Opinião

A assessoriedade administrativa do Direito Penal em tempos de Covid-19

Autor

  • Chiavelli Facenda Falavigno

    possui estágio pós doutoral em Política Legislativa Penal pela Universidade de Málaga é doutora em Direito Penal pela USP professora Adjunta de Direito e Processo Penal da UFSC.

29 de abril de 2020, 15h16

Nos últimos anos, é recorrente o debate acadêmico a respeito da assessoriedade [1] (ou acessoriedade, a depender da corrente adotada) administrativa do Direito Penal. O uso de normas em branco e demais técnicas de reenvio se dá com proeminência na regulação dos chamados bens jurídicos coletivos ou difusos, como o meio ambiente e as relações econômicas [2]. Há, contudo, outra área em que, por questões de competência regulatória e de especialização técnica necessária, ditas regras administrativas também exercem importante papel na construção dos tipos: a saúde pública.

Em obra que publiquei recentemente sobre o tema [3], pude constatar esse fenômeno na Lei nº 11.343, chamada Lei de Drogas, que tutela — ainda que sob severas críticas a ideia de saúde pública. Contudo, a atual pandemia do coronavírus nos propõe um cenário bastante instigante nessa seara, trazendo à luz diversos artigos do Código Penal de pouca aplicação, os quais fazem uso em larga escala de dita assessoriedade. O principal deles, a nosso ver, seria o 268, que criminaliza a conduta de "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".

Essa 'determinação do Poder Público" hoje pode ser preenchida por diversas normativas legais e infralegais. A Lei federal nº 13.979 já alterada por diversas medidas provisórias e complementada pelo Decreto 10.282, que define serviços essenciais não apenas define, em seu artigo 2º, as medidas de enfrentamento à pandemia como o isolamento e a quarentena , mas outorga, em seu artigo 3º, parágrafo 7º, ao Ministério da Saúde e aos gestores locais de saúde em alguns casos, após autorização do primeiro a competência para sua adoção.

Na sequencia, a Portaria nº 356 do Ministério da Saúde, para além de suas próprias determinações, outorga, em seu artigo 3º, parágrafo 6º, e em seu artigo 4º, parágrafo 1º, aos Secretários de Saúde locais a competência para adoção de medidas de isolamento e quarentena, respectivamente.

Por fim, a Portaria Interministerial nº 5, do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde conjuntamente, estabelece a conexão entre a norma penal e suas regulamentações administrativas, trazendo expressa a possibilidade de responsabilização penal em seu artigo 3º e elencando, em seu artigo 5º, os artigos 268 e 330 do Código Penal como passíveis de incidência no contexto de descumprimento. Aqui, deixa-se clara a existência de uma norma penal em branco própria, heterônoma ou stricto sensu, ou seja, passível de complementação por regras inferiores à lei, e todos os problemas que delas decorrem…

A partir daí, estados e municípios também passam a emitir suas normativas. Apenas em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, conforme estudo realizado por Alexandre Wunderlich e equipe [4], são oito decretos vigentes, quatro estaduais e quatro municipais Decretos Estaduais nº 55.128/2020, nº 55.130/2020, nº 55.135/2020 e n.º 55.149/2020 e Decretos Municipais nº 20.505/2020, nº 20.506/2020, nº 20.514/2020 e nº 20.531/2020.

A nosso ver, o artigo 330 teria uma aplicação menor, não apenas por exigir ordem específica de funcionário público a determinado sujeito, mas também por ter aplicação apenas subsidiária no caso de ordens que já cominem, por determinação legal ou judicial, suas próprias sanções na hipótese de descumprimento.

Não é o caso, no entanto, do artigo 268, que, mesmo sendo um delito de Juizado Especial e comportando, portanto, uma série de acordos, hoje se encontra suscetível de ser complementado por infindáveis normas administrativas, tendo em vista a ausência de delimitação doutrinária ou legal sobre o que pode ou não ser considerado "determinação do poder público" e quais órgãos estariam aptos a fazê-la. Podemos observar, em um primeiro momento, possíveis violações à legalidade em termos de competência para criação de tipos e taxatividade da norma  e à igualdade de aplicação da lei penal que passou a ter seu conteúdo definido por normas de vigência local.

Ainda, em que pese a divulgação midiática, a possibilidade de erro sobre o conteúdo e a vigência das regulações e, por consequência, da conduta penalmente proibida, é muito grande, sobretudo no caso de remissões em cadeia como esta. Se é difícil mesmo para os operadores do direito conhecer, por vezes, quais normativas podem complementar o tipo, compreender seu conteúdo e acompanhar suas constantes reformas bem como saber quais ainda estão ou não em vigor , o que se dirá para o destinatário cidadão comum. Muitas vezes, mesmo aplicativos que deveriam auxiliar e facilitar a divulgação dos decretos não têm o condão de acompanhar de forma satisfatória suas mudanças e períodos de vigência. Além disso, é constante a contradição entre regulações federais, estaduais e municipais, ou mesmo entre o discurso de membros de cada governo, o que torna o cenário ainda mais caótico.

Em que pese não caiba responsabilidade penal da pessoa jurídica nessa seara, o empresário gestor pode vir a ser enquadrado em caso de descumprimento de medidas como a quarentena.

Ainda, sabe-se que mesmo a imposição de multas em sede de acordos próprios do Juizado Especial pode vulnerar ainda mais pessoas que já se encontram em frágil situação econômica.

Em matéria de assessoriedade e dogmática penal, cabe perguntar se tais obstáculos intransponíveis não seriam um bom indicativo do mau uso do Direito Penal nessa seara. Em termos de política criminal, cabe apontar que, novamente, a via punitiva do Estado é chamada a outros fins diversos dos quais se propõe, ignorando-se perspectivas de ultima ratio, fragmentariedade e subsidiariedade.

 


[1] Adotamos nesse texto a perspectiva de que o direito penal assessora, e não é mero acessório, do direito administrativo, conforme conceituação proposta por Helena Lobo da Costa.

[2] Sabe-se das dissidências existentes nessas classificações, sobretudo na ideia das relações econômicas como bem jurídico de diversos tipos penais.

[3] FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. "A deslegalização do direito penal: leis penais em branco e demais formas de assessoriedade administrativa no ordenamento punitivo brasileiro". Florianópolis: EMAIS, 2020.

[4] Atualizado até 2/4/2020.

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  • Brave

    é professora adjunta de Direito e Processo Penal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-doutora em Política Legislativa Penal pela Universidade de Málaga e doutora em Direito Penal pela USP.

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