Opinião

Acordos com o crime organizado: enfrentamento e trégua na Covid-19

Autor

  • Víctor Gabriel Rodríguez

    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) membro do Prolam/USP autor do livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina) e bolsista da Fundación Carolina/España para professor convidado na Universidad de Granada e pela Capes na Autónoma de Madrid.

27 de abril de 2020, 16h43

O isolamento social por causa da pandemia da Covid-19 tem funcionado como holofote a lançar luz a uma série de relações sociais que sempre mantivemos ocultas. Se, em algum momento, houve dúvida de que o Estado negocia diretamente com o crime organizado para tentar manter a criminalidade em níveis aceitáveis, as notícias em tempos de pandemia escancaram essa simbiose. Refletir não apenas sobre a conveniência política, mas, em especial, sobre a legalidade desse diálogo, já deveria ter sido uma tarefa constante dos nossos pensadores. Começa a ser tarde para fazê-lo abertamente.

Muitos já comentam sobre os rotundos câmbios de um mundo pós-Covid-19, com diferenças entre distribuição de riqueza, práticas de solidariedade e hábitos de consumo em escala global, porém, ao que eu tenha visto, poucos notam a necessidade de reconstrução de relações familiares que se abalaram em tempos de quarentena, e isso nos interessa especialmente. Isolados em casa, indivíduos têm agora de lidar com o compartilhamento de realidades que eram antes invisíveis aos familiares: consumo descontrolado de álcool, vício em drogas, relações extraconjugais e situação financeira débil fazem-se impossíveis de ocultar nestas semanas de aglomeração doméstica.

Nos espaços públicos, entretanto, surge uma inversão vetorial. Ou seja, em sentido contrário, porém em mesma linha e intensidade, o isolamento social traz à tona verdades inéditas: nas ruas, o que antes era imperceptível por conta da multidão agora se desvela por sua ausência. Sem os transeuntes habituais, qualquer afluência se faz notória, e então não é difícil, até aos menos atentos, ver que o comércio de drogas segue em seus pontos tradicionais, sem menor intenção de suspender atividades: para o toxicodependente, sabemos, trata-se de um serviço essencial. A diferença é que o tráfico agora não é uma mera situação apática ao cidadão comum, porque lhe figura como ameaça de transmissão viral. São agora os mais abastados que perguntam ao governador: a venda de drogas nas ruas está proibida em dias de quarentena? Descontada a ironia, a pergunta escancara a falta de efetividade de todo o sistema penal.

Para agravar essa corrente de verdades, recentemente mais de um áudio foi vazado em que traficantes determinam aos moradores sob seu jugo um toque de recolher, uma ordem de que se mantenham em casa, em nome de sua própria saúde, sob a enigmática promessa de que "quem for visto na rua vai aprender a respeitar o próximo". Confrontado com a notícia, um governador estadual simula surpresa e afirma que a Polícia Civil investiga o caso, enquanto nós, cidadãos comuns, pensamos quanta investigação será necessária para descobrir-se que nas favelas é o crime organizado que dita a lei. Como uma verdade leva a outra, surgem então fortes evidências, comentadas pela imprensa, de que o Estado negocia com o narcotráfico e a milícia para concertar um momento de trégua em tempos de pandemia.

A negociação foi e será sempre negada pelas vozes oficiais, mas se pode confirmá-la com um prolongamento hipotético de consequências. Com a atenção da humanidade voltada às notícias de isolamento, se o narcotráfico lançasse uma convocação compulsória para reabertura do comércio local ou promovesse um dos tantos bailes nas periferias alcançaria uma demonstração de força inaudita, a partir de imagens de aglomeração e desobediência às ordens oficiais que, amplificadas pela internet, correriam o planeta. Cabe ao Estado, se zela por seus cidadãos, argumentar [1] que essa demonstração de força, se à primeira vista pode parecer um canto de vitória do crime organizado, na verdade lhe prejudicaria.

Diante desse quadro, é obrigação perguntar sobre a legalidade desses colóquios com o delito organizado. A ideia mais imediata é de que qualquer diálogo com o delinquente, no momento em que delinque e que declara sua própria oposição ao Estado, é absolutamente ilegal. De fato, aparentemente nosso ordenamento penal não dá alternativa: lei processual determinando a obrigação da autoridade policial de apurar e perseguir o delito (artigos 5º e 6º do CPP), enquanto no Direito material a recusa do agente público à persecução penal será prevaricação. Esse raciocínio, entretanto, mesmo pelo ponto de vista jurídico, é bastante simplista.

Uma mera observação do cotidiano já demonstra que todas as autoridades envolvidas no Direito Penal, incluindo a judiciária, já travam corriqueiros acordos tácitos com o crime, evitando apuração de selecionados delitos: o policial militar, em um bairro periférico, não tem condição de destruir todo o comércio de drogas ou o jogo do bicho, então se obriga a escolher horas e momentos para sua intervenção, e não raro apenas "adverte" narcotraficantes para que não se excedam; o juiz, diante de um caso de homicídio dentro de uma casa de prostituição (e há muitos), tem de prometer às testemunhas que o lenocínio não está sob investigação, do contrário estas se calam sobre o delito principal, contra a vida, que está a apurar. Com o perdão da analogia tão atual, em um sistema repressivo deficitário como o brasileiro, toda a autoridade já escolhe o crime mais viável ou importante a perseguir, tal como o médico do hospital público, mesmo antes da pandemia, já decidia qual dos seus pacientes deve ocupar o único leito de UTI disponível.

Se consideramos qualquer funcionário público como braço do Estado, esse acordo capilazarido aumenta em cifra e gravidade: todo professor da rede pública de ensino básico, todo agente de saúde, terá centenas de histórias para contar sobre colóquios com traficantes para franquear sua entrada em comunidades. Para esses agentes públicos, opor-se ao domínio do crime organizado implica não visitar os munícipes enfermos ou não lecionar para as crianças que mais precisam. Afora, claro, o risco à própria vida.

Existindo esses acordos, predicá-los de "ilegais" não pode fazê-los escapar à atividade hermenêutica. Uma análise kelseniana diria que, enquanto não alcançarem números extremos, haverá possível prejuízo à eficácia da lei, mas não a sua vigência. De nossa parte, preferimos pensar o sistema jurídico em algo menos binário, o output "legítimo/não legítimo" que impõem Kelsen ou Luhmmann, e imaginar que existe um grande processo narrativo em que o Estado sempre responde, na esteira hegeliana, para o futuro, criando uma ilusão de segurança. O importante é que esses acordos não sacrifiquem a forma como cada indivíduo se relaciona com o ordenamento jurídico e que o Estado sempre prometa uma resolução do conflito desatado pelo delito, ainda quando seja reconhecida sua impotência para diminuir a criminalidade.

Essa visão semificcional explicaria, por exemplo, por que todas as autoridades que defendem a delação premiada insistem em dizer que o delator é um "arrependido", e que a modificação da norma tenha passado a dele exigir que "cesse a atividade criminosa, sob pena de rescisão". Trata-se de afirmar que o Estado não está a dialogar licitamente com o crime, senão com quem o abandonou, ao tempo em que espiritualmente se afiliou ao caminho do bem. Mas isso é presunção surreal: diminuir a pena do denunciante é mais um exemplo de um desses diálogos [2] do Estado com o crime, com o agravante de que, agora, mesmo sob uma série de eufemismos, a negociação é reconhecida por lei.

Os acordos do Estado com o crime sempre existirão, mas mantê-lo em limites mínimos não desacredita o ordenamento. O que se deve propor é sempre um contrapeso para essa aproximação entre Estado e aqueles que a ele se opõem em maior grau afinal, os pequenos criminosos não conseguem dialogar com o poder público. Nesse sentido, o trabalho da imprensa, as obras literárias, as telenovelas e demais produções figurativas além, claro, dos cientistas humanos têm reiteradamente que evidenciar essa já conhecida leniência do Estado, cobrando um nível de eficácia da lei igualitário em todas as classes sociais. Mostrar os fatos ou a representação dos fatos com grande nível de hiper-realismo é a única maneira de não transformar o ordenamento jurídico, globalmente, em uma grande obra de ficção, e o Estado em alguém que, em vez de enfrentar quem desafia seu poder, curva-se a acordos e tréguas.

 


[1] Para uma ilustração sobre esse diálogo com o crime organizado, veja-se nosso RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, O Grupo de Extermínio, São Paulo: Liberars, 2020.

[2] Sobre as vantagens e desvantagens de o Estado negociar com o criminoso, no âmbito da colaboração processual, vide nosso “Delação Premiada: Limites éticos ao Estado, São Paulo: Atlas, 2019, especialmente capítulos VII e VIII.

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    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), professor convidado pela Universidade de Granada, financiado pela Fundación Carolina, e autor de Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado. Foi assessor de ministro do STF.

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