Opinião

"O Milagre da Cela 7" e os limites da crueldade e da injustiça

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

27 de abril de 2020, 14h08

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Cena de pai e filha no popular drama turco
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O filme é de chorar. O filme é para chorar. O espectador chora o tempo todo. Para a clientela Netflix “O Milagre da Cela 7”, de Mehmet Ada Öztekin, é hoje o filme mais querido, mais visto, mais comentado e mais chorado. O drama tem méritos, muitos, ainda que alguns exagerem, a ponto de classifica-lo em patamares mais altos do que o coreano “Parasita. Creio que “O Milagre” também possa ter alguns problemas estruturais, que em reflexão mais detida ofuscariam sua inegável qualidade.

Diretores norte-americanos devem ter assistido a esse filme com pontinha de inveja. Toda a tecnologia e propaganda hollywoodianas não alcançariam a beleza desse drama turco, que é realmente sedutor. Que filme!

A narrativa transita em torno de um sujeito visivelmente limítrofe, Memo, protagonizado por Aras BulutIynemli, e de sua relação com sua filha, Ova, protagonizada por NisaSofiyaAksongur. São atores que justificam tapete vermelho em qualquer cerimônia, em Los Angeles, Berlim, Cannes e Veneza. A relação é mediada pela avó, Fatma, protagonizada por CelileToyonUysal. Vivem em uma comunidade pobre da Anatólia.

A menina sonha com uma mochila vermelha, com o desenho de Heidi, personagem criada no século 19 por uma escritora suíça (JohannaSpyri). Heidi era uma órfã. Essa referência dá o tom do que ocorrerá com Ova. Que menina encantadora!
Porém, a filha de um tenente-coronel turco ganha do pai a mochila, para desespero de Memo e Ova, que não chegaram a tempo para a compra do objeto desejado.

Uma sucessão de incidentes conduz a um acidente na praia. A filha do coronel cai de um penhasco. E porque Memo estava perto dela é que se tem por certo e comprovado que é o culpado. Havia um desertor por perto, que pode ter influência no fim do filme.Preso, violentado, espancado, Memo conviverá até execução da pena (forca) em uma cela (número 7). Entra na cela como pária e escória. Ao longo do filme essa relação se transforma: é o milagre da cela 7.

O universo cosmológico do realizador do filme é o tema da injustiça absoluta, levada ao limite. Em favor desse argumento, constrói um “mise-em-scene” muito próximo da perfeição. A fotografia é deslumbrante, a passagens das cenas e sequências é feita com habilidade e bom gosto. Os enquadramentos sugerem metáforas, as aproximações captam a sensibilidade de autores em estado de graça. A música incidental completa os momentos de tensão e de relaxamento. A trilha é perfeita. Não se entrega a refrões ou bordões comerciais. A música simplesmente acontece.

A maquiagem realça com naturalismo as cenas de violência, sem apelos. Os cenários recompõem a década de 1980, quando o enredo se desdobra, com telefones verdes, cigarros acesos, maçãs-do-amor e outros itens de época. Não nos esqueçamos que boa parte do filme se passa em uma prisão turca. Há a maldita herança, de um maldito filme, “O Expresso da Meia-Noite”, que afugentou muita gente desse lindo país, a Turquia, que não deixa de ser boa parte da Grécia clássica e bizantina. Nos anos 80, perguntar se alguém já esteve em uma prisão turca, equivalia a indagar se o interlocutor já esteve no inferno. O figurino reconstrói o tempo, a exemplo das ombreiras nos vestidos da professora dedicada. Passados 40 anos, a década de 80 já é objeto de filme de época. Envelhecemos.

Os detidos na cela 7 vivem uma transformação, o que comprova nossa crença humanista de que a humanidade é boa. Há alguns oficiais (nem todos) cuja crueldade, por outro lado, comprova nossa certeza de que parte da humanidade é sádica e cruel. Ao longo do filme há também a redenção de alguns agentes da lei; afinal, o diretor não poderia perder a chance de lembrar que nem tudo está perdido. A tensão entre o humanismo de quem se supõe cruel e a crueldade de quem se espera humanidade é um dos fios condutores da psicologia do filme.

O excesso de lágrimas precisa ser justificado por algum indício de realidade ou de verossimilhança no enredo. O espectador não precisa ser penalista ou criminólogo para perceber, logo na primeira cena, que o personagem principal sofre de severas limitações. É inimputável, e o seria em qualquer sistema jurídico, ainda que apenas supostamente firmado na racionalidade, um dos pilares da criminologia, desde quando o italiano Cesare Beccaria publicou seu “Dos Delitos e das Penas”, em 1764. Já faz tempo.

A Turquia se ocidentalizou. Nos anos 20 houve uma revolução modernizadora, conduzida por Mustafá Kemal Artaturk, o fundador da moderna Turquia. Um Código Penal de 1926 substituiu a legislação criminal otomana, de inspiração religiosa. Esse código foi alterado em 2004. O artigo 32 do Código descriminaliza a conduta de quem tenha desordens mentais, impondo medidas de segurança, no lugar de penas de morte ou de reclusão.

O espectador em algum momento percebe que não há nenhum advogado no filme. Essa percepção revela o plano político de “O Milagre da Cela 7”. Tem-se uma denúncia ao regime militar vivido pela Turquia, uma silhueta por alguns retomada na onda do processo de morte das democracias, vivido em muitos lugares. A crueldade militar é gritante na construção do enredo. É um filme também militante.

O universo cosmológico do diretor esvazia-se um pouco no fecho da narrativa. Tem-se a impressão de que o fio de Ariadne foi perdido, e que diretor e roteirista hesitaram entre denunciar ou dulcificar a realidade. A transição da denúncia para a dulcificação pode ter um preço, calculado na confiança do espectador na narrativa. As lágrimas derramadas a cada cena justificam-se no plano da verossimilhança. Se o espectador desconfia que a narrativa possa seguir para um desfecho pouco provável, pode se revoltar. Não podemos perder a confiança no diretor e no roteirista.

Há um personagem aparentemente marginal, Yusuf, protagonizado por MesutAkusta, que pode ser a chave interpretativa do enredo e, ao mesmo tempo, algum resgate da verossimilhança e da realidade. É quem liga a primeira à última cena. Deve o espectador prestar a atenção na metáfora de uma árvore (reproduzida na parede da cela como um grifo neolítico) que sugere que esse personagem secundário seja a explicação de alguns mistérios. Fiquei incomodado com um lenço que vi naquela árvore. Pode ser uma pista perfeita que desvenda um gesto dramático de entrega e de holocausto. Pode ser uma pista falsa, um deslize do contrarregra, o que indicaria a indecisão do diretor e do roteirista.

Em “O Milagre da Cela 7” há vários mistérios. É o que faz o espectador não conseguir se mexer. Porém, para que as lágrimas sejam justificadas, há necessidade de verossimilhança e de realidade. Algum desprezo para com essa necessária fidelidade pode incomodar o espectador.

No entanto, ao fim do filme, entendendo ou não o que aconteceu, confirmamos que o mundo é injusto. Essa me parece a mensagem central de “O Milagre da Cela 7”. É essa injustiça que nos faz chorar. Chora-se o tempo todo porque o diretor nos lembra que o mundo é injusto. O filme desperta o inconsciente para essa realidade, que deve ser consciente, ao invés de negada, porque somente assim pode ser combatida.

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