Opinião

MP 936: acordos individuais impedem a atuação dos sindicatos?

Autor

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

28 de abril de 2020, 19h33

A recente MP 936 permite suspensão temporária de contratos e a redução proporcional de jornada e salários, com a suplementação parcial da renda perdida pelo trabalhador através de um benefício emergencial pago pela União, e uma garantia de emprego correspondente ao dobro do prazo da redução ou suspensão. Surge como alternativa para evitar a demissão em massa por empregadores com faturamento reduzido por conta do isolamento social determinado pelas autoridades sanitárias durante a pandemia da Covid-19, sem condições de manter as atividades em teletrabalho, nem, e.g., manter os trabalhadores em férias e feriados antecipados ou em banco de horas, institutos flexibilizados através da MP 927.

Em sua parte mais polêmica, a MP 936 permite em diversas situações que tal redução se dê mediante acordo individual, situação questionada perante o STF na ADI 6363, com desdobramentos em ritmo vertiginoso. Foi concedida uma liminar mais ampla, no dia 6, colocando em dúvida a validade dos acordos sem a chancela dos sindicatos, seguida pela decisão em embargos declaratórios esclarecendo e amenizando o teor da liminar, o que não impediu sua cassação por sete votos a três, no dia 17. Buscaremos aqui sumarizar a espinhosa discussão sobre sua constitucionalidade e eficácia prática, especialmente após as recentes decisões do STF no âmbito da ADI 6363.

O pomo da discórdia: os acordos individuais
Segundo o artigo 7º, VI, da Constituição, é direito dos trabalhadores a "irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo". No entanto, dada a urgência de implementação de medidas de isolamento social, o governo idealizou situações, como mencionado acima, onde a redução de salário e jornada se dará por acordo individual. Por outro lado, os sindicatos, entidades a quem reservada a negociação coletiva (artigo 8º, III, da Constituição), são mencionados na norma como destinatários da comunicação de tais acordos, no prazo de dez dias (artigo 11, §4º), sem que sejam esclarecidos os efeitos de tal comunicação (ou de seu descumprimento). Esse dispositivo é central para a aferição da constitucionalidade do uso de tais negociações individuais, em face da garantia constitucional do artigo 7º, VI, da CLT, podendo-se cogitar que tal comunicação serviria para provocar uma negociação coletiva diferida, uma aplicação mitigada de tal garantia, dada a emergência do momento.

Em nome da necessária agilidade, talvez prejudicada pelo sucateamento financeiro recente dos sindicatos, estaríamos permitindo a erosão de cláusulas pétreas constitucionais, últimas amarras que freiam eventual arbítrio das maiorias temporárias? Ou a comunicação dos acordos individuais aos sindicatos, para uma negociação coletiva a posteriori — caso detectada a necessidade de intervenção — seria uma ponderação razoável do artigo 7º, VI, com os valores também consagrados constitucionalmente de preservação dos empreendimentos e empregos, no excepcionalíssimo contexto da pandemia?

Seria um precedente temerário flexibilizar uma garantia individual expressa? Veja-se que o constituinte originário consagrou nos artigos 5º e 7º garantias dos cidadãos, direitos fundamentais elevados acima do patamar ordinário, considerados valores essenciais que deveriam ser preservados das instabilidades das constantes trocas de valores políticos.

Vejamos, objetivamente (e sem a pretensão de exaurir tão complexo tema), as reviravoltas de tal discussão perante nossa Suprema Corte.

Liminar na ADI 6363 — 6/4/2020
Foram questionados na ADI 6363 diversos dispositivos da MP 936 que remetiam à possibilidade de negociação individual. O relator, ministro Ricardo Lewandowski, decidiu:

"Defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao § 4º do artigo 11 da Medida Provisória 936/2020, de maneira a assentar que (os) acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho (…) deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes."

Na fundamentação, entretanto, constou que "(…) os acordos individuais somente se convalidarão, ou seja, apenas surtirão efeitos jurídicos plenos após a manifestação dos sindicatos dos empregados", o que gerou certo pânico no mercado, com alguns analistas prevendo panoramas catastróficos de demissões em massa ante a insegurança jurídica de se utilizar os acordos individuais de redução de salário e jornada ou suspensão de contratos. 

Embargos de Declaração na ADI 6363 — 13/4/2020
Foram opostos embargos de declaração pela União, julgados pelo relator no dia 13, em que se acreditava terem sanado as inquietudes suscitadas, assegurando que:

— São válidos e legítimos os acordos individuais celebrados na forma da MP 936/2020, os quais produzem efeitos imediatos;

— Valendo não só no prazo de dez dias previsto para a comunicação ao sindicato, como também nos prazos do artigo 617 da CLT, agora reduzidos pela metade pelo artigo 17, III, da MP.

— Podendo o empregado aderir à convenção ou acordo coletivo posteriormente firmados, os quais prevalecerão sobre os acordos individuais, naquilo que com eles conflitarem (observando-se o princípio da norma mais favorável);

— na inércia do sindicato, subsistirão integralmente os acordos individuais tal como pactuados originalmente pelas partes.

Decisão plenária cassando a liminar — 17/4/2020
Naturalmente, o ministro relator votou pela manutenção da liminar, em sua versão mais moderada, esclarecida em sede embargos de declaração, como sumarizado acima. No entanto, mesmo com o advogado-geral da União se dando por satisfeito com tal posição e se manifestando pela manutenção da liminar em tais termos, tal não foi suficiente para unir a Corte. Aliás, ninguém seguiu o relator, tendo todos os outros ministros votado em contrário:

— Os mininistros Fachin e Rosa Weber votaram pela concessão integral da cautelar, com o reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos autorizadores do acordo individual para redução de salário;

— Os demais (excluído o ministro Celso de Mello, que não participou) votaram pela cassação da liminar, entendendo em suma que, neste momento de emergência, condicionar a validade dos acordos individuais à chancela dos sindicatos traria insegurança jurídica que dissuadiria os empregadores a lhes adotarem, estimulando demissões em massa.  

De resultado prático, a nova decisão acresce pouco, já que continua integralmente mantido o texto da medida provisória, prevendo a validade dos acordos individuais desde o início, mas ainda havendo a obrigação de comunicação aos sindicatos em dez dias (§4º, artigo 11 da MP), sem condicionar a validade dos acordos à expressa concordância dos sindicatos. Tal já era o que previa a liminar, na sua versão "light", após o julgamento dos embargos declaratórios.

Perspectivas sombrias para o Direito do Trabalho?
Em que pese o resultado (manutenção do texto da MP, que acaba remetendo a uma atuação dos sindicatos a posteriori) seja razoável para um momento absolutamente excepcional de nossa história, deixaram um sabor amargo os argumentos de alguns dos ministros que acompanharam a divergência lançada pelo ministro Alexandre de Moraes, cassando a liminar. A maioria revelou pouca resistência em erodir uma garantia constitucional expressa (artigo 7º, VI, da CRFB), aparentemente nulificando-a, ao invés de procurar uma possível ponderação que lhe impusesse o menor sacrifício possível.

Acima disso, os argumentos da maioria revelaram certo desprezo pelo Direito Coletivo do Trabalho, pelo princípio da proteção (que presume que o trabalhador hipossuficiente não consegue uma negociação equilibrada em face de sua subordinação e dependência do empregador), e uma ácida descrença na possibilidade de atuação "proba" dos sindicatos (palavra utilizada por um dos ministros). Tal surpreende, já que, em julgados recentes, o STF vinha glorificando a negociação coletiva, cogitando a possibilidade de esta inclusive suplantar o mínimo legal. Enfim, o tradicional Direito do Trabalho (individual e coletivo) parece encolher a cada julgado.

E agora, como ficam os acordos individuais?
Já com os esclarecimentos do ministro  Lewandowsi nos embargos de declaração — e mais ainda, com a cassação da liminar —, fica claro que os acordos individuais valem desde o início, mesmo enquanto pendente negociação coletiva, ainda que os sindicatos discordem do acordo individual e a negociação coletiva não chegue a um bom termo. Restou claro que a chancela dos sindicatos não é condição para a validade do acordo.

Resta aos sindicatos, em sua função fiscalizatória dos direitos da categoria, caso verifiquem abusos nos acordos individuais, tentar pela via da negociação coletiva o melhoramento das condições acordadas, através dos meios de pressão licitamente disponíveis para alavancar a negociação (como a greve, Lei nº 7.783/89.). Alternativamente, os sindicatos podem ainda atuar como substitutos processuais, judicializando eventuais ofensas aos direitos individuais homogêneos dos integrantes da categoria, mesmo que não associados do sindicato (já que a substituição é ampla, a todos os membros da categoria, artigo 8º, III, da Constituição).

Finalmente, não podemos olvidar que continua em vigor o artigo 11, §4º, da MP 936, que impõe expressamente que os acordos individuais "deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração". Entendemos que se trata de obrigação que integra a própria essência do acordo individual, já que foi a forma encontrada pelo governo para evitar a inconstitucionalidade dos acordos individuais, por afronta ao artigo 7º, VI, da Constituição.

Assim, considerando que tal omissão pode impedir a ciência dos sindicatos, frustrando uma negociação coletiva, ainda que a posteriori, temos que ausente uma formalidade essencial, invalidando o negócio jurídico, até porque, raciocinar a contrario sensu esvaziaria de qualquer eficácia a regra do artigo 11, §4º, o que não é lícito, em boa hermenêutica, ainda mais quando em jogo a atribuição de um conteúdo mínimo a uma cláusula pétrea (artigo 7º, VI, da CRFB), que exorta os sindicatos a cumprirem seu constitucional múnus de fiscalização e negociação coletivizada, minimizando a hipossuficiência individual do trabalhador.  

Autores

  • Brave

    é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal, juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), conselheiro da Escola Judicial e membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região.

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