014). O julgamento, certamente, será paradigmático para a República. 


[1] ALMEIDA, Ricardo Marques de. Primeiras considerações sobre o conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2020. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37652/primeiras-consideracoes-sobre-o-conteudo-juridico-do-principio-da-moralidade-administrativa. Acesso em: 29 abr 2020.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!