Opinião

Filtro interpretativo para os contratos da Lei 8.666/93

Autores

  • Rafaella Guzela Peçanha

    é advogada no Escritório XVBM Advogados e especialista em Negócios do Setor Elétrico pela FGV-SP.

  • Estevan Pietro

    é advogado mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Coimbra (FDUC/Portugal) especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (Ibet/SP) especializando em Regulação Pública e Concorrência pelo Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre/Portugal) pesquisador do grupo de pesquisa em Direito Administrativo Sancionador do IDP/DF e membro das Comissões de Direito Administrativo e de Relacionamento com o Poder Legislativo da 22ª Subseção da OAB/SP (São José do Rio Preto).

26 de abril de 2020, 13h16

A atual pandemia exige do operador do Direito Público apuração para utilizar ou mesmo criar ferramentas para resolução de problemas inéditos. Com efeito, é comum o anseio por arranjos normativos que disciplinem, de modo fiável, as condutas elegíveis por agentes públicos e particulares parceiros da Administração para responder aos novos desafios.

Tal anseio, já agravado pela intensificação da regulação econômica e social, mostra-se mais proeminente ante a intensa multiplicação de atos legislativos e regulamentares. A necessidade de produzir respostas rápidas associadas as mutações dos cenários sociais coloca o Direito Público em movimento, muitas vezes dificultando seu manejo.

A constatação é clara na crise atual. Discussões sobre execução de contratos administrativos se alastram. Há verdadeiro bombardeio de atos da Administração visando a internalizar a Covid-19 para relação contratual. As formas são as mais inventivas contexto que exige um guia fiável para nortear ações e barrar eventuais arroubos. Para tanto, existe a Lei n. 8.666/93, desde que lida e interpretada com devidos cuidados. A técnica redacional é o início.

A Lei Complementar n. 95/98 apresentou a técnica legislativa e redacional como essencial à elaboração das disposições do ordenamento jurídico, exigindo que normas sejam feitas com clareza, precisão e ordem lógica (artigo 11). Essas características precisam ser anabolizadas para construção de ferramenta de filtragem interpretativa eficiente. A ordem lógica, por exemplo, precisa ir além dos ditames redacionais (artigo 11, inciso III). Ela deve estimular o despertar do interprete para se atentar ao caminho constitucionalmente mapeado na Lei n. 8.666/93.

Soma-se a ideia de que definições, conteúdos, extensões de institutos, conceitos e formas de direito privado não serão alterados quando usados pelo Direito Público. O Código Tributário Nacional é expresso quanto a essa respeitabilidade (artigo 110, CTN). Nem sempre se constata esse acatamento pelos intérpretes do Direito Administrativo. A importação merece cuidado em seu manuseio, sob pena de desnaturação e a Lei n. 8.666/93 reflete esse cuidado.

O Capítulo III da Lei n. 8.666/93 dedica-se com exclusividade aos contratos administrativos. Nas disposições gerais (Seção I), o artigo 54 já esclarece que, supletivamente, serão aplicados os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado. Por essa razão, conceitos como caso fortuito e força maior (inexistindo diferença quanto a consequência imposta) e onerosidade excessiva serão aplicados e trabalhados in natura.

O artigo 57 dedica-se com exclusividade a duração dos contratos administrativos. O seu §1° apresenta rol de exceções capazes de relativizar a duração de execução contratual, contando com hipóteses passíveis de internalizar os efeitos da Covid-19 das mais diferentes formas, incluindo a onerosidade excessiva e o fato do príncipe (artigo 57, §1°, incisos II e III). Qualquer das hipóteses possui resguardo ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Caso fortuito ou força maior são conceitos tratados apenas na Seção V como motivo para rescisão contratual (artigo 78, inciso XVII) feita unilateralmente pela Administração (artigo 79, inciso I). Assim, acreditar que todos os efeitos ocasionados pela Covid-19 serão caracterizados como caso fortuito ou força maior é desconhecimento do que se manuseia. E mais: o caput do artigo 78 autoriza a rescisão, mas não impõe. Alguns incisos até restringem este desfecho.

A suspensão de execução do contrato por prazo superior a 120 dias (artigo 78, inciso XIV) ou atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração em razão de obras, serviços e fornecimentos já recebidos ou executados (inciso XV) são causas de rescisão.

Todavia, estado de calamidade pública é hipótese para afastar a rescisão contratual mesmo que a suspensão ou o inadimplemento extrapolem tais limites temporais. Isso ante manifestação de interesse do particular em preconizar pela suspensão até a normalização da situação extraordinária.

Caso a rescisão do contrato ocorra, isto implicará na devolução da garantia (quando presente) e nos pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão e custo da desmobilização, além do ressarcimento de prejuízos comprovados que houver sofrido (artigo 79, §2°, Lei 8.666/93). Não suficiente, se a rescisão se der sob a justifica de interesse público (artigo 78, inciso XII), a Administração terá de indenizar não apenas os danos emergentes, mas igualmente os lucros cessantes, nos moldes do artigo 402 CC/02 (Resp 1232571, ministro Mauro Campbell Marques, DJe 31/3/2011).

As interpretações são vastas e poderão levar à miríade de resultados quase sempre prejudicais as partes, em especial a Administração. Daí que, assim como no Direito Privado, quando possível, a revisão deve se sobrepor a resolução (artigo 479 CC/02).

Em tempos incertos, a manutenção do contrato com as ferramentas dispostas no ordenamento tende a ser mais profícua ao interesse público, a boa-fé objetiva e aos deveres de cooperação e solidariedade. É necessário evitar, mediante proatividade e técnicas consensuais, a antiga lógica de condutas antagônicas de omissão e negação que desprestigia as contratações públicas e agrava desequilíbrios econômico-financeiros.

Alguns autores defendem que a boa-fé objetiva (artigo 422 CC/) aplicada aos contratos administrativos (artigo 54 L. 8.666/93) imprime o dever de renegociar contratos desequilibrados. Tal dever não seria necessariamente quanto ao resultado, mas ao comportamento adotado pelas partes, mesmo que o Direito brasileiro ainda silencie sobre casos de omissão.

Assim, como bem registra Marçal Justen Filho, "omitir-se em examinar a dimensão dos reflexos da pandemia não é uma solução jurídica admissível, quer para a Administração, quer para o próprio particular". Em vista dos atuais desafios, ao Administrador não cabe postura inerte. Parece ser esta a atual interpretação da Lei n. 8.666/93, validada pelo filtro axiológico da Constituição e pelas diretrizes da LINDB.

Alice, personagem emblemático de Lewis Carroll, relatava que ao ler os contos de fadas fantasiava sobre aquele tipo de coisa que nunca aconteceria. Mas, de repente, ali estava ela vivendo uma dessas coisas tal como nós, que vivemos um conto até ontem fictício e que persiste incerto quanto aos próximos capítulos. Nesse cenário de grandes incertezas, ao menos nas contratações públicas existe prelúdio confiável para o dia seguinte.

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