Embargos Culturais

Por que ler os clássicos (de direito)?

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

26 de abril de 2020, 8h00

Spacca
"Por que ler os clássicos" é o título de um delicioso e provocante ensaio de Ítalo Calvino, escritor italiano que nasceu em Cuba, e que nos deixou também uma ampla obra de crítica literária. Calvino elencou uma série de razões justificativas para que não nos afastemos dos livros ditos clássicos. Porém, como condição para expor suas razões comprovantes deveria enfrentar (e afrontou) uma pergunta complicada para quem gostamos de livros: afinal, o que é um clássico?

Sigo com Calvino, parodiando-o, com interpolações de nossa cultura local e, mirando no auditório jurídico, com reminiscências de nossa literatura jurídica dita canônica. Afinal, antes de mais nada (e aí a opinião é minha, e não de Calvino) um clássico é um texto canônico. Isto é, acomoda-se a uma medida de apreciação e de valor (um cânon). Começo então com Norberto Bobbio, autor italiano que nos deixou um livro essencialmente canônico, paradigmático, inspirador, e que também resolve problemas práticos (porque o direito é uma questão de problemas da vida real), que é a “Teoria do Ordenamento Jurídico”. Ou ainda, com Piero Calamandrei, “Os juízes vistos por um advogado”. Acrescentaria um brasileiro, Prado Kelly, “A missão do advogado”.

Para Calvino clássicos são aqueles livros que nos referimos em forma de “releitura”. Até por uma questão de etiqueta intelectual (hipócrita, bem entendido) nunca afirmamos que estamos lendo um clássico. Clássicos são livros que sempre relemos. Não se lê o livro de hermenêutica de Carlos Maximiliano; a “Hermenêutica e Aplicação do Direito” é um livro que sempre relemos. Não se lê “Dom Casmurro”, ou “Esaú e Jacó”, ou “Vidas Secas”. São livros que são sempre relidos, verdadeiramente ou não. Os penalistas não leem Basileu Garcia ou Nelson Hungria ou Heleno Fragoso; são autores cuidadosamente “relidos”. Essa classificação remete o interlocutor a um pequeno ato de hipocrisia. Uma certa vergonha em não se admitir que alguns livros não foram lidos na juventude ou em momento mais oportuno. Como um comercialista explicar que não conhece a obra do Visconde de Cairu? Ou um administrativista não reconhecer o Visconde de Uruguai? Ou o comercialista não levar em conta o legado de J. X. Carvalho de Mendonça?

Afinal, quantos dos que citam Montesquieu quando peticionam em temas de invasão de competências de fato leram “O Espírito das Leis”. E os que criticam o Estado, na petição ou no artigo, na tese ou na “live”, já de fato leram “O Leviatã”. E a patota da “mão invisível do mercado”, até que extensão estudaram Adam Smith, antes de mais nada um moralista que orgulha a cultura inglesa? E os que afirmam que Maquiavel justificava os fins pelos meios, por que não citam, exatamente, essa passagem, tão falada, e talvez não pouco lida, até porque não escrita, dessa forma, em lugar nenhum? Conhecem o conceito de “frase alada”?

Um clássico, continua Calvino, é um tesouro de experiência compartilhada por quem o leu e o amou. O conteúdo de um clássico permanece como uma experiência pessoal, fixando escalas de valor e paradigmas de beleza. Não é o que sentimos quando lemos os discursos de Demóstenes ou de Cícero, ou quando apreciamos Aristóteles (no Livro V da Ética a Nicômaco) ou quando nos assustamos com o peso intelectual de um requerimento de habeas corpus, redigido por Rui Barbosa, em matéria cível, o que dá início a uma doutrina brasileira de uso de remédio originariamente penal para questões de fundo político ou administrativo.

Um clássico exerce sobre nós uma influência particular. Seus aspectos mais tocantes escondem-se nas camadas de nossa memória, frequentam nossa consciência individual e coletiva. É um repertório perene de alusões e de significados. Por que mantemos conceitos de direito privado que um dia lemos em Joaquim Ribas, em Clóvis Beviláqua, em Washington de Barros Monteiro, em Silvio Rodrigues, em Pontes de Miranda, em Caio Mário da Silva Pereira, em Francisco Clementino de San Tiago Dantas, ainda que o código seja outro e que todos esses autores tenham passado?

Um clássico é o livro cujo contato desvela um sentido novo, em cada leitura, como se lêssemos pela primeira vez. Não é o que sentimos quanto estudamos matéria fiscal em Aliomar Baleeiro, em Rubens Gomes de Sousa, em Geraldo Ataliba, e nos autores financistas dos tempos antigos, como Amaro Cavalcanti, Pedro Autran, Silva Maia e Perdigão Malheiro (esse o pai fundador dos procuradores da fazenda nacional)? Ou quando revemos o penal em Tobias Barreto, Braz Florentino e Galdino Siqueira, ou mesmo quando nos horrorizamos com a criminologia de Nina Rodrigues, ainda que devamos entende-la, por que fruto de seu tempo?

Um clássico é um livro lido pela primeira vez com a impressão que já conhecemos as ideias ali lançadas. Foi o que senti quando li as memórias de José Afonso da Silva (Meu itinerário constitucional) e de algum modo percebia que aqueles fatos todos eram um patrimônio comum, isto é, uma luta por um estado digno de arranjos institucionais. É a mesma experiência que se colhe com os dois livros de memórias de Miguel Reale. Além do que, quem não leu as “Lições Preliminares de Direito”, do mesmo autor, não passou pelo primeiro ano da faculdade. É um ritual de passagem.

Um clássico é um livro que não esgota o que tem a dizer a seus leitores. É o que se sente em cada leitura de Hermes Lima (Introdução à Ciência do Direito) ou do Tratado do Direito Natural, do Tomás Antônio Gonzaga, que também era poeta. Um clássico não ensina (necessariamente) algo que já sabíamos. É o que percebe, por exemplo, com o livro de Pimenta Bueno, que nos explica a Constituição de 1824. Ou quando afrontamos as memórias de Rodrigo Octávio com seus pareceres como Consultor-Geral da República (o mais célebre deles negando a possibilidade da construção do Cristo Redentor). Os exemplos correm para Levi Carneiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, Francisco Campos, e tantos outros.

Um clássico representa um universo de conteúdo conceitual. É um passo na cadeia de uma genealogia explicativa. Calvino conta-nos que Sócrates, antes de ser executado, pedia que lhe ensinassem uma certa melodia na flauta. Seus amigos inquietaram-se e perguntaram qual a serventia desse estudo. Morreria em pouco tempo. O filósofo respondeu que, pelo menos, aprenderia a melodia antes de morrer. Por que ler um clássico? Uma resposta apropriada pode seguir a atitude de Sócrates, isto é, porque vale a pena o esforço de ler um clássico, enquanto se tem vida[1].

 


[1]Eu dedico essas reflexões a Roberto Rosas (advogado em Brasília) e a Otávio Luiz Rodrigues (professor na USP) representantes de duas gerações, distintas no tempo, porém ligadas na cultura e que, certamente, sabem por que ler os clássicos, que efetivamente leram.

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