MP no debate

Sobre a reconstrução do país em tempo de pandemia

Autor

  • Ricardo Prado Pires de Campos

    é procurador de Justiça aposentado presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.

27 de abril de 2020, 13h24

Necessário esclarecer que as ideias expostas neste artigo não são a defesa de um modelo de convivência que desconsidere a saúde das pessoas, ao contrário, é imprescindível que se procure, tanto quanto possível, evitar a difusão do vírus e a proliferação da pandemia. É necessário assegurar a vida das pessoas em primeiro plano, mas, também, são necessários inúmeros outros bens para que as pessoas possam estar bem, inclusive algum grau de movimentação. O objetivo do presente artigo é discutir estratégias de conduta para durante e depois do isolamento (lockdown).

Observo que as ideias que apresentaremos levam em consideração o trabalho publicado por Tomas Pueyoi, intitulado: CORONAVIRUS: The Hammer and the Dance (de 19 de março), em sua tradução portuguesa por Tiago Cascais: O MARTELO E A DANÇA (Mar 21). O trabalho parece estar em sintonia com as recomendações da Organização Mundial da Saúde – OMS.

Nesse artigo, o autor sustenta que no início há a necessidade de um período de parada forte nas atividades (lockdown), por isso, chama de Martelo, pois, é uma verdadeira pancada na curva de transmissão do vírus, e na forma de vida como a conhecemos, e por consequência, na economia. É preciso parar a disseminação do vírus até que tenhamos uma boa compreensão do problema e possamos visualizar, planejar e implantar ações inteligentes de resposta.

Reforço na infraestrutura dos serviços de saúde, produção de respiradores, máscaras e testes rápidos são apenas algumas das medidas em curso, e que precisam ser implantadas para dar conta da nova demanda. Nas últimas semanas, novas pesquisas relataram que o vírus não apenas causa pneumonia nos pulmões, antes bloqueia sua irrigação sanguínea ii, o que é preocupante e exige adaptações no protocolo de tratamento.

Não é somente na saúde que a demanda está em alta e mudando rapidamente. Na área científica, é preciso desenvolver estudos, encontrar remédios, e testar vacinas, além de descobrir novas formas de produzir insumos para a saúde e para a vida prolongada em domicílio.

Há, também, os setores de alimentação e logística que enfrentam novos desafios. As pessoas voltaram a estocar comida e outros bens, o que andava fora de moda diante da política industrial do “just on time”. Alguns prefeitos quiseram fechar as fronteiras de sua cidade para impedir a entrada do vírus, mas não podem fazê-lo totalmente, pois, do contrário, impedirão a entrada de alimentos. O Mundo vem sendo integrado e globalizado faz bastante tempo, não será em poucas semanas que voltaremos ao ostracismo dos tempos de antanho; nem há sentido nisso. A globalização trouxe inúmeros avanços e ganhos muito significativos para toda a sociedade, mas têm algumas fragilidades, as quais precisam de correção. Não há sentido em depender de outro país para máscaras, testes e equipamentos médicos de rotina. É preciso que cada localidade tenha um certo grau de autonomia, seja no âmbito do município, estado, país ou continente. É preciso pensar estrategicamente essas questões.

Pois bem, na estratégia do Martelo e da Dança, após o confinamento inicial (lockdown), há um segundo período, do qual nos aproximamos, e que é chamado da “Dança”, porque seremos obrigados a dançar conforme à evolução da pandemia. Haverá movimentos de abertura do comércio e das atividades, seguidos de novos movimentos de fechamento, totais ou parciais, conforme as necessidades do momento. É sobre isso que precisamos começar a conversar.

Ocorre que a sociedade tem se dividido entre os adeptos do fechamento firme de um lado, e os da liberdade total de outro. No entanto, se não podemos ignorar o risco de uma liberdade inconsequente, também, é certo que não poderemos viver enclausurados eternamente.

A liberdade de locomoção passa por um momento de restrição, mas ela não será suprimida ad aeternum; ao contrário, nossa Constituição Federal manda que ela seja permitida e exercida da forma a mais plena possível. O problema é que cada época tem seus desafios, por isso, o Direito não é exato, precisa se adaptar aos diversos estágios da civilização e estar em constante evoluçãoiii.

Na fase da Dança, a liberdade aumenta ou diminui conforme à necessidade. Se a taxa de contágio estiver muito alta (R superior a 1), será preciso reduzi-la; mas, se estiver abaixo, pode haver mais liberdade.

“Tudo gira em torno do R. Se se lembrar, é a taxa de transmissão. Cedo num país normal, despreparado, é entre 2 e 3: Durante as poucas semanas que alguém está infectado, essa pessoa infecta entra 2 e 3 outras pessoas em média. Se o R for acima de 1, as infecções crescem exponencialmente criando uma epidemia. Se for abaixo de 1, morrem. Durante o Martelo, o objectivo é de reduzir o R para perto de zero, tão rápido quanto possível, para parar a epidemia. Em Wuhan, é estimado que o R era inicialmente 3.9, e depois do encerramento e quarentena centralizada, baixou para 0.32”. (CORONAVIRUS: The Hammer and the Dance; tradução de João Teixeira)iv.

Talvez, seja possível olhar essas taxas por regiões, por municípios, e não apenas o total do país. Teremos regiões muito afetadas, notadamente os grandes centros urbanos, mas outras localidades, onde a população é menor, onde a área territorial é grande, isso naturalmente reduz o contato e o contágio. Nessas áreas, a circulação e as atividades não exigem o mesmo grau de contenção que as capitais e grandes cidades.

A questão da saúde é fundamental, e a vida não permite irresponsabilidades; mas precisaremos continuar nos alimentando e consumindo outros bens necessários à manutenção da vida e de sua qualidade. Para se alimentar, precisaremos produzir alimentos, sua distribuição exige circulação. Não se pode fechar estradas. O que se pode é reduzir a circulação, dar mais ênfase ao transporte de bens do que de pessoas, mas o motorista e os carregadores terão de trabalhar.

Também, os demais setores da economia precisam produzir. Podemos adiar várias atividades (corte de cabelo por exemplo), mas não suprimir. É preciso pensar em estratégias. Essas atividades poderiam ser exercidas em menor volume: salões mais vazios, pessoas com máscaras, horário marcado para não gerar aglomerações, e outras medidas de precaução. Talvez, seja necessário fazer rodízio entre as diferentes atividades, pois, se todos voltarem podemos ter aglomerações nas ruas. No entanto, é preciso desenvolver um cronograma que permita gradativamente que todas as atividades voltem a funcionar, de outra forma, com outros cuidados, mas, em algum momento, precisarão fazê-lo.

O Estado não pode, pura e simplesmente, decidir que alguns setores da economia podem funcionar e outros não. Não compete ao Estado dizer quem serão os vencedores ou perdedores nessa crise, pois, além da saúde, também, há uma crise econômica e humanitária de proporções épicas.

Para que todas as pessoas possam ter sua sobrevivência garantida é preciso que todos, em algum momento e em igualdade de condições com os demais, tenham sua liberdade de trabalho restabelecida. Mesmo que haja restrições, as pessoas precisarão voltar a trabalhar de alguma nova forma.

Para aqueles em que o trabalho remoto é possível, o problema é menor, estão trabalhando. A produção pode estar parcialmente comprometida, mas não integralmente. No entanto, há inúmeros serviços, considerados não essenciais, em que o trabalho remoto não é possível. O que iremos fazer com os barbeiros e os salões de beleza? São atividades importantes, empregam muita gente, fazem girar a economia, mas não são classificados como essenciais, “salvo pelas mulheres”. Essas pessoas precisam voltar a trabalhar, e os clientes precisam dos serviços. Será preciso viabilizar a sobrevivência desses profissionais, e das demais profissões que estão paralisadas.

As pessoas que tiverem que ficar integralmente paradas, por força de decisão governamental, restará à sociedade o dever de indenizá-las, por força de obrigação legal ou por força da solidariedade (obrigação ética). É a situação, por exemplo, dos ambulantes, das diaristas, e de tantos outros. Cabe ao Estado e à sociedade prover meios de manter a subsistência de todos àqueles que, em razão da pandemia, estão impossibilitados de trabalhar. O pagamento de seguro desemprego ou de outra prestação financeira equivalente para os ambulantes e equiparados é fundamental. Onde o sistema de proteção social ainda não chegou, o Estado tem de criar com urgência. As diaristas, muitas, estão sendo mantidas por seus empregadores: estão recebendo sem trabalhar. É uma obrigação ética que surgiu da pandemia. Onde os empregadores não arcarem com os custos, o Estado será chamado a intervir.

Aqui cabe ressaltar o papel do Estado que alguns acreditam possa ser diminuído. As sociedades cresceram e se sofisticaram. O Estado é chamado a regulamentar quase tudo, pode até não exercer as funções diretamente, deixando à iniciativa privada, mas, nas crises sua presença se mostra imprescindível. O Estado é chamado a organizar os serviços e a pagar a conta das despesas emergenciais (emitindo títulos ou dinheiro ou queimando reservas, poupança pública); embora, posteriormente, os ônus sejam divididos com toda a sociedade.

Durante a crise é que se revela, também, a relevância do ato de poupar. Sociedade e pessoas que têm poupança podem atravessar melhor esse “inverno”, como recomendava a antiga fábula da formiga e da cigarra. Como, no Brasil, não temos riqueza generalizada, isso pressionará por maior grau de flexibilização da circulação.

É provável que o período de afastamento social prossiga por período significativo. Todavia, não será possível mantê-lo de forma absoluta, até porque isso compromete a saúde física e mental das pessoas. O Ministério Público já constatou aumento considerável de ocorrências de violência doméstica, mais um grave subproduto do confinamento.

Assim, é preciso encontrar soluções, alternativas ao isolamento absoluto. Além desse período inicial para observação do vírus e início dos estudos científicos, mais a preparação da área médica e hospitalar, será, talvez, preciso outros períodos de isolamento mais forte, mas é preciso restringir essa técnica ao mínimo necessário. Deve ser utilizada nos momentos imprescindíveis, mas não ser transformada no único instrumento de ação.

O Brasil é um país gigantesco, continental, os índices de contágio são muito diferentes em seu território. A situação de algumas capitais, extremamente populosas, inspira mais cuidados, mas ela não se repete no restante do território nacional, não no mesmo momento, nem na mesma proporção, e isso pode ser uma grande vantagem se soubermos utilizar.

Com o tráfego intermunicipal ou interestadual mais restrito, buscando um isolamento maior das áreas com altas taxas de contaminação, pode-se permitir que as áreas menos contaminadas, com taxas de transmissão baixa (R abaixo de 1,0), possam ter um grau de liberdade e funcionamento mais amplo. Não é preciso parar o território inteiro o tempo todo. Não faz sentido parar cidades inteiras onde não há casos registrados de contágio.

Com os testes rápidos será possível mapear a situação em localidades e agrupamentos e colocar em isolamento apenas quem estiver contaminado, reduzindo muito a necessidade de confinamento das pessoas.

A pandemia vem se propagando do Oriente para o Ocidente, da Ásia para a Europa, e desta para as Américas, e isso ocorre, também, dentro do Brasil. A pandemia chegou com força a área litorânea, mas ainda não se interiorizou integralmente. A parada estratégica deu um tempo nesse processo. É preciso aproveitar, enquanto a região leste está mais afetada e precisa ficar mais isolada, utiliza-se mais a região oeste, onde a situação não é tão grave.

Não há a necessidade das mesmas medidas de isolamento serem utilizadas em regiões onde o índice de contaminação e de doentes é completamente diferente. Aí, está o sentido da dança, na estratégia invocada. As restrições à circulação e ao trabalho podem e devem ser maiores ou menores conforme o andar da pandemia.

Havendo situação crítica nos hospitais, a sociedade terá de parar. Assegurar tratamento médico para todos é fundamental. Os remédios estão em estudos e diversas drogas estão em fase de testes; num futuro próximo, deveremos ter algo promissor nesse sentido. Todavia, enquanto não temos clareza sobre quais drogas utilizar, resta fazer o isolamento nas áreas onde se mostra imprescindível.

Não nos parece que o isolamento social seja fundamental nas localidades onde você não tem histórico de pessoas contaminadas, e onde os trabalhadores da saúde e suas instalações hospitalares estão em condições de pleno funcionamento. Onde o vírus já chegou, então será preciso dos testes para poder isolar apenas os contaminados; enquanto isso não ocorre resta o isolamento geral e preventivo. Não há nenhuma possibilidade de fazer isolamento por grupos de risco, como idosos e pessoas com problemas de saúde, isso é ineficaz e ilegal conforme demonstra com propriedade AIRTON FLORENTINO, no artigo intitulado “Abandono da saúde aponta para pior cenário com novo coronavírus” (Conjur, MP no debate, 23/3/2020).

Além do isolamento preventivo geral; é possível fazer por localidade ou região, conforme os dados de contaminação e a capacidade médica e hospitalar; isso enquanto não for viável individualizar as pessoas em fase de contágio.

Compete aos Governos, com os dados disponíveis, começarem a implantar um sistema seletivo de rodízio entre as diversas atividades funcionais ou entre as diversas localidades e regiões de forma a preservar o máximo das atividades possíveis, sem que se comprometa a saúde pública. Já existe anúncio de medidas governamentais nesse sentido em curso.

Estado e Municípios juntos podem fazer uma boa gestão estratégica desse problema que se apresenta como o grande desafio do século.

Por fim, que a sociedade saiba contribuir para o debate: apresentando propostas, analisando argumentos, criticando soluções insuficientes e apoiando as melhores; afinal, é a destinatária das medidas para a preservação da saúde, da economia, dos empregos, das empresas, e da própria qualidade de vida tão desafiada nesse momento. É preciso cuidado, todavia, para não ficar divulgando fake news. Notícias falsas em matéria de saúde podem colocar a vida das pessoas em risco.

Nesse momento, em que a medicina ainda não conseguiu vencer o vírus por completo, a melhor estratégia é não se contaminar.


i https://medium.com/tomas-pueyo/tagged/2nd (disponível em vários idiomas).

ii https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/04/franca-e-suica-testam-coagulantes-em-mais-de-mil-pacientes-de-covid-19/

iii ENGISCH, Karl. Introdução do pensamento jurídico. tradução de João Baptista Machado, 6a ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1988, p.173.

iv https://medium.com/tomas-pueyo/tagged/2nd; tradução de João Teixeira, acesso 25 de abril de 2020.

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