Opinião

A revogação da MP 905/2019 e a correção monetária na Justiça do Trabalho

Autor

  • Manuela Cristina Fernandes Leite

    é advogada trabalhista especialista em Direito e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP-SP) e mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

29 de abril de 2020, 11h33

O presidente da República anunciou no último dia 20 a revogação da MP 905/2019, em movimento acordado entre o governo e o Senado Federal, que não teria tempo hábil para discutir e votar o projeto de lei em conversão aprovado pela Câmara dos Deputados.

Polêmico, o texto da Medida Provisória que se propôs a institucionalizar o chamado "contrato de trabalho verde e amarelo" trouxe à tona debates relacionados à flexibilização de direitos trabalhistas para trabalhadores em busca do primeiro emprego — entre 18 e 29 anos e para maiores de 55 anos.

Em seu bojo, a MP 905/2019 trazia também significativa alteração nos artigos 870, § 7º, e 883, caput, da CLT: a adoção do IPCA-E como índice de correção dos créditos trabalhistas e dos juros de mora da caderneta de poupança.

A nova redação dada aos artigos da CLT vinha na esteira de longo embate jurisprudencial na Justiça do Trabalho sobre a inaplicabilidade da TR como índice de correção monetária dos créditos trabalhistas, o que já se alongava desde agosto de 2015, com o julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade nº 479-60.2011.5.04.0231 pelo TST, e não havia se resolvido com a Reforma Trabalhista de novembro de 2017 (que voltou a reforçar a aplicação da TR).

Em um verdadeiro jogo de "empurra-empurra", os tribunais superiores não se pronunciaram em definitivo com eficácia erga omnes e caráter vinculante sobre qual o índice de correção aplicável aos créditos trabalhistas. Enquanto o TST insiste na inconstitucionalidade da TR por arrasto ao entendimento consolidado nas ADIs dos Precatórios do STF (ADIs nº 4357 e 4425), o STF não soa unânime em concordar com esse entendimento. Basta lembrar que o ministro Dias Toffoli havia, em outubro de 2015, concedido liminar à Fenabam para suspender a aplicação do IPCA-E como índice de correção monetária aos créditos trabalhistas (Rcl nº 22.012).

Mais recentemente, em fevereiro de 2020, o ministro Gilmar Mendes deu provimento a recurso extraordinário ora em sede de agravo regimental para determinar que o TST revisse acórdão que determinou a aplicação do IPCA-E, eis que a conclusão daquele Tribunal "a respeito da utilização do IPCA-E ou da TR sobre débitos trabalhistas se fundou em errônea aplicação da jurisprudência desta Corte (STF), cujos julgados no Tema 810 e na ADI 4.357 não abarcam o caso concreto para para lhe garantir uma solução definitiva" (ARE nº 1.247.402).

Nesse cenário, aguarda-se o julgamento de duas Ações Diretas de Constitucionalidade (nº 58 e nº 59) pelo STF, ambas de relatoria do ministro Gilmar Mendes e pautadas para a sessão do dia 14 de maio.

As ADCs, cujo cerne é a declaração de constitucionalidade do artigo 879, § 7º, da CLT, com redação dada pela Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), ou seja, pela aplicação da TR, teriam perdido o objeto caso a MP 905/2019 tivesse sido convertida em lei pelo Congresso Nacional. Esse é o entendimento pacífico do próprio STF: não há juízo de constitucionalidade em ADI ou ADC sobre norma revogada.

Mas a revogação da MP 905/2019, que teria perdido vigência, de todo modo, caso não tivesse sido aprovada pelo Senado Federal até 20 de abril, revive o índice adotado pela Reforma Trabalhista (TR) e, novamente, "joga a bola" para o Judiciário sobre o tema. A TR é ou não é o índice adequado e constitucional para correção dos créditos judiciais trabalhistas? Se não é, seria o IPCA-E o mais adequado? Pelo sim e pelo não, a aplicação do índice de correção modulado é o mais acertado [1]?

É evidente que a pauta do STF pode vir a ser prejudicada pela situação de excepcionalidade que a pandemia do coronavírus (Covid-19) impôs a todo o Judiciário brasileiro. Bem como é possível que a MP 905/2019, em nova roupagem, possa ser reeditada a qualquer momento pelo presidente da República. Mas é justamente esse quadro de incerteza sobre os critérios de correção monetária na Justiça do Trabalho que precisa ser resolvido com urgência.

Enquanto o mundo se prepara para o que os especialistas têm previsto como a maior recessão econômica desde 1929, as condenações trabalhistas, no Brasil, seguem sendo um poço de dúvidas e obscuridade.

O FMI estima um encolhimento de 5,3% na economia brasileira em 2020 [2]. O próprio Bacen reviu as projeções da inflação de 2020 a 2022, às quais se atrelam intrinsecamente os índices IPCA, IPCA-15 e IPCA-E [3]. A OIT, por sua vez, anuncia a alarmante perda de 25 milhões de empregos no mundo em razão da pandemia da Covid-19 [4].

Não por acaso, a palavra de ordem para as relações trabalhistas e econômicas no país, para o atual momento e para os futuros, deveria ser previsibilidade. O princípio da segurança jurídica, ancorado no texto da Constituição Federal de 1988, precisa de um desdobramento efetivo e prático.

O incessante apelo por socorro e por soluções à crise generalizada gerada pela pandemia e pelo isolamento social ecoado pelos empregadores país afora não demanda apenas medidas para manutenção dos empregos no presente, mas por políticas sustentáveis para manutenção desses empregos no futuro, inclusive para cobrir a garantia provisória de emprego prevista pela MP 936/2020.

De nada adiantará se esse socorro não tirar da incerteza a provisão financeira dos empregadores, cujos débitos judiciais trabalhistas estão cercados de obscuridade entre a aplicação de um índice de correção monetária e outro, numericamente bem distantes entre si.

Se vierem, virão em boa hora os julgamentos das ADCs nº 58 e nº 59. Se não vierem, resta aguardar a reedição da já falecida MP 905/2019 e a atuação consciente e célere do Congresso Nacional para conversão em lei. Se não como medida de lídima justiça, como citam em geral as petições, mas como medida de previsibilidade econômica e judicial em tempos de grande instabilidade social.

 

[1] Vide, por exemplo, a decisão da 4ª Turma do TST, no RR-10260-88.2016.5.15.0146, sob relatoria do Ministro Caputo Bastos, publicado em 01/11/2018: "(…) esta colenda Turma decidiu, por maioria, adotar o entendimento de que o IPCA-E somente deverá ser adotado como índice de atualização dos débitos trabalhistas no interregno de 25.03.15 a 10.11.2017, devendo ser utilizado a TR como índice de atualização dos débitos trabalhistas no período anterior a 24.03.2015 e posterior a 11.11.2017 (no termos do artigo 879, § 7º, da CLT). Recurso de revista de que se conhece e a que se dá parcial provimento".

[2] International Monetary Fund. Chapter 1: The Great Lockdown, in World Economic Outlook. Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/04/14/weo-april-2020, acessado em 21 de abril de 2020.

[3] Banco Central do Brasil. Relatório de Inflação, volume 22, nº 1, Brasília, março/2020.

[4] Nações Unidas Brasil. OIT: quase 25 milhões de empregos podem ser perdidos no mundo devido à COVID-19, 30 de março de 2020. Disponível em https://nacoesunidas.org/oit-quase-25-milhoes-de-empregos-podem-ser-perdidos-no-mundo-devido-a-covid-19/, acessado em 21 de abril de 2020.

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    é advogada trabalhista, especialista em Direito e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP-SP) e mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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