Opinião

O caos anunciado com mortes nas prisões

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28 de abril de 2020, 17h20

A caótica situação do sistema prisional, somado ao problema do encarceramento em massa no Brasil[1], é agora agudizada em razão da pandemia da Covid-19. O problema é imenso e não é novo, sendo que o "estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro" foi reconhecido pelo STF no ano de 2015, em decisão da pena do ministro Marco Aurélio na ADPF 347.

Em razão do coronavírus e a partir da orientação da OMS, o CNJ emitiu a Recomendação 62/2020[2], indicando adoção de diversas medidas preventivas que obstem a propagação do vírus no sistema carcerário e socioeducativo, justamente ante ao cenário de precariedade das estruturas prisionais — sobretudo, diante da visível ausência de cumprimento de regras sanitárias e de tratamento de saúde pelo Estado.

É certo que o Estado não poder tarifar vidas humanas. Homens e mulheres merecem tratamento isonômico, encarcerados ou não. Todavia, aqueles que estão sob a custódia estatal, a capa protetora do Estado, merecem atenção especial — por várias razões, seja pela responsabilidade civil do Estado em razão do encarcerado, seja pelo dever de preservar os seus próprios servidores públicos de eventual contaminação, etc.

Então, ao contrário do que se pode inicialmente pensar, a “recomendação” do CNJ não enseja mero poder discricionário para Autoridade Judicial, pois a discussão não gravita apenas sobre requisitos subjetivos de eventual concessão de medida restritiva menos gravosa ou até a liberdade. Ao contrário disso, se o preso compõe o “grupo de risco”, é portador do direito à saúde e isto não está ao mero capricho Magistrado. Aliás, em grande medida, a Recomendação do CNJ reproduz uma obviedade, que seria despicienda se a lei penal fosse cumprida às inteiras no Brasil. Como não é, ante à falta de estrutura e diante do encarceramento em massa, a recomendação é necessária em tempos de pandemia.

No ponto, a recomendação, como toda e qualquer orientação, atenta ao direito que busca preservar determinado bem jurídico, neste caso — o bem fundamental da vida humana.  Além disto, é de se levar rigorosamente em consideração a já citada manifestação do STF (ADPF 347), que versa sobre pessoas encarceradas que estão em "situação de risco", sem criar mecanismos que possam obstaculizar direitos e garantias.

A situação é excepcionalmente grave, pois é inimaginável um tratamento exitoso do coronavírus no atual ambiente prisional brasileiro. É no mínimo fantasioso acreditar que seria possível ante ao conhecido quadro calamitoso. É preciso relembrar que as prisões são depósitos de seres humanos, sem qualquer condição de manutenção das necessidades básicas, ainda que inúmeras denúncias tenham sido feitas, inclusive à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Conforme os dados do Infopen (junho de 2019[3]), a população carcerária concentra mais de 750 mil pessoas, sendo que aproximadamente 50% está em regime fechado. Uma parcela considerável de presos sofre com a nefasta tuberculose, doença respiratória transmitida pelo ar e disseminada facilmente no ambiente prisional. O Depen revelou que 40% das prisões não são equipadas com consultórios médicos e 90% não possuem celas e/ou alas exclusivas para idosos. O risco epidemiológico foi anunciado: é altíssimo.[4]

O que de fato está em jogo é a saúde daqueles que poderão sofrer consequências irreversíveis no sistema carcerário diante de uma pandemia como a Covid-19, não só os presos e presas, mas todos os agentes públicos e privados, agentes penitenciários, assistentes sociais e profissionais da área da saúde, educadores, religiosos e advogados que operam no sistema.

Para além da questão sanitária, a questão é humanitária, é muito mais do que manter as pessoas presas e se despreocupar com as consequências. Estamos ante uma contaminação em cadeia, pois  não só os presos serão contaminados. A partir do sistema prisional, poderá existir alto nível de propagação.

Diante do quadro pintado no mundo e da visível falta de uma política pública emergencial do Governo Federal para o tratamento da questão prisional, situação abalada pela crise política a partir da troca dos Ministros da Saúde e da Justiça e Segurança Pública durante a pandemia,  lamentavelmente o cenário é de mortes anunciadas. Suspender visitas aos presos, não basta. Aliás, agrava a situação no que limita aos mantimentos dos apenados.[5]

Não há outra alternativa, a situação exige providência imediata e a solução passa pela adoção de uma política de descarcerização, o que parece ser inviável diante do populismo penal instalado no Brasil.  O Governo Federal não vê outra forma de administrar os conflitos sociais sem que seja com recurso à criminalização e ao modelo punitivo tradicional. Aliás, não tem interesse em investigar outros modelos. Cabe, então, à Magistratura, na linha da recomendação do CNJ, iniciar o processo de aplicação de medidas alternativas à prisão. Quiçá, um dia, teremos um país com o mínimo de pessoas presas e, enquanto isto não for possível, que os custodiados tenham o que diz a lei: dignidade, saúde, alimentação, educação e assistência jurídica, por exemplo.

[1] A advertência vem sendo feita no Brasil, especificamente a partir do início da década de 90, por: BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas, 5 ed., São Paulo: Saraiva, 2017; mais recentemente, por: CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia, 5 ed., São Paulo: Saraiva, 2013.

[4] No Rio Grande do Sul, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) publicou a Nota Técnica 01/20 fornecendo orientações aos servidores do sistema prisional, visitantes e demais profissionais. Além disso, está proibida a entrada de visitas por 15 dias, a contar do dia 23 de março de 2020.

http://www.susepe.rs.gov.br/upload/1584926060_Nota%20tecnica_Versao%20Final_9.pdf

[5] Cumpre dizer que diante da ausência do Poder Estatal no que tange ao fornecimento de um local adequado e com fornecimento de materiais de higiene básica, os familiares dos presos é que fornecem os materiais. Em razão da proibição e/ou redução das visitas, resta ainda mais claro que o ambiente carcerário se tornará ainda mais insalubre e perigoso.

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