Opinião

A atuação dos órgãos de controle em face à pandemia da Covid-19

Autores

29 de abril de 2020, 19h38

Em sua obra "A Lógica do Cisne Negro" [1], Nassim Taleb argumenta que para caracterizarmos um evento como cisne negro ele deve possuir três atributos. Primeiramente, deve ser um outlier, ou seja, estar fora do âmbito das expectativas comuns. Em segundo lugar, deve exercer um impacto extremo. Por fim, apesar de ser um outlier, desenvolveremos explicações para sua ocorrência após o evento, a chamada previsibilidade retrospectiva (mas não prospectiva).

Se entendermos que a pandemia causada pela Covid-19, ao menos em sua magnitude, era imprevisível, resta claro que estão presentes todos os outros atributos para consideramos o cenário atual como um cisne negro, com baixa probabilidade de acontecer, mas potencial gerador de altos impactos sociais. A literatura nos diz que, em tempos de cisnes negros, temos que "pensar fora da caixinha" para encontrarmos as melhores soluções, e isso tem que valer para todos, inclusive para os órgãos de controle e defesa do Estado.

A necessidade de aquisições cada vez mais céleres para darmos respostas tempestivas ao avanço do vírus por todo o país fez com que, sabiamente, a legislação de compras fosse flexibilizada, sob os auspícios de um verdadeiro subsistema de direito provisório. Entretanto, para o gestor que tem a caneta, ou seja, que tem a responsabilidade de decidir em um contexto tão adverso, com fornecedores cobrando até dez vezes mais pelo produto demandado, além de outras exigências como pagamento antecipado, aliados à falta de garantias e à insegurança jurídica, fazem com que o famigerado "apagão das canetas" tenha mais um capítulo escrito na história recente do país.

Por isso a essencialidade de falarmos do papel do controle nesse cenário. Em linhas gerais, e reconhecendo que há diversas formas e classificações possíveis, abordaremos no artigo três tipos de controle: interno, externo e social.

O controle interno é aquele mais próximo ao gestor, localizado no âmbito do Poder Executivo, tendo no Estado a Controladoria-Geral como seu órgão central. Ela tem duas grandes missões: combater a corrupção e apoiar a gestão. Para o cumprimento da primeira tem-se diversas ferramentas, como cruzamento de dados, trabalhos de inteligência, atuação em rede, dentre outras. Isso tudo é focado no mau gestor, aquele que quer perpetrar a fraude, a irregularidade, o desvio. Mas e em relação ao bom gestor? Como o controle interno pode apoiar?

Nesse momento de grande insegurança, o controle interno deve estar ao lado do bom gestor, tentando auxiliá-lo na mitigação dos riscos envolvidos, não apenas nos processos de aquisições de bens e serviços, mas em relação a todas as decisões. Nesse sentido, destacamos a Resolução nº 10 da CGE, que, pela primeira vez em sua história, abre a possibilidade de consultoria para os gestores públicos, o que possibilita um aumento na assertividade das decisões diárias que têm que ser tomadas por eles.

Outro componente fundamental do sistema de controle interno, a advocacia pública, sem deixar de diligenciar sua função de representação judicial e extrajudicial do Estado, assume nos momentos de crise a função central de assegurar a juridicidade das decisões técnicas emergenciais. Subleva-se, assim, a atuação preventiva de seus membros, realizada precipuamente pelas unidades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, responsáveis pela emissão de pareceres e notas jurídicas para orientação das áreas finalísticas da estrutura estatal.

A atividade consultiva é, pois, instrumento fundamental ao controle de legalidade e legitimidade das políticas públicas. Em seu desempenho, não basta que os advogados públicos apontem os vícios jurídicos e ilicitudes de procedimento, forma e conteúdo na elaboração e consecução dos atos administrativos. É preciso que eles demonstrem quais as vias legais para o alcance do escopo traçado, capazes de conferir segurança e sustentabilidade jurídicas à ação político-administrativa, a chamada atuação proativa voltada para a viabilização na juridicidade das políticas públicas. Em tempos atuais, a principal política pública em implementação é a de saúde, voltada para o combate ao coronavírus, não obstante outras ações voltadas para os efeitos sociais e econômicos decorrentes dele.

Se o cenário pandêmico exige reações urgentes dos gestores públicos, ainda mais célere deve ser a resposta da advocacia pública em indicar o caminho legal, probo e eficiente de atendimento às necessidades sociais e de realização do interesse público, aumentando o grau de previsibilidade retrospectiva para o posterior controle sobre as ações governamentais. Essa presteza depende essencialmente da composição racionalizada e coesa da estrutura orgânica das procuradorias dos estados.

Em Minas Gerais, a evolução permanente do modelo de atuação e organização da Advocacia-Geral do Estado levou à edição da Lei Complementar Estadual nº 151, de 17 de dezembro de 2019, que a reestruturou sob as luzes de prevenção, desjudicialização, aperfeiçoamento tecnológico, economicidade, governança, integridade e combate à corrupção.

Ressaltamos a consolidação da performance do assessoramento consultivo, tendo a nova legislação orgânica institucionalizado a presença da AGE nas Assessorias Jurídicas das Secretarias de Estado e nas Procuradorias Jurídicas das Autarquias e Fundações, coordenadas pelo Núcleo de Assessoramento Jurídico (NAJ-AGE), de modo a facilitar a comunicação e a colaboração intragovernamental.

Assim, uniformização, sistematização e padronização dos entendimentos e teses jurídicos emanados pelas diversas unidades da AGE tornam-se possíveis graças à estruturação de um Núcleo de Uniformização de Teses (NUT), responsável por estabelecer uma interface permanente entre as áreas da consultoria e do contencioso.  A criação do Núcleo de Tutela da Probidade, Acordos de Leniência e Anticorrupção, dentro de uma também novel Procuradoria de Demandas Estratégicas da AGE, objetiva o controle e a garantia da regularidade das atividades exercidas pelos gestores públicos, em atenção à promoção da integridade na administração pública.

A partir das alterações organizacionais expostas e da atuação uniforme de seus membros, evidenciamos as contribuições da Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais para a prevenção e o combate à Covid-19. Elas perpassam pela consolidação das orientações jurídicas, sobretudo expressas em pareceres referenciais que dão suporte à contratação direta de serviços, à efetivação de pagamentos antecipados e à realização de obras e preparação de equipamentos para atendimento da saúde pública. As unidades consultivas também atuam em parceria com o contencioso para viabilizar a recuperação de créditos e recursos financeiros de garantias existentes em ações judiciais, a serem direcionados à implementação de políticas públicas de enfrentamento à pandemia.

 O aperfeiçoamento de um sistema forte e integrado de consultoria e assessoramento jurídicos, para além de conferir segurança jurídica ao fazer estatal, evita a desarticulação entre os órgãos de controle interno. Nesse ponto, temos buscado o constante fortalecimento da parceria entre a Controladoria-Geral do Estado e a Advocacia-Geral do Estado no combate à improbidade e à corrupção, principalmente na condução dos processos administrativos de responsabilização e na negociação, celebração e acompanhamento dos acordos de leniência [2].

Essa articulação, porém, não pode limitar-se às instituições endógenas, devendo atingir também os órgãos encarregados do controle externo e os atores responsáveis pelo controle social. Assim, necessário construirmos um diálogo voltado à consolidação de uma cultura de consensualidade em contraponto à sobeja e desnecessária judicialização, de prevenção em detrimento da remediação e punição. Nesse tocante, a AGE/MG institui sua Câmara de Prevenção Administrativa de Conflitos (CPRAC), visando a promover no ambiente interno da administração pública estadual a busca pela convergência dos entendimentos e pela consensualidade, inclusive entre órgãos e entidades do próprio Estado.

O controle externo é exercido por órgãos autônomos exógenos à estrutura do órgão fiscalizado, que possuem poder para a fiscalização e a revisão da atividade administrativa realizada em todas as esferas de poder. São suas modalidades o controle parlamentar direto, o dos tribunais de contas e o jurisdicional [3], abrangendo a atuação da administração pública sob os vieses político, contábil, financeiro, orçamentário e jurídico. Dele participam a Assembleia Legislativa, o Tribunal de Contas do Estado e o Ministério Público, dos Estados e da União, e os órgãos do Judiciário, os últimos quando provocados.

Já o controle social permite aos administrados a provocação dos procedimentos de controle externo e interno, quando estejam sob ameaça interesses e direitos individuais e/ou coletivos. Os instrumentos de controle social têm como corolário o direito de petição e possuem o status constitucional. Abrangem medidas judiciais, como o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança, o mandado de injunção, a ação popular e a ação civil pública; bem como medidas administrativas, a exemplo da reclamação, da representação administrativa, do pedido de reconsideração, dos recursos hierárquicos próprios e impróprios e da revisão. Não obstante, está na transparência pública a maior e melhor ferramenta para o exercício do controle administrativo pela sociedade.

O efeito colateral da flexibilização da legislação, já discutida neste artigo e reconhecida como extremamente necessária, é o aumento do risco de corrupção/integridade, uma vez que as decisões devem ser tomadas com menos evidências e sob maior pressão. Nesse sentido, para apoiar os órgãos de controle e defesa do Estado, a participação do cidadão torna-se ainda mais necessária. Minas Gerais se destaca na questão de transparência, indo além do exigido pela legislação e divulgando todas as compras relacionadas à pandemia não apenas no Portal da Transparência, mas na página de dados abertos, o que facilita a interação e o controle pela sociedade.

A consolidação dos instrumentos de assessoramento jurídico preventivo e de transparência governamental constituem exemplos imprescindíveis de atuação voltada à intersetorialidade e à transversalidade entre órgãos e agentes competentes para o exercício do controle sobre a atuação da administração pública, seja ele interno, externo ou social. Essa cooperação não implica, por óbvio, a perturbação das esferas de atribuições constitucional e legalmente traçadas para cada órgão ou poder. Falamos, antes, de um desempenho harmônico e voltado para um fim único: evitar a cultura do medo por meio da fixação de bases de atendimento ao interesse público em consonância com o Estado Democrático de Direito. Com isso, privilegiamos a observância aos princípios e às normas que norteiam o agir administrativo, o respeito à especialização das atividades técnicas e a atenuação dos riscos envolvidos em seu desempenho.

Não é suficiente, porém, que apenas os gestores públicos e os órgãos de controle interno se mobilizem em prol da otimização das políticas públicas emergenciais e sua aderência aos critérios técnicos, econômicos e jurídicos. O cenário de cisne negro exige a remodelação de todos os sistemas e mecanismos de controle, através da união para a criação de novos padrões de aferição de responsabilidade, considerando, retrospectivamente, as reais condições em que foram praticados os atos administrativos e quais os parâmetros de caracterização de um erro como inescusável.  

Fundamental, então, o questionamento: se estamos na mesma tempestade, mas definitivamente não no mesmo barco, pelo menos não podemos remar na mesma direção?

 


[1] Taleb, Nassim Nicholas. "A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável". Tradução de Marcelo Schild; revisão técnica Mário Pina. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Best Seller, 2015.

[2] A esse respeito, vide Resolução Conjunta CGE/AGE nº 4, de 12 de novembro de 2019, que "define os procedimentos para a negociação, a celebração e o acompanhamento dos acordos de leniência de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, no âmbito da Controladoria-Geral do Estado CGE   e da Advocacia-Geral do Estado AGE".

[3] Embora a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 71, utilize o termo controle externo apenas para o controle exercido pelo Legislativo, com auxílio dos Tribunais de Contas, sobre a administração pública, o controle exercido pelo Judiciário sobre os atos do Executivo também se reveste de exterioridade, dada a separação dos poderes.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!