Opinião

Violência doméstica, pandemia da Covid-19 e novos desafios

Autores

  • Samara Aguilar

    é advogada civilista especialista em Direito de Família e Direito Difuso e Coletivo e sócia do escritório Aguilar & Jordão Advogados.

  • Clarissa Höfling

    é advogada criminalista sócia do escritório Höfling Sociedade de Advogados especialista em Direito Penal econômico pela FGV e Universidade de Coimbra e em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito. Presidente da 4ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP.

26 de abril de 2020, 9h24

A violência contra a mulher é um problema histórico e cultural que assola não só o Brasil, mas o mundo. O aumento da sua incidência em tempos de isolamento social para conter a pandemia, assusta, e coloca em risco tudo o que já se evoluiu em termos de repressão e prevenção até aqui.

É dizer, se considerarmos que a humanidade passou a tutelar e positivar sobre os direitos humanos apenas após a Segunda Guerra Mundial [1], é expressivo o que já se avançou até os dias de hoje, no que se refere ao combate à violência de gênero.

Afinal, vale lembrar que, em nível global, a necessidade de proteção a esse grupo específico só foi constatada nas últimas décadas do século XX, quando se notou que a genérica expressão de "igualdade entre todos", na prática, não se aplicava ao caso das mulheres.

Foi, pois, com o advento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher [2], na órbita das Nações Unidas, a Declaração de Pequim [3] e, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, a criação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher [4] que tal tema passou a ter relevância no mundo.

No Brasil, como é cediço, só em 2006, após a condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Maria da Penha, é que surgiu a chamada Lei Maria da Penha.

O que se constata, portanto, do panorama geral acima explanado é que a sociedade evoluiu sobremaneira a respeito do tema em muitos países do mundo.

Já prestes a debutar, a Lei Maria da Penha se mostra tão eficaz em território nacional que não só pune criminalmente os vários tipos de violência contra a mulher (física, sexual, psicológica e patrimonial) como também prevê uma série de medidas protetivas que afastam imediatamente o autor dos fatos da vítima.

Além de medidas de afastamento compulsório, a Lei Maria da Penha também assegura a proteção patrimonial dos bens da mulher, prevendo até mesmo o recebimento de alimentos provisórios, tudo a tentar dar condições efetivas para que a vítima se afaste do ciclo de violência.

Preocupa muito, nesses moldes, em contraposição a tudo o que já se evoluiu até aqui, o aumento devastador dos números de violência doméstica depois da pandemia no novo coronavírus.

Sim, pois está a se observar, pelo mundo, que os números vêm crescendo a cada dia mais, não obstante, em outros locais, venham tantas mulheres se calando, por receio de seu agressor, agora tão próximo, em isolamento social.

Na China, por exemplo, contabilizou-se um aumento em três vezes da quantidade de denúncias recebidas depois do coronavírus [5].

Em nações europeias, esse aumento também tem se mostrado considerável. No Reino Unido, o número de telefonemas ao serviço nacional de denúncia cresceu em 65%. Na Espanha, o número de emergência para violência recebeu 18% mais ligações nas duas primeiras semanas de bloqueio, comparado com o mesmo período no mês anterior. Na França, a polícia registrou um aumento nacional de cerca de 30% na violência doméstica.

No Brasil, esse aumento já está em torno de 18%, segundo a ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher [6], tendo o canal 180, que recebe denúncias dessa ordem, recebido um aumento de 8,5% [7].

Veja-se que muito provavelmente esses números ainda não refletem a verdadeira realidade, na medida em que a maioria das vítimas, em confinamento com seus algozes, obviamente têm se sentido acuada em denunciar.

Não à toa, por exemplo, a Itália chamou a atenção para o fato de que, desde que imposta a quarentena pelo seu governo, em 9 de março, os telefones que recebem ligações de mulheres agredidas silenciaram-se.

Ora, teria o confinamento cessado essa violência? Obviamente que não. Muito pelo contrário, submetida a confinamento ao lado do agressor, não só violências físicas devem estar ocorrendo, mas, principalmente, as violências morais, sexuais e até financeiras.

Mostra-se emblemática, nesse sentido, a entrevista dada por uma médica generalista da UBS da Zona Leste [8] no sentido de que não tem sido raro receber pacientes com sintomas de ansiedade relacionados à pandemia, sendo certo que, em um desses casos, uma mulher, casada há aproximadamente 25 anos, apresentava muita falta de ar, nervosa, e chorava, pois "o marido disse que faria algo com ela caso os filhos tivessem qualquer sintoma da covid-19".

Nesse cenário, é imperioso que o Estado crie mecanismos práticos e eficazes para que consigam não só essas mulheres, como também qualquer outra pessoa que venha sofrendo algum tipo de violência no âmbito familiar, denunciar, mesmo durante o confinamento, lado a lado com seu agressor.

A boa notícia é que, desde o início do mês de abril, a Polícia Civil passou a adaptar o sistema de Delegacia Eletrônica para que tais registros possam ocorrer via internet, podendo a autoridade policial, inclusive, entrar em contato com a vítima para averiguar a gravidade da situação, bem como se tem a vítima possibilidade de sair de casa para fazer o exame de corpo de delito no IML, por exemplo.

O Judiciário, por sua vez, continua funcionando normalmente, mesmo com as suas portas fisicamente fechadas, de maneira que podem (e devem) ser requisitadas as medidas protetivas de afastamento do autor, sempre que necessário.

Em iniciativa inédita, inclusive, o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou em seu site o Carta para Mulheres [9], no qual a vítima preenche eletronicamente um formulário e, a partir de então, recebe orientação a respeito de locais para atendimento, casas de acolhimento e programas de ajuda.

O grande desafio que certamente o Poder Judiciário enfrentará nos próximos meses fatalmente será o de como afastar o agressor do lar comum, se, com o novo coronavírus, ele também fica exposto a risco de saúde fora do confinamento. E mais, como assegurar o pagamento de alimentos a essas mulheres, se, na grande maioria dos casos, os agressores também vêm sofrendo cortes expressivos em suas economias por conta da pandemia?

Como assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida para ambos os indivíduos, nesse tipo de situação, se a vida de todos está, de alguma forma, afetada pela pandemia?

Excelente alternativa foi adotada pela França [10], que, em casos semelhantes, em que ambas as vidas correm algum tipo de risco, autorizou os órgãos que recebem as denúncias de violência doméstica a encaminharem as vítimas a hotéis (pois lá estariam seguras tanto com relação ao agressor, quanto com relação ao vírus).

Há de se pensar, portanto, em formas constantes e novas alternativas de evolução do sistema, seja em termos de criação de políticas públicas inovadoras, seja em formas mais modernas de se combater a violência, garantindo-se às pessoas vulneráveis o acesso irrestrito a todo o sistema.

 


[1] Com a edição da Declaração Universal dos Direitos do Homem[1] e o Pacto San José da Costa Rica[1],

[2] Em 1979.

[3] Em 1995

[4] Em 1994.

[5] Dados da Weiping- Organização de Defesa dos Direitos das Mulheres.

[6]Segundo o Portal O Globo, de 27/03/20.

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