Opinião

Judicialização deve assegurar direitos sem infantilizar a política

Autor

  • André Augusto Salvador Bezerra

    é juiz de Direito em São Paulo professor no curso de mestrado profissional da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados mestre doutor e pesquisador com pós-doutorado concluído na Universidade de São Paulo (USP).

27 de abril de 2020, 19h27

O fenômeno da judicialização das políticas públicas já se faz sentir nestes tempos de pandemia decorrente da Covid-19. Os meios de comunicação de massa noticiam, praticamente de forma diária, decisões judiciais que alteram os rumos de ações ou inações estatais para conter a propagação da moléstia que tem infectado, de forma inédita no presente início de século XXI, milhões de pessoas em todo o mundo.

Não é de se surpreender a judicialização em um país como o Brasil, onde, desde a redemocratização sucedida na década de 1980, as principais decisões acerca dos seus rumos políticos são levadas ao Judiciário. Sempre importante lembrar que tal protagonismo configura, sobretudo, uma opção das elites do Executivo e do Legislativo (da situação ou da oposição a governos), bem como de cidadãos e entidades da sociedade civil que, frequentemente, utilizam-se dos instrumentos processuais previstos na vigente Constituição, para que a atividade jurisdicional interfira na forma e no conteúdo de atos normativos ou governamentais.

A judicialização na pandemia: alguns exemplos
No âmbito da ocorrente judicialização sob a pandemia, o presente texto realça inicialmente quatro decisões, citando-se, mais adiante, uma quinta. Tal destaque deve-se ao fato de os atos decisórios revelarem a diversidade de estratos populacionais que podem ser alcançados quando o Judiciário é chamado a garantir direitos em tempo de elevada contaminação da Covid-19: crianças, trabalhadores, religiosos e, no caso de propaganda governamental, toda a população.

Das quatro decisões de início aludidas, duas foram proferidas no estado de São Paulo, primeira localidade atingida pela pandemia e que, em termos numéricos, é a que mais sofre de suas consequências. Cita-se um ato proferido no Rio de Janeiro, por colocar ao debate os limites do direito ao culto religioso no ente da Federação cuja capital é o centro de conflitos em torno da defesa do caráter laico estatal, ao menos desde a última eleição para a prefeitura. Por fim, há menção a uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelo fato de evidenciar que a temática em análise está também sucedendo em controle concentrado de constitucionalidade.

Aludem-se a mandamentos de vários graus de jurisdição, deixando claro que os elementos em comum dos atos judiciais independem da instância decisória (ainda que os de instância inferior estejam sujeitos à pronta reforma, o que não desmerece sua importância). Outrossim, menciona-se ordem oriunda da Justiça do Trabalho, o que explicita a relevância deste ramo do Judiciário na proteção das classes historicamente subalternas, em que pese o ataque que vêm sofrendo pelos detentores do poder econômico do país.      

Procedidas as necessárias advertências, cita-se, primeiramente, tutela provisória de urgência proferida pelo Juiz Adriano Laroca, da 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital de São Paulo, em Ação Civil Pública (processo nº 1018713-46.2020) ajuizada pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público de São Paulo. Ambas as instituições impugnam a opção dos governos estadual e municipal em garantir, durante a suspensão de aulas para conter o contágio da Covid-19, a segurança alimentar apenas a crianças cujas entidades familiares estão cadastradas no programa federal do Bolsa Família. Na aludida decisão, o magistrado determinou o fornecimento de alimentação escolar a todos os alunos de educação básica das redes públicas municipal e estadual, assim o fazendo com base na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e na Lei do Programa de Alimentação Escolar. 

Saindo da primeira instância e alcançando a cúpula do Judiciário, menciona-se medida liminar, proferida no Supremo Tribunal Federal, nos autos de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (processo nº 669- DF) ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos e pela Rede Sustentabilidade. O relator do caso, o ministro Luís Roberto Barroso, vedou a veiculação de peça publicitária promovida pelo governo federal intitulada 'Brasil não pode parar", salientando que tal campanha seguia o sentido contrário ao alertado pelas autoridades técnico-científicas mundiais e nacionais acerca da gravidade da pandemia. O relator baseou-se expressamente nos direitos à vida, à saúde, à informação, à moralidade, à probidade, à transparência e à eficiência, previstos constitucionalmente.

Em sede de segunda instância, destaca-se a proibição de culto, determinada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em tutela de urgência proferida nos autos do agravo de instrumento (nº 0060424-05.2020) interposto pelo Ministério Público estadual, autor de Ação Civil Pública ajuizada para tal escopo proibitivo. O relator do ato, o desembargador Sérgio Seabra, apontou a possibilidade de se restringir a liberdade de crença e culto, previstos na Constituição, para preservar a vida e a saúde, direitos de igual índole constitucional, ameaçados pela conglomeração de pessoas sob uma pandemia a ser enfrentada pelo isolamento social.

Por fim, ingressa-se no primeiro grau da Justiça do Trabalho para se mencionar a tutela de urgência proferida na 5ª Vara do Trabalho de São José dos Campos, em ação coletiva movida por sindicato em face da sociedade de economia mista Urbanizadora Municipal Urbam S/A e do referido município como responsável subsidiário (processo nº 0010378-067.2020). Realizando controle de convencionalidade a partir da Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o juiz Bruno da Costa Rodrigues determinou que as requeridas fornecessem a seus empregados, que não podem aderir ao isolamento, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) como luvas e máscaras. E mais: para evitar o contágio pela Covid-19, legitimou ainda eventual recusa dos trabalhadores em exercer suas funções caso não recebam as EPIs.  

Como se vê, a despeito da diversidade de graus e de ramos de jurisdição acima aludidos, as decisões exemplificadas esclarecem como o Judiciário pode ser acionado para reparar ações e omissões oficiais na garantia da saúde e da vida de cidadãos, bases de toda sistemática dos direitos humanos reconhecidos pelo próprio Estado violador. Em nenhuma delas, substituiu-se aleatoriamente alguma prioridade advinda de típica escolha política de outra função estatal. O Judiciário simplesmente colocou-se como garantidor da ordem jurídica em situações conflituosas, o que está inserido nas suas funções constitucionais. 

A infantilização da política
Não se pode, contudo, pecar pela ingenuidade e desprezar o problema que a judicialização pode gerar. Como bem lembrado por Jürgen Habermas em seu Direito e Democracia, a atuação do Judiciário no controle sobre os atos dos demais poderes tem também o potencial de substituir a gestão pública pelo paternalismo de juízes, de modo a infantilizar a política e, portanto, o Executivo e o Legislativo.

É necessário, então, lembrar o que deveria ser óbvio: a democracia necessita da política. Afinal, é do campo político que advêm as decisões fundamentais acerca dos rumos que a sociedade deve seguir; é deste campo que prioridades são tomadas para o enfrentamento dos problemas sofridos pela população, inclusive o decorrente do coronavírus; é deste campo, enfim, que surgem os direitos a quem os juízes devem assegurar.

Alguns desses mesmos direitos a serem assegurados configuram, por seu turno, a garantia da própria política: voto universal e secreto em eleições periódicas, funcionamento de partidos políticos e oportunidades igualitárias de acesso às funções estatais a todos os cidadãos, entre outros. Tudo isso a demandar, para a efetivação, gastos públicos, tal como acontece em relação aos demais direitos vigentes, com a peculiaridade de serem necessários para que a democracia (e, portanto, as liberdades cidadãs) se mantenha.

Ora, vive-se em um momento em que as autoridades pertencentes a partidos políticos e eleitas democraticamente pelo sufrágio universal, nos entes federativos, não conseguem oferecer alternativas seguras para tratar da propagação da moléstia. É tentador, então, sob a ótica do senso comum, passar a enxergá-las como obstáculos aos problemas atravessados, vendo, assim, como desperdício, os gastos por elas gerados. É tentador, ademais, sob o mesmo ponto de vista, querer assumir o lugar dessas autoridades na implementação de políticas, embora sem nenhuma espécie de planejamento orçamentário e gerencial.

Ocorre que a atribuição jurisdicional de garantir direitos não se faz pelo voluntarismo paternalista. Pelo contrário, faz-se pelo respeito, dentre outros, às instituições democráticas e aos fundamentos que as sustentam, tidos por imprescindíveis à democracia: por exemplo, salário de parlamentares existe para possibilitar que não apenas os endinheirados tenham acesso ao Legislativo (e, portanto, na elaboração de normas decorrentes da pandemia); o fundo partidário foi criado para que os partidos não fiquem nas mãos do financiamento lobista privado (que pode contrapor-se à saúde pública); os gastos em eleições são necessários para o respeito às escolhas populares, etc.

Nada disso é desperdício. Nada disso viola algum princípio constitucional. O que há são gastos decorrentes de escolhas políticas tomadas por uma sociedade madura e que, como tal, deve tratar, com o mesmo amadurecimento, instituições formadas por pessoas maiores e capazes.

Daí a importância da decisão proferida pela presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em sede de pedido de suspensão de liminar formulado pela União Federal (processo nº 1009299-18.2020). Em tal ato, o desembargador Carlos Moreira Alves impediu o bloqueio judicial de fundo eleitoral, ressaltando, como fundamento, que o combate à pandemia deve ser realizado por ações coordenadas de todas as esferas federativas do poder público, com respeito à suas atribuições constitucionais, restando ao Judiciário intervir apenas excepcionalmente.

Tem-se, pois, uma orientação das possibilidades e limites da judicialização das políticas em tempos de elevado contágio pela Covid-19: parlamentos e governos atuando com autonomia e independência, sob o controle jurisdicional decorrente do sistema de freios e contrapesos.

Garantir direitos sem heroísmo
A despeito de sua relevância em ocasião de apelo crescente ao Judiciário, a conclusão do ato decisório acima mencionado relaciona-se, na realidade, à conclusão clássica decorrente da missão constitucional atribuída à atividade dos juízes. Sob a perspectiva teórica, não há novidade.

Claro que nem sempre é fácil verificar os limites entre garantir direitos e respeitar as escolhas políticas do Legislativo e Executivo. Trata-se, aliás, de situação que se torna mais complexa agora em que parlamentos e governos, de todas as unidades da Federação, legislam e promovem medidas excepcionais para conter a pandemia. Aqui é de ressaltar a advertência de Mauro Cappelletti, em seu "Juízes legisladores?", para quem o fortalecimento do Judiciário é uma exigência democrática de controle quando do fortalecimento das demais funções estatais.

De toda forma, a mencionada decisão do TRF1, somada aos quatro atos decisórios também citados no início deste texto, apontam caminhos que podem ser seguidos pelos juízes, com técnica e serenidade, sem voluntarismos paternalistas (mesmo repletos de boas intenções). 

Nunca é demais lembrar o descabimento do heroísmo na magistratura.  A história recente revela que o heroísmo, praticado a pretexto da incapacidade dos membros dos poderes do Estado, beneficia tão somente pretensões políticas pessoais. A democracia não precisa de heróis, mas de respeito à Constituição e aos documentos internacionais que definem os direitos humanos normatizados.

Como bem pontuado por Habermas, em recente entrevista veiculada no diário francês Le Monde, "os direitos fundamentais proíbem os órgãos estatais de tomar qualquer decisão que aceite a possibilidade de morte dos indivíduos". Eis a vedação básica que cabe ao Judiciário fazer cumprir, como função institucional. Não é pouco.

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