Direito Civil Atual

A exceção de inseguridade e a tutela do devedor em tempos de Covid-19

Autores

  • Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes

    é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza) doutor em Direito Civil/Romano (USP) livre-docente em Direito Romano (USP) professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

  • Luca d'Arce Giannotti

    é graduando em direito (USP) ex-bolsista da FAPESP (com pesquisa sobre a exceção de inseguridade) e membro associado do Instituto de Estudos Culturalistas.

29 de abril de 2020, 12h14

Antes mesmo de uma maior difusão das notícias acerca da pandemia de Covid-19 no Brasil, boa parte da doutrina empenhou-se em antecipar quais seriam os efeitos jurídicos da crise no direito civil patrimonial (em especial a partir da comparação com o atuar de sistemas jurídicos que tradicionalmente são modelos para nós, como a Itália e a Alemanha, e que foram impactados antes). Debate-se, dentre várias outras questões, acerca da eventual aplicabilidade da onerosidade excessiva, da base do negócio jurídico, da impossibilidade da prestação e, em sentido mais amplo, da teoria da imprevisão.

Há, contudo, um instituto que, mesmo antes, vem sendo esquecido pela maioria dos civilistas1: a “exceção de inseguridade”, tal qual positivada no artigo 477 do Código Civil (“Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la”). A função do instituto, como veremos, situa-o dentre as técnicas criadas pelo direito civil de proteção da parte contratual (foi inserido no Código Civil de 1916 durante as discussões na Câmara do Projeto Beviláqua).

I. A exceção de inseguridade e os limites à vinculação do devedor
Todas as teorias e institutos acima mencionados buscam responder a duas perguntas: (i) até que ponto o devedor é obrigado a realizar a prestação? e (ii) em quais condições ele é responsável pelo inadimplemento? Restrita, em razão do escopo desse artigo, a um contrato bilateral2, a solução dada pelo legislador situa-se entre dois extremos3.

De um lado, o devedor poderia nunca se ver liberto de sua obrigação, estipulando-se um dever secundário substitutivo aplicável a qualquer situação em que o dever principal não fosse cumprido. Ou seja, o devedor é, em última instância, obrigado a pagar o equivalente pecuniário da prestação, não importando qual seja a causa do inadimplemento. Nesse sistema, por exemplo, caso o bem seja destruído por um terremoto, o devedor ainda seria responsável pelo incumprimento. Era o regime do direito inglês anterior ao século XIX (o famoso leading case de Paradise v. Jane era tido como um princípio do common law).

De outro, o devedor se liberaria com muita facilidade (a mera culpa, por exemplo, afastaria responsabilidade do devedor ou a mera dificuldade de adimplir extinguiria a obrigação), mas se estabeleceria a autonomia das obrigações criadas pelo contrato, como ocorria, em certa medida, no direito romano tardio. Nesses casos, o credor é o prejudicado: mesmo não recebendo a prestação do devedor, deve cumprir sua obrigação. Nesse sistema, por exemplo, caso o vendedor não consiga adquirir a coisa a ser entregue por um preço razoável, sua obrigação se extinguiria; mas o comprador ainda seria obrigado a pagar o preço.

No meio do caminho, encontramos parte maciça dos sistemas jurídicos contemporâneos4.

É o caso do direito brasileiro, no qual solução passa por três institutos fundamentais: a impossibilidade (artigos 234 e 393), a resolução por inadimplemento (artigos 474 e 475) e a resolução por onerosidade excessiva (artigos 478 a 480). A primeira, completamente repensada nos últimos tempos no exterior5, ainda carece de um tratamento doutrinário adequado no direito brasileiro. Por outro lado, as outras duas são institutos com ampla produção a respeito.

Nos contratos bilaterais, as três figuras fundamentam-se no sinalagma, isto é, em certa interdependência de vinculação e finalidade entre as obrigações que surgem desses contratos6: o devedor não é mais obrigado a prestar porque a outra parte também não é (impossibilidade), ou porque a outra parte inadimpliu (resolução por inadimplemento), ou, ainda, porque prestar supera a dificuldade tolerada frente à vantagem esperada (resolução por onerosidade excessiva)7.

Se o sinalagma também visa a garantir que ambas as obrigações sejam adimplidas, ele deve atribuir às partes outros instrumentos além da extinção da relação jurídica8. Aqui entram as exceções sinalagmáticas: elas funcionam para preservar o vínculo jurídico e proteger uma das partes dos riscos do contrato, sempre tendo por fim garantir o cumprimento de ambas as obrigações.

E uma delas é justamente a exceção de inseguridade. Conforme o artigo 477, em determinadas situações de insegurança (objetiva) sobre adimplemento da outra parte, o devedor pode se recusar a prestar. Isso quer dizer que o devedor pode opor (ao exercício da pretensão ao cumprimento) um poder que o paralisa, prevalecendo a eficácia deste sobre aquele9. Para afastá-lo, o credor pode constituir uma garantia de valor equivalente ao crédito do devedor ou aceitar que sua dívida se torne imediatamente exigível. Ou seja, adianta-se o vencimento do crédito do que opôs a exceção, momento em que outra figura, a exceção de contrato não cumprido, começa a protegê-la de qualquer cobrança do credor.

Os elementos necessários para a formação desse poder são muito mais amplos do que pode parecer à primeira vista.

II. Condições para o exercício da exceção de inseguridade
No artigo 477, podemos separar duas fases sucessivas nas quais o instituto se desdobra. Em primeiro lugar, é necessário avaliar as condições que geram o direito de opor essa exceção – como nasce o direito de excetuar. Oposta a exceção, pergunta-se quais medidas a outra parte, cuja pretensão foi paralisada, pode adotar.

Para que o direito de excetuar surja, exigem-se quatro elementos:

(i) Obrigações sinalagmáticas. Como a exceção citada é efeito do sinalagma, ele precisa existir entre as obrigações criadas pelo contrato.

Os deveres que formam o sinalagma podem não ser os tipicamente tidos como principais: devemos verificar qual é a prestação fundamental para o outro contraente a partir do motivo comum das partes na celebração do contrato. Na compra e venda, ela é normalmente o pagamento do preço e a entrega coisa, supondo que o motivo comum é a função de trocar os bens. Todavia, não é necessariamente assim. Aguiar Júnior nos dá o exemplo da locação celebrada para que o locatário faça reparos no prédio enquanto usa – o sinalagma está entre esses dois deveres10.

Pelo conceito de sinalagma apresentado, notamos que ele pode existir entre os deveres de mais de duas partes. E, como as exceções se prendem a ele, elas são aplicáveis a quaisquer obrigações que formem o vínculo de interdependência. É o caso dos contratos plurilaterais: a doutrina recente admite a aplicação das exceções sinalagmáticas em contratos como o de sociedade11, mas apenas quando o risco ou o inadimplemento afeta a parte cuja prestação é a determinante para a celebração do contrato, se esta existir. Caso a parte principal na sociedade tenha sua capacidade de, por exemplo, integralizar posta em dúvida, os outros sócios podem se recusar a prestar.

(ii) Ordem na realização das prestações. Apenas o obrigado a prestar antes pode se valer da exceção de inseguridade. Sem esse requisito, estaríamos no domínio da exceção de contrato não cumprido, a qual requer a exigibilidade simultânea das obrigações.

(iii) Dúvidas sobre a capacidade de prestar do credor. O legislador refere-se (no artigo 477) ao conceito financeiro de patrimônio12. Isto é, o valor de troca e de uso dos objetos dos direitos, inclusive expectativos, que compõem o patrimônio. Quando este varia negativamente, impedindo ou dificultando substancialmente o adimplemento futuro, satisfaz-se o requisito da exceção – daí sua proximidade com a onerosidade excessiva nos remédios extintivos. O fundamental é perceber que, assim concebida, a redução também pode ser causada por pressões externas ao patrimônio do devedor, como a redução nas vendas, o fato do príncipe em um mercado a montante etc. Na pandemia, esse agravamento do risco de inadimplemento futuro afeta quase todos, mas apenas a casuística determinará o grau tolerado – apenas podemos dizer que o risco deve ser substancial.

(iv) Que a dúvida surja após a conclusão do contrato. Em geral, o aumento da dificuldade de prestar do credor só pode ser avaliado por uma comparação na qual se toma como base a situação na qual o contrato foi celebrado. Se a dificuldade for anterior, estamos no âmbito do erro13.

A potencialidade do instituto em tempos de Covid-19 é clara. O risco de perda (não adimplemento) da contraprestação é atual e, no mais das vezes, por conta da atual conjuntura, não se fundamenta em mera representação subjetiva de uma parte que, querendo se desvincular de uma obrigação, pretende a utilização desse remédio jurídico (hipótese evidentemente a ser evitada). As mudanças (para pior) da situação patrimonial de pessoas jurídicas (pense-se, por exemplo, nas empresas de transporte aéreo) e pessoas físicas (como os milhares de profissionais liberais afetados pelas medidas públicas de isolamento) são notórias e só fazem crer que, infelizmente (pelas circunstâncias), esse mecanismo de autotutela do artigo 477 (que, ressalte-se, visa manter íntegro o sinalagma funcional) goze de uma aplicabilidade como nunca teve no Brasil, em seus pouco mais de 100 anos de existência. Uma conveniente “exceção” em um ordenamento jurídico em regra indiferente às condições econômicas dos contratantes.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)


1 O número de julgados confirma a tese. Sobre o tema, há apenas uma decisão no STJ (REsp 1.279.188, 4ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 16.04.2015), que aplica o instituto de forma lateral, e pouco mais de uma dezena de acórdãos que o mencionam entre TJSP, TJRS, TJRJ e TJDFT.

2 “Contrato bilateral” significa um contrato no qual há duas partes e sinalagma entre as obrigações.

3 SACCO, R.; DE NOVA, G. Il contratto. 3ª ed. Turim: UTET, 2004. t. 2. p. 686.

4 Cf., sobre o tema, VICENTE, D. Direito comparado. São Paulo: Almedina, 2018. v. 2. pp. 282 ss.

5 Principalmente no direito alemão. Sobre isso, cf. CANARIS, C.-W. Das allgemeine Leistungsstörungsrecht im Schuldrechtsmodernisierungsgesetz. Zeitschrift für Rechtspolitik. v. 34, n. 8, Ago-2001. pp. 329-336. Ver também PIRES, C. M. Impossibilidade da prestação. Lisboa: Almedina, 2018.

6 Sobre o tema, cf., por todos, PEREIRA, M. L., et. al. Sobre o conceito e a extensão do sinalagma. In: COSTA E SILVA, P. et al (orgs.). Estudos em honra do professor doutor José de Oliveira Ascensão. Lisboa: Almedina, 2008. v. 1. passim.

7 Como a impossibilidade, a resolução onerosidade excessiva é uma figura muito mais ampla, relacionada ao grau de diligência exigido do devedor na realização da prestação, sendo o sinalagma fator modificativo do regime geral. Basta ver o art. 480. Cf. MASSIMO BIANCA, C. Diritto civile. Milão: Giuffrè, 2008. v. 4. p. 529.

8 Lembrando que, em casos de impossibilidade temporária, o fato suspende a relação contratual enquanto ainda perdurar o interesse do credor, fixado pela utilidade (art. 395, par. único). Nesse sentido, aproxima-se das exceções.

9 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 2012. t. 6. § 628, n. 6.

10 AGUIAR JR., R. Comentários ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 6, t. 2. p. 737.

11 ROPPO, V. Il contratto. Milão: Giuffrè, 2001. p. 979.

12 cf. LAMY FILHO, A. et al. (Orgs.), Direito das Companhias, Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 2. p. 1.309 ss. Pontes de Miranda observa: “[…] basta que tenha havido baixa de nível do ativo patrimonial que comprometa a solvibilidade futura (=torne certa a não-prestação, ou não provável. […] a prestação. Tornar duvidosa a prestação é tornar provável […] que o devedor não poderá, no futuro, prestar”. (Tratado. t. 3. §304, n. 2.)

13 Idem. t. 26. § 3.129, n. 2.

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