Opinião

E quando os bancos ficam doentes?

Autor

  • Felipe Herdem Lima

    é mestre em Direito da Regulação pós-graduado em Direito Empresarial autor dos livros: Liquidação Extrajudicial e seu devido processo administrativo Direito Bancário: Conceitos básicos Sistema Financeiro Nacional Contemporâneo: regulação e desafios; Resolução Bancária: Aspectos controversos e Novas Tendências do Sistema Financeiro Nacional; e sócio do escritório Herdem & Latini Advogados.

29 de abril de 2020, 13h34

Em tempos em que discutimos o melhor tratamento e o remédio mais eficaz para a pandemia que estamos enfrentando, a pergunta que fica é: e se os bancos ficarem doentes? Será que o Banco Central do Brasil dispõe de uma medicação atual e de um aparato cirúrgico capaz de evitar uma possível "doença" que circunda o cenário econômico delicado que presenciamos. Em outras palavras, será que o Bacen possui contraceptivos eficientes ou medidas de intervenção de emergência que possam de alguma forma prevenir ou equalizar o risco de insolvência?

Desde que Alexander Fleming revolucionou o mundo com a descoberta da penicilina, motivado pelo fato de encontrar uma forma de reduzir o sofrimento dos soldados da Primeira Guerra que tinham suas feridas infectadas, impondo dor e por tantas vezes um processo ainda mais acelerado em direção à morte, a medicina abriu portas para um novo mundo, surgiram indústrias que se passaram a dedicar à produção de penicilina e outros antibióticos responsáveis com a qualidade de vida para pessoas que sofriam de tuberculose, pneumonia, meningite, sífilis, entre outras infecções. Entretanto, somente em 1940 a penicilina foi utilizada pela primeira em um paciente humano, um policial inglês vítima de vítima de grave infecção sanguínea. A partir daí, o mundo passava a conhecer e desfrutar de uma arma absolutamente vital à vida e existência.

Todavia, como quase tudo na vida é mutável, a bactéria staphylococcus aureus, enfrentada à época por Fleming, sofreu mutações ao longo das décadas, criando resistência à penicilina, obrigando a comunidade científica a estar sempre em constante alerta e estudo para evitar novas disseminações de doenças, mediante a criação de novos tratamentos e substâncias.

Essa analogia à medicina apenas demonstra que o Direito tem os mesmos objetivos, ou seja, em geral parte-se de uma necessidade coletiva de se proteger um bem relevante para a coletividade mediante um aparato regulatório não parando por aí. A comunidade jurídica deve estar sempre atenta à dinamicidade da sociedade, que cada vez mais se movimento de forma célere, impulsionada por diversos motivos, como, por exemplo, tecnologia, globalização, etc.   

No Sistema Financeiro Nacional (SFN) a lógica é igual. Explico: como difundido pela doutrina, a coletividade deve gozar de um SFN saudável e seguro, principalmente pelo papel primordial exercido pelos bancos na economia de um país papel que ficou visível com a crise de 1929. Para tanto, e devido à importância desse setor, foram criadas regras no mundo e no Brasil que a visam assegurar a proteção de quem participa desse setor. Todavia, o SFN é extremamente sensível a mudanças impulsionadas por diversos fatores, fato que merece especial atenção dos reguladores para evitar a "resistência" das regras já criadas para evitar crises e "doenças" no setor, exigindo, portanto, do regulador constante estudo.

No caso brasileiro, a necessidade de criação de "medicamentos" para a proteção do SFN teve seu início com a crise cafeeira, na década de 1860, que levou a quebra de diversas instituições financeiras, criando um sinal amarelo para o legislador. A partir daí, criaram-se diversas regras específicas para situações de crises bancárias, passando desde a exigência de aprovação governamental para o estabelecimento de sociedades anônimas (Lei 1.083, de 22 de agosto de 1860), pelo decreto nº 3.309, de 20 de setembro de 1864, que retirou a submissão dos bancos à legislação das falências ordinárias, até a criação da Lei n° 6.024/74, de 13 de março de 1974, vigente até hoje, criando o regime de intervenção e o de liquidação extrajudicial.

Diante desse cenário, é de se esperar a seguinte pergunta: será que uma lei de 1974, promulgada em um período político instável de nossa história, ainda é capaz de proteger de forma eficiente o Sistema Financeiro Nacional atual, com todas suas peculiaridades, muitas delas originadas mediante a experiência de crises, avanços tecnológicos e novos desafios criados pela dinamicidade da sociedade atual? A assertiva aqui é clara: o mecanismo criado em 1974 não encontrou fatores que criaram "resistências" ao aparato regulatório vigente?

Infelizmente, acredito que sim. Nesse sentido, e partindo do ponto da insolvência bancária, apesar de a Lei n° 6.024/74 ter criado os regimes de intervenção e liquidação, os remédios criados não são mais suficientes para tratar o problema de insolvência. Como exemplo do que está sendo afirmado, utilizo-me do regime de intervenção.

Assim, em se tratando do regime de intervenção (artigo 2º), existe a possibilidade de o regime ser decretado nas hipóteses de: I) a entidade sofrer prejuízo, decorrente da má administração, que sujeite a riscos os seus credores; II) forem verificadas reiteradas infrações a dispositivos da legislação bancária não regularizadas após as determinações do Banco Central do Brasil, no uso das suas atribuições de fiscalização; e III) a hipótese de ocorrer qualquer dos fatos mencionados nos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945 (lei de falências), com possibilidade de evitar-se a liquidação extrajudicial. Frise-se, por oportuno, que o regime de intervenção visa reorganizar instituições financeiras irregulares ou a beira da insolvência, com a nomeação de um interventor pelo Bacen, com plenos poderes de gestão, suspendendo ainda o mandato dos administradores e conselheiros fiscais, para a eliminação das irregularidades que motivaram a decretação do regime.

Olhando de forma superficial a medida de intervenção parece salutar, entretanto ao nos depararmos sobre as peculiaridades do regime encontramos a primeira falha, qual seja, a decretação do regime de intervenção interrompe o funcionamento normal da instituição, suspendendo a exigibilidade dos depósitos e das obrigações vencidas. Ora, como resolver um problema de insolvência paralisando a atividade da instituição? Diante desse cenário, é de se concluir que em função do regime suspender a exigibilidade dos depósitos e das obrigações vencidas à época da decretação, é muito pouco provável que os depositantes e investidores, depois de superada a crise que determinou a Intervenção, voltem a manter negócios com a instituição.

Logo, em razão da paralisação das atividades da instituição, o tempo demonstrou que a intervenção não possibilitava a normalização dos negócios e a consequente recuperação da empresa, fato que levou o governo, em 1987, a instituir o Regime de Administração Especial Temporário (R.A.E.T.) por meio da edição do Decreto-Lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, em que a decretação não altera o curso regular dos negócios da instituição.

Com todo respeito à doutrina, que deveria estar se pautando em novos instrumentos regulatórios para a solução deste problema, ainda existe quem discuta que o modelo de intervenção administrativa teria sido substituído pelo novo regime. Alega-se que o Decreto-Lei que instituiu o R.A.E.T., por ter criado um regime mais racional, não alterando o curso regular dos negócios da instituição financeira, seria incompatível com o regime de intervenção. De outro lado, há o entendimento de que a subsistência paralela dos regimes, em função da aplicação da responsabilidade solidária dos controladores prevista em ambos regimes.

Portanto, diante da relevância da atuação bancária em um cenário econômico complexo como o atual, é natural a criação de regras e mecanismos de atuação que forneçam alguma proteção aos participantes do setor. Assim, apesar da existência de diferentes correntes teóricas para a teoria da regulação, o fato é que, diante das crises vivenciadas no século passado e neste século, é forçoso reconhecer a existência de imperfeições de mercado que impedem o seu normal funcionamento, dependendo, portanto, de um aparato regulatório para a correção de falhas que, por sua vez, possam surgir. É preciso focar nos avanços "medicinais" dos aparatos regulatórios, afinal banco também fica doente.

Autores

  • é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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