Opinião

Criminologia pública em época de quarentena

Autores

  • Claudio Bidino

    é advogado Criminalista sócio do escritório Bidino & Tórtima Advogados mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford e mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra.

  • Marcio Barandier

    é advogado criminalista presidente da Comissão de Direito Penal do IAB e conselheiro do IBCCRIM e da Sacerj.

28 de abril de 2020, 14h22

Éramos 200 milhões de técnicos de futebol, passamos para 200 milhões de juristas e agora somos 200 milhões de especialistas em pandemias e medicações. Perdemos muitas Copas, aniquilamos muitos direitos fundamentais. Espero que deixemos a pesquisa para quem estuda e conhece”, escreveu a magistrada e escritora Andréa Pachá, na rede social Facebook, em 07/04/2020, manifestando preocupação com o cenário da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil.

De repente, os infectologistas brasileiros passaram a vivenciar a experiência frequente dos penalistas e criminólogos. Não são poucos os que, sem nenhuma formação técnica, têm se pronunciado no dia a dia sobre temas de alta complexidade sem qualquer cerimônia, disseminando, com ares de autoridade, suas conclusões, orientações e soluções despidas de qualquer lastro científico. E não raro, mais do que achismos travestidos de opiniões, inusitados raciocínios são apresentados como verdades absolutas, às vezes com frases de efeito ou falsos silogismos, pouco importando que os estudiosos posicionem-se de maneira absolutamente inversa, que o tema seja extremamente polêmico na academia ou ainda careça de investigações aprofundadas e conclusivas.

O Direito Penal, que tanto interesse e entusiasmo desperta nas pessoas, tal como vem ocorrendo agora com a infectologia em época de pandemia, virou papo de almoço de família e discussão de botequim no Brasil, principalmente a partir do denominado Caso Mensalão (Ação Penal 470, do Supremo Tribunal Federal), com seus episódios acompanhados pela TV Justiça. E de repente, entre petiscos e copos de cerveja, leigos no assunto passaram a dissertar, com voz impostada, sobre a teoria do domínio final do fato, sem a sua compreensão adequada e sem noção da espécie de problema jurídico que o seu principal desenvolvedor, Claus Roxin, propôs por meio dela resolver.

As causas criminais sempre fascinaram a população, muitas vezes movida por uma excitação um tanto mórbida semelhante à despertada pelas tragédias. É da natureza humana. “É sangue mesmo, não é merthiolate. E todos querem ver e comentar a novidade. É tão emocionante um acidente de verdade. Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre. Vai passar na televisão. Vai passar na televisão”, cantava Renato Russo, líder da banda Legião Urbana, nos anos 1980.

O fenômeno da criminalidade, que afeta realmente o nosso cotidiano, costuma animar assertivas baseadas em meras intuições, em premissas sem demonstração empírica, em verdadeiras lendas urbanas e, acima de tudo, notadamente no Brasil, em uma fé inabalável no recrudescimento da ameaça jurídico penal aos infratores como eficiente instrumento inibidor da criminalidade violenta, embora a experiência histórica e a própria ciência a desmintam.E cada vez mais parece que a luta de Galileu Galilei é olvidada, e desinformação e crendices seguem constrangendo o estudo científico.

Os políticos exploram esse viés da desinformação. A segurança pública, por exemplo, é pauta em todas as eleições. Mas os acenos são geralmente em prol do incremento do Direito Penal, com aumento de penas, inclusão de novos tipos penais e acréscimo de restrições ao exercício do direito de defesa. Para os políticos, é mais fácil elaborar uma nova lei penal formalmente severa, anunciando-a como uma panaceia no combate à criminalidade, do que investir tempo, trabalho e recursos financeiros em medidas de enfrentamento real das condicionantes e determinantes das práticas delitivas, sobretudo as violentas.

A formulação simplista de pseudo soluções mágicas para temas desafiantes da criminologia, da psiquiatria forense e da questão penitenciária encanta uma população marcada por uma histórica cultura autoritária,pouco instruída inclusive em sua elite, num país com graves e recorrentes problemas sociais e de desigualdade ímpar.

É comum, por exemplo, pessoas dos mais variados estratos sociais repetirem duas frases que viraram lugares-comuns, sem atentarem para a insuperável contradição que as caracterizam: “o crime se combate sobretudo com o aumento das penas” e “a prisão é uma escola do crime: o sujeito sai sempre muito pior do que entrou”. Ora, se o condenado sai da prisão pior do que entrou, não se pode conceber o aumento das penas como o principal instrumento para lidar com a criminalidade.

Em uma sociedade cada vez mais polarizada, é bastante preocupante que os advogados criminalistas e os estudiosos de ciências criminais em geral estejam sendo, de certa forma, marginalizados e muito pouco ouvidos pela opinião pública, pela mídia e pelos formuladores de políticas públicas justamente nas importantes discussões que têm cercado a matéria criminal, para as quais, por óbvio, eles tanto têm acontribuir. Isso fica evidente quando um Ministro da Justiça declara publicamente sua pretensão de fazer uma reforma penal e processual penal “buscando efeitos práticos, não para agradar necessariamente professores de processo penal e de direito penal[3].

Particularmente, os posicionamentos dos advogados criminalistas enfrentam um descrédito maior nos debates sobre o fenômeno criminoso porque prevalece no imaginário popular a ideia de que eles sempre sustentarão teses garantistas e liberais exclusivamente para beneficiar os seus clientes, o que não raramente constitui um completo non sense.  Afinal, quanto mais duro for o Direito Penal, quanto mais condutas forem criminalizadas, quanto mais graves forem as suas sanções e quanto mais reduzidos forem os meios de defesa, mais ações penais fatalmente serão ajuizadas, mais difíceis se tornará o trabalho dos defensores, mais pessoas precisarão de advogados com maior qualificação e mais valorizados, consequentemente, tendem a ser os honorários advocatícios.

Não é demais lembrar que, em tempos de pandemia de Covid-19, muitos ilustres advogados privados foram duramente criticados por boa parte da opinião pública, com base em estereótipos, fake news e distorções da realidade, simplesmente porque se juntaram a defensores públicos e a instituições de defesa dos direitos humanos em uma luta pelo desencarceramento, com alternativas principalmente para idosos, grávidas e outros integrantes do grupo de risco elevado de morte em caso de contaminação, com intuito de evitar uma tragédia maior num sistema prisional com superpopulação amontoada, já doente, em condições precaríssimas, que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu como “estado de coisas inconstitucional”[4]. O que ganham esses advogados privados, além da satisfação de terem simplesmente cumprido o dever que assumiram ao abraçarem aquela que, segundo Voltaire, é a mais bela das profissões?

Decerto, há uma pluralidade de fatores sociais, políticos, psicológicos, econômicos e culturais que podem ajudar a explicar todo esse contexto de descrença que recai atualmente sobre a atuação dos advogados criminalistas e as opiniões dos criminólogos e dos penalistas em geral, reduzindo a sua influência nas rodas de discussão e na formulação de políticas públicas.

No entanto, ao invés de sairmos à procura de “culpados” na sociedade pelo estado atual das coisas, talvez seja mais prudente e eficaz que nós, advogados criminalistas e professores de ciências criminais, façamos inicialmente uma autorreflexão, afim de identificarmos a nossa própria contribuição, a nossa parcela de responsabilidade por esse cenário. Por que, afinal, temos falhado sistematicamente na comunicação externa, no compartilhamento do saber jurídico-penal com a população em geral, com operadores de outras áreas do Direito, com a imprensa e sobretudo com a classe política? Por que temos tanta dificuldade em exportarmos para além dos nossos “clubes”, dos nossos “guetos”, da nossa “turma”,os fundamentos jurídicos, humanistas, constitucionais, históricos, lógicos, empíricos que alicerçam as nossas posições? Por que continuamos falando e escrevendo quase que apenas para nós mesmos, nos nossos congressos, seminários, artigos e livros? Onde — e o quanto — temos errado? O que podemos fazer para reparar os nossos próprios equívocos?

Todas essas autorreflexões — e muitas outras —  têm sido estimuladas nos últimos anos por um novo ramo da Criminologia, denominado de “Criminologia Pública” (“Public Criminology”), composto por inúmeros estudos que têm se dedicado a examinar basicamente o papel desempenhado pela Criminologia na sociedade contemporânea e o seu real impacto na população e nas medidas jurídico-criminais e de segurança pública que vêm sendo implementadas pelo Estado.

Observa-se, assim, o despertar de uma nova área acadêmica de interesse, que surge como uma reação a um sentimento generalizado na academia que identifica a Criminologia como uma “falha bem-sucedida” (“successful-failure”); uma “falha bem-sucedida” porque, ao mesmo tempo em que se tem presenciado uma expansão sem precedentes da Criminologia, traduzida nos inúmeros cursos, departamentos, publicações, eventos e associações que afloram ano após ano, o que se percebe também é que a Criminologia tem exercido cada vez menos influência na opinião pública e nas políticas criminais[5].

A rigor, os criminólogos têm assumido publicamente que se deparam com um fato para lá de embaraçoso: “numa sociedade saturada por discussões sobre crimes, eles possuem extrema dificuldade em se comunicar com políticos, legisladores, profissionais e com o público em geral[6], testemunhando impotentes um abrupto recrudescimento penal e a proliferação demedidas punitivas que simplesmente não se coadunam com as conclusões extraídas de décadas de produção científica.

À luz dessa conjuntura, ciente de que a própria Criminologia é uma das principais responsáveis pela sua marginalização justamente durante um período em que ela tanto se faz necessária, esse novo ramo de estudos vem explorando o que pode ser ajustado no âmbito da disciplina para que a sua voz volte a ser efetivamente ouvida pela sociedade, seja em rodas de discussão, seja na elaboração de políticas públicas.

Uggen e Inderbitzin, por exemplo, pontuam que, no âmbito de uma Criminologia Pública, os criminólogos precisam se dedicar mais a interpretar os seus estudos e a compartilhar as suas conclusões com todo e qualquer público, realçando e explicando as descobertas científicas maisrelevantes para as mais diversas audiências[7]

No mesmo sentido, Currie adverte que os criminólogos não devem se preocupar tanto em atingir diretamente as autoridades responsáveis pela formulação das políticas públicas, mas, sim, em conquistar as mentes e os corações da população, pois somente assim acredita que será possível reverter os rumos do sistema de justiça criminal norte-americano. Para Currie, os criminólogos precisam então se esforçar para educar o público em geral, disseminando o que sabem, de fato, sobre o fenômeno criminoso, numa linguagem de fácil compreensão para todos, em nada semelhante à encontrada nos estudos altamente técnicos e assustadoramente quantitativos que se espalham pelos periódicos especializados[8].

Loader e Sparks, por sua vez, ponderam que os criminólogos devem cultivar uma maior humildade no jogo democrático e devem reconhecer que há muitos outros interesses e valores, não raramente conflitantes,que são levados em consideração pelas autoridades estatais na formulação de políticas criminais, para além dos estudos científicos. Argumentam, ainda, que toda discussão sobre o fenômeno criminoso e a sua regulação é complexa porque passa necessariamente por uma reflexão mais profunda sobre o modelo de sociedade que se pretende implementar e sobre uma série de ideias centrais do pensamento político moderno, tais como “ordem”, “autoridade”, “legitimidade”, “justiça”, “direitos”, “deveres”, “liberdade”, “poder”, que são perspectivadas de maneira completamente diferente, a depender da orientação política que se adote.

Justamente por força de tudo isso, Loader e Sparks sustentam que a Criminologia precisa abandonar uma certa “esperança modernista”,que se ilude com uma capacidade dos estudos de encerrar discussões políticas e preocupações mal compreendidas pela população. Para eles, os criminólogos precisam intervir na vida pública simplesmente como portadores e intérpretes do conhecimento científico, gerando controvérsias, inaugurando e ampliando os debates na sociedade, questionando e provocando as opiniões públicas e as posturas políticas existentes, isto é, promovendo e expandindo os espaços de deliberação pública sobre o fenômeno criminoso que acabam por ter influência na elaboração das políticas criminais. Em última análise, não se deveria esperar da Criminologia então que esfriasse as controvérsias criminais com argumentos de autoridade, mas, sim, pelo contrário, que aquecesse os debates sociais dentro de práticas de governança democrática[9].

Em suma, o que se constata nesses estudos e em tantos outros que vêm sendo publicados nos últimos anos é uma conscientização de que a Criminologia precisa urgentemente repensar a forma de dialogar com os mais distintos públicos, para que ela volte a produzir algum impacto significativo na sociedade e na formulação das políticas públicas. 

Será que nós, advogados criminalistas e professores,estamos fomentando um diálogo saudável com a sociedade, os formuladores de políticas públicas e os demais operadores do direito quando, por exemplo, adotamos, ainda que inadvertidamente, uma postura tida como arrogante em discussões jurídico-penais, não procuramos compreender outras variáveis extralegais que importam para a solução da controvérsia e simplesmente nos valemos de argumentos de autoridade para que o nosso ponto de vista prevaleça?E quando negligenciamos a clareza na comunicação e utilizamos em debates públicos jargões jurídicos que não são compreendidos na sua essência pelo cidadão comum?

Em época de quarentena, tão propícia para reavaliarmos os nossos valores, prioridades e até mesmo os rumos de nossas vidas, talvez tenha chegado a hora de aceitarmos o convite da “Criminologia Pública” para enveredarmos por uma autorreflexão sobre o que nos cabe fazer para que a criminologia e as demais ciências criminais consigam provocar na opinião pública, na imprensa e principalmente nos formuladores de políticas públicas o impacto que julgamos ser mais necessário na busca por uma sociedade mais justa,  democrática e igualitária.

 


[3]http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/v/moro-apresenta-projeto-de-lei-anticrime-que-muda-14-leis/7354011/

[4]STF, ADPF 347, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 09.09.2015.

[5] LOADER, Ian e SPARKS, Richard,Public Criminology?, Routledge, 2011. Pgs. 10/11.

[6] CHANCER, Lynn e McLaughlin, Eugene, “Public Criminologies – Diverse perspectives on academia and policy”, Theoretical Criminology, Vol. 11 (2), 2007. Pg. 157. 

[7] UGGEN, Christopher e INDERBITZIN, Michelle, “Public Criminologies”, Criminology & Public Policy, 9 (4), 2010. Pg. 738. 

[8] CURRIE, Elliot, “Against Marginality – Arguments for a Public Criminology”, Theoretical Criminology, Vol. 11 (2), 2007. Pgs. 178-179. 

[9]LOADER, Ian e SPARKS, Richard,Public Criminology?, Routledge, 2011. Pgs. 119/132.

Autores

  • é advogado Criminalista, sócio do escritório Bidino & Tórtima Advogados, mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford e mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado criminalista, sócio do escritório Barandier Advogados Associados e presidente da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros.

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