Opinião

A quem interessa a (in)constitucionalidade da Medida Provisória 936?

Autores

  • Jeibson dos S. Justiniano

    é membro do Ministério Público do Trabalho professor assistente de Direito Empresarial da graduação da UEA e doutorando pela UFMG.

  • Lívia Mendes M. Miraglia

    é advogada coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e tráfico de pessoas da FDUFMG professora adjunta de Direito do Trabalho da graduação e da pós-graduação da UFMG e pós- doutoranda pela UNB.

26 de abril de 2020, 6h32

Há algumas semanas o mundo se encontra em suspenso. Suspenderam-se os compromissos, postergaram-se as agendas, cancelaram-se as viagens e proibiram-se os encontros. As atividades passaram a ser desenvolvidas pelos meios virtuais, as pessoas reinventaram formas de sobreviver e interagir, as empresas foram obrigadas a repensar e buscar formas de sobreviver e continuar. O mundo se encontra em suspenso ao mesmo tempo em que busca incessantemente compreender o que aconteceu, desenvolver uma vacina, evitar o contágio em massa, promover o distanciamento social e impedir o colapso da economia.

Nesse cenário, também o Direito deve se reinventar a fim de cumprir o seu papel de servir à sociedade, produzindo respostas rápidas e eficazes que garantam patamares de segurança jurídica, mas sem se esquecer que a Constituição, a dignidade, a cidadania e a democracia não se encontram "em suspenso". É preciso, mais do que nunca, garantir a harmonização e o sopesamento dos princípios fundamentais do Estado Democrático insculpidos no artigo 1º, IV: o valor social do trabalho e da livre iniciativa.

É diante dessas premissas que se propõe analisar a (in)constitucionalidade da redução proporcional da jornada e do salário e a suspensão dos contratos de trabalho como medidas flexibilizadoras de direitos trabalhistas com vistas a compensar o cerceamento da livre iniciativa imposto pela pandemia da Covid-19.

Nas horas finais do dia 1º de abril, publicou-se a Medida Provisória n. 936, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, dispondo sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março.

A MP explicita que seu objetivo é tentar harmonizar a situação vigente, preservando o emprego e a renda ao mesmo tempo em que garante a continuidade das atividades laborais e empresarias, reduzindo o "impacto social decorrente das consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública". Nesse sentido, propõe que possam ser adotadas duas medidas, além daquelas já permitidas pela Medida Provisória n. 927/20, a redução proporcional de jornada e salário e a suspensão do contrato de trabalho.

Em primeiro lugar, importa ressaltar que a discussão acerca da (in)constitucionalidade da MP deriva da possibilidade instituída de redução salários e suspensão dos contratos mediante acordos individuais.           

Isso porque, embora o princípio da irredutibilidade salarial seja um dos basilares do Direito do Trabalho brasileiro e vigore como norma constitucional fundamental, o próprio inciso VI do artigo 7º da Constituição permite a redução de salários por meio de negociação coletiva exigindo como contrapartida a "proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo", nos termos do §3º do artigo 611-A da CLT.

Quanto à suspensão dos contratos, o artigo 476-A da CLT já previa a hipótese de o empregador suspender o contrato de trabalho com a consequente suspensão dos salários, por período de dois a cinco meses para  qualificação profissional do empregado, desde que autorizado por acordo ou convenção coletiva de trabalho.

 É de se ver que a possibilidade de flexibilizar direitos trabalhistas, inclusive com a redução ou suspensão de salários, já existe em nosso ordenamento jurídico e poderia estar sendo utilizada como medida para harmonizar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa caso tivéssemos uma estrutura sindical fortalecida e atuante. Sabe-se, contudo, que a atuação coletiva há muito vem sofrendo ataques e desmontes, tendo-se enfraquecido nos últimos anos.

Talvez seja hora de se repensar o importante e imprescindível papel das entidades sindicais que ao se reinventar na crise poderão se fortalecer, mostrando que estão dispostos a dialogar e a lutar pelos direitos daqueles que são o motivo de sua existência: os trabalhadores.

Em segundo lugar, cumpre destacar que se o governo brasileiro tivesse adotado medidas semelhantes a de outros países que permitiram a redução de salários ou suspensão de contratos trabalhistas pelas empresas, mas estabeleceram subsídios capazes de garantir boa parte do valor da renda do trabalhador, a discussão acerca da (in)constitucionalidade da MP n. 936/20 também não teria razão de ser. A Holanda, por exemplo, garantiu o pagamento de 90% do salário dos trabalhadores de empresas que perderam, pelo menos, 20% da receita, por três meses, determinando ainda a estabilidade no emprego. Portugal, por sua vez, adotou a suspensão de contrato, mas com a manutenção de 70% do salário do trabalhador, além da isenção da contribuição para seguridade social.

O modelo adotado pelo governo brasileiro, em muitos casos, poderá ensejar reduções drásticas nas rendas mensais dos empregados, variando entre 5% até 70%.

Segundo Vólia Bonfim, no caso de redução proporcional de jornada e de salário para aqueles que recebam até R$ 1.045, haverá a garantia integral do montante mensal recebido, de modo que a autora entende que, apenas para esses empregados, a MP não é inconstitucional. Para os empregados que se encontram na faixa salarial entre R$ 1.045 a R$ 3.135, a perda seria de 5%, 10% ou 14% do valor mensal do salário, a depender dos percentuais utilizados para a redução (25%, 50% ou 70% de acordo com a MP). Já para aqueles que percebam acima de R$ 3,135, a renda poderá cair até 65%.

No caso da suspensão do contrato de trabalho, as implicações na renda do empregado são ainda mais severas. Imagine-se, por exemplo, a seguinte situação: empregado de empresa com receita bruta anual até R$ 4,8 milhões que recebe salário de R$ 3.135 e tem seu contrato suspenso. Esse empregado, nos termos do artigo 12, inciso I, da MP n. 936/20, terá direito ao valor de R$ 1.813,03 (valor do teto do seguro-desemprego) durante o período (máximo) de 60 dias, o que representará uma redução de 42,16% do valor da sua renda.

Constata-se, portanto, que a Medida Provisória poderá gerar situações de extrema vulnerabilidade para os trabalhadores, o que enseja discussão séria, racional, equilibrada e de cunho jurídico-constitucional da norma.

Talvez seja esse o momento adequado para se repensar também o modelo estatal ultraliberal proposto pelo governo, refletindo-se acerca da necessidade de um novo modelo capitalista baseado em políticas de bem estar social.

Destaque-se mais uma vez que, embora o mundo esteja "em suspenso", a Constituição e a democracia não estão. E, embora a decretação do estado de calamidade permita a flexibilização de alguns direitos fundamentais, entre eles a limitação ao direito de ir e vir que nos foi imposta pelo isolamento social, não se pode olvidar que as normas constitucionais devem ser observadas, respeitadas e garantidas, principalmente quando se dirigem àqueles que são mais vulneráveis e hipossuficientes.

Nesse sentido, ainda que nos pareça óbvia a inconstitucionalidade da norma que permite a redução proporcional de jornada e de salário e a suspensão de contratos de trabalho por meio de acordos individuais, cabe sopesar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e refletir se a declaração jurídica de sua inconstitucionalidade pelo STF alcançará a finalidade do ordenamento jurídico de proteção do ser humano e de sua dignidade.

Afinal, trata-se de situação de excepcionalidade, sem precedentes, de nível mundial e que já se sabe ser transitória e temporária. Assim, cientes que a própria MP estabeleceu como prazo máximo de aplicação das medidas o período de 90 e 60 dias, questiona-se a viabilidade jurídica, eficácia e a eficiência da declaração de inconstitucionalidade da redução de salário e da suspensão do contrato por acordo individual.

Não se pode olvidar que as medidas de distanciamento social estão cerceando e até impedindo a iniciativa privada de desenvolver suas atividades econômicas, relativizando o valor fundamental da livre iniciativa. Entretanto, é preciso encontrar solução que garanta o respeito à dignidade do trabalhador, mantendo-se "patamares mínimos civilizatórios", dentro do contexto atual.

Em outras palavras mais singelas e simples , o que se pretende é questionar se, diante de fechamentos de empresas, de demissões em massa e do aumento escalonado do índice de desemprego, não seria melhor estabelecer interpretação conforme da MP n. 936/20 que garanta os efeitos pretendidos por ela de manutenção do emprego e da renda de forma razoável e digna?

Perceba-se que a própria MP reconheceu o papel essencial do sindicato nesse momento, ressaltando a validade dos acordos e convenções coletivas fora dos seus parâmetros delegando-lhes, assim, ampla margem de atuação. Ademais, o artigo 12 § 4º da MP estabeleceu a necessidade de comunicação pelo empregador ao respectivo sindicato laboral no prazo máximo de dez dias a contar da data da celebração dos acordos individuais.

Nesse ponto, ao nosso ver, andou bem a decisão em sede de liminar na ADI 6363, posteriormente confirmada na decisão dos embargos declaratórios opostos pelo Advogado Geral da União, de lavra do ministro Lewansdosky. Em ambas as decisões, o magistrado desenvolveu interpretação conforme a Constituição para dar guarida e constitucionalidade à MP, determinando que o ato de comunicação ao ente sindical é convalidatório dos acordos individuais firmados. De acordo com o ministro, a entidade sindical ao receber a comunicação do acordo individual poderá concordar tácita ou expressamente ou, caso discorde dos termos do acordo, poderá deflagrar processo negocial coletivo.

Embora, no julgamento da liminar em 17 de abril de 2020, o ministro Lewansdosky tenha ficado vencido pela maioria que adotou a tese de que os acordos individuais são válidos independentemente de ratificação dos sindicatos, cabe frisar que o artigo 8º, III, da Constituição determina que ao sindicato "cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas".

A Constituição também estabelece, no artigo 127, que deve o Ministério Público do Trabalho atuar na "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis", cabendo-lhe firmar TACs e ajuizar ACPs quando verificado abusos e violações de direitos.

Nesse sentido é que se afirma a imperiosidade da observância dos princípios da lealdade, boa-fé, ponderação e proporcionalidade por parte dos empregadores, sob pena de invalidade dos acordos individuais que, poderão incluive vir a ser declarados nulos pelo Judiciário Trabalhista. Cabe aos sindicatos e ao MPT realizar esse controle e impedir que situações aviltantes de aproveitamento descabido do poder econômico se consolidem. Nessa esteira, entende-se que a análise da constitucionalidade e legalidade do ato deve ser feita à luz do quadro-realidade de cada empresa.

Deve-se atentar às premissas da necessidade, adotando-se, entre as soluções possíveis, a menos gravosa para atingir o objetivo, e da proporcionalidade em sentido estrito, impondo-se a análise da relação custo/benefício da medida aplicada, de modo que o ônus imposto seja inferior ao benefício alcançado, sob pena de inconstitucionalidade.

Assim, propõe-se a aplicação gradativa das medidas criadas pelas MPs. Em primeiro lugar, caberiam aquelas que não afetam o salário dos empregados, como o teletrabalho, a antecipação de férias e feriados e/ou a criação de banco de horas, nos termos da MP n. 927/20. Apenas em última hipótese e em casos extremos caberiam as medidas da MP n. 936/20 de redução proporcional de jornada e salários ou da suspensão do contrato (observando aqui também a gradação).

Saliente-se, uma vez mais, ser indubitável, em tese, a inconstitucionalidade da redução de salário e da suspensão dos contratos por meio de acordos individuais. Não obstante, as prognoses legislativas que foram consideradas para a edição da MP n. 936/20 não podem ser desconsideradas, pois decorrem do conjunto complexo de circunstâncias fáticas que impedem a humanidade de desenvolver com normalidade suas atividades econômicas, sociais e profissionais, em decorrência da Covid-19.

Vê-se, assim, que a MP n. 936/20 passa pelo crivo do controle de constitucionalidade por meio da aplicação da técnica de interpretação conforme à Constituição ou da técnica da "lei ainda constitucional", já adotada pelo STF no sistema de controle de constitucionalidade em situações onde circunstâncias fáticas vigentes sustentam a manutenção das normas questionadas dentro do ordenamento jurídico. A norma ainda constitucional configura um transitório estágio intermediário, situado entre os estados de constitucionalidade e de absoluta inconstitucionalidade (RE 341.717-SP).

Em qualquer caso, deve-se sempre garantir, nos termos do artigo 12 da própria MP, a comunicação dos acordos individuais aos sindicatos que detêm, assim como o MPT, o múnus constitucional de realizar o controle a posteriori desses atos, a fim de garantir o respeito aos direitos fundamentais trabalhistas, à dignidade e à democracia.

Nesse sentido é que se entende que a ninguém interessa na atual conjuntura a declaração de inconstitucionalidade da MP n. 936/20 pelo pleno do STF. É que, tendo-se passado algumas semanas desde a sua vigência e tendo em vista o cenário de mudanças diárias na situação fática do país, das empresas e das pessoas, a declaração de inconstitucionalidade desse ato normativo traria apenas mais insegurança jurídica e incertezas quanto ao futuro (das empresas e dos trabalhadores).

É preciso, contudo, que se realize um controle individual e casuístico de cada acordo firmado pelas instituições responsáveis a fim de se evitar que o momento seja aproveitado por aqueles que, de má fé, desejam apenas e simplesmente reduzir direitos trabalhistas sem qualquer motivação real e genuína.  

Assim, destaca-se que a MP n. 936/20 deve ser aplicada com todos os balizamentos aqui defendidos enquanto perdurarem as prognoses legislativas que ensejaram a sua adoção pelo Poder Executivo Federal. Tão logo cessem as medidas de distanciamento social e o estado de calamidade, as medidas de redução de salários ou suspensão do contrato de trabalho não poderão ser celebradas mais por acordos individuais.

Por fim, a harmonização dos princípios fundamentais da valorização do trabalho e da livre iniciativa apenas se concretiza quando todos os atores sociais, empresas, sindicatos, trabalhadores e Estado agem, principalmente em circunstâncias nebulosas, tensas e desfavoráveis com boa-fé, bom senso, proporcionalidade, razoabilidade e justiça.

Referências bibliográficas
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 87.585. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886604>. Acesso em 14 abr. 2020.

______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 341.717-SP. Relator: Ministro Celso de Melo. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo272.htm>. Acesso em    12 abr. 2020.

CASSAR, Vólia Bomfim. Medida Provisória 936/20 – Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Disponível em>  https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/medida-provisoria-mp-936-20-programa-emergencial-de-manutencao-do-emprego-e-da-renda. Acesso em 13 de abril de 2020.

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