Direito em pós-graduação

O direito à alimentação adequada e as restrições decorrentes da pandemia

Autor

  • Delcy Alex Linhares

    é procurador do Estado do Rio de Janeiro mestre em Direito Público e doutorando do PPGD da Universidade Estácio de Sá (Unesa). Professor da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (Esap).

26 de abril de 2020, 8h00

ConJur
Introdução
A pandemia da Covid-19 impôs a formulação de políticas públicas voltadas para o estabelecimento de “comunidades seguras”, cujo princípio geral orientador, trazido pela carta de Otawa da OMS, desde 1976, para o mundo, as nações, as regiões e até mesmo as comunidades é “a necessidade de encorajar a ajuda recíproca – cada um a cuidar de si próprio, do outro, da comunidade e do meio-ambiente natural”.

Voltou-se a discutir o conceito de “populações vulneráveis”, sob a ótica da saúde e da assistência social, debate que começou no início dos anos 1980, com os estudos sobre a AIDS, que agora foi revisitado em razão do perfil das pessoas atingidas e das variáveis socioeconômicas que surgiram com o isolamento social imposto pela pandemia.

No Brasil, medidas restritivas de liberdades individuais, tais como: quarentena, isolamento social, adoção de protocolos sanitários; e, até mesmo fechamento de fronteiras, foram autorizadas pela Lei 13.979/2020 e passaram a ser exigidas por meio de regras, editadas em todo o país, pelas várias esferas de governo. Tais medidas tem o potencial de colocar em risco a continuidade do abastecimento de alimentos no país.

O direito à alimentação adequada

A Declaração Universal do Direitos do Homem, em seu artigo 3°, reconhece que: “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; e, no art. 25°. 1, prevê que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação (…)”.

Por sua vez, a Convenção de Genebra, em seu art. 55º, traz a obrigação da comunidade internacional garantir o abastecimento de víveres a “pessoas civis” em situação de conflito.

A Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA, estabelece em seu art. 34, a meta básica, de alcançar a “alimentação adequada, especialmente por meio da aceleração dos esforços nacionais no sentido de aumentar a produção e disponibilidade de alimentos”.

Por sua vez, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, de 1966, estabelece, em seu art. 11, o “direito de todos de usufruir de um padrão de vida adequado para si mesmo e sua família, incluindo moradia, vestuário e alimentação adequados, e à melhoria contínua das condições de vida”.

Não é por outro motivo que o Protocolo de San Salvador reconhece expressamente, no seu art. 12, o direito à alimentação e o relaciona com a produção, abastecimento e distribuição de alimentos.

Por fim, o direito à alimentação adequada foi detalhado no Comentário Geral nº 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, de 1999, da seguinte forma:

“O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não”.

O Brasil, a partir de 2003, implementou o programa “Fome zero” que operacionalizou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional-SISAN. Este programa criou um ambiente institucional favorável à promulgação da Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010, que incluiu o direito à alimentação no rol de direitos sociais reconhecidos pela Constituição Brasileira.

Esta alteração constitucional criou uma correlação entre o direito à alimentação e as competências administrativas para a organização do abastecimento alimentar, que a constituição brasileira, no inciso VIII, do artigo 23, distribui de forma comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

A competência legislativa comum permite que os entes subnacionais legislem ou pratiquem atos administrativos relativos a organização do abastecimento de alimentos, sem que, no entanto, o exercício da competência de um ente exclua a de outro, uma vez que, neste caso, a competência é cumulativa.

O abastecimento de alimentos impacta muito mais que nossa dieta. A produção de alimentos traz inegáveis consequências para o meio ambiente, gera reflexos nas concentrações populacionais e afeta movimentos migratórios de natureza econômica. No entanto, as pessoas têm o direito a ter alimentos saudáveis e culturalmente adequados, produzidos e distribuídos por métodos sustentáveis, bem como o direito de definir seus próprios sistemas alimentares, o que é chamado de "soberania alimentar".

Assim, a competência comum para organizar a atividade de abastecimento de alimentos, não pode ser exercida maneira que coloque em risco o direito à alimentação adequada da população. Deve haver uma cooperação mútua para assegurar a manutenção da atividade em todo o país, porque esta se destina ao atendimento de necessidades inadiáveis da sociedade; e, se não for mantida, coloca em perigo a soberania alimentar de toda a população.

As Centrais de Abastecimento
As centrais de abastecimento, além de assegurarem o direito à alimentação adequada, também preservam os aspectos relativos à soberania alimentar da população, proporcionando a conservação de tradições alimentares que são culturalmente significativas para as pessoas.

Na década de 60, o Decreto nº 61.391 de 20/09/1967 criou o Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico que elegeu as CEASAs como “ponto de reunião de agentes de comercialização”. Posteriormente, na década de 70, o Decreto 70.502 de 11/05/72, criou o SINAC – Sistema Nacional de Centrais de Abastecimento, que tinha como objetivo instalar Centrais de Abastecimento e Mercados Satélites, programados pelo Governo Federal, para comercializar e distribuir produtos hortifrutigranjeiros, pescados e outros perecíveis, em todo o país.

Neste período, a FAO, agência da ONU para o combate à fome, prestou assessoria direta no desenvolvimento dos projetos de construção e implantação das instalações das centrais de abastecimento e ajudou no treinamento de técnicos brasileiros, que foram levados a mercados atacadistas (Espanha, Itália, França, Inglaterra, Alemanha e outros), para o conhecimento de técnicas de planejamento, construção e operação de mercado (MOURÃO e MAGALHÃES, 2009. P. 13).

Este modelo, que foi implantado não só no Brasil, mas em diversos países, indica que as Centrais de Abastecimento são instrumentos do sistema normativo internacional para a proteção dos direitos humanos; que, com o passar do tempo, voltaram a ser usadas para a veiculação de programas internacionais relacionados com a meta “fome zero” da ONU, tais como os “bancos de alimentos”.

Tal caracterização, nos permite entender as centrais de abastecimento como um dos instrumentos cunhados pelo sistema normativo internacional; e, pelo sistema constitucional nacional para a efetividade do direito à alimentação adequada , o que atrai para estas a posição de “credora” da obrigação internacional dos países de garantir a “livre passagem” de alimentos por seus territórios e, dos entes subnacionais, de colaborar, entre si, para que a atividade destas centrais seja mantida em sua plenitude.

A natureza das atividades desenvolvidas pelas centrais de abastecimento e sua instrumentalidade para o sistema internacional de proteção dos direitos humanos; e, para o próprio sistema constitucional nacional; traz, como consequência jurídica, a impossibilidade da incidência de normas infraconstitucionais que possam, direta ou indiretamente, restringir as suas atividades porque estas asseguram o direito à alimentação adequada e a soberania alimentar da população.

Tal análise é relevante porque o Decreto nº 282 de 20/03/2020, que regulamenta a Lei 13.979/2020, definiu as atividades essenciais, mas não se referiu expressamente às centrais de abastecimento, o que, em tese, resultaria na possibilidade de se impor restrições a estas, por meio da atividade administrativa ou legislativa de entes subnacionais.

As medidas restritivas decorrentes da pandemia da Covid-19
A pandemia da Covid-19 deu ensejo a adoção de medidas restritivas de liberdades, tais como: imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras. Tais restrições representam um risco para a manutenção do abastecimento de alimentos, porque podem dar causa ao desabastecimento.

O problema é tão sério que, provocado pelo Conselho Federal da O.A.B., na ADPF 672/DF, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio do ministro Alexandre de Moraes, se posicionou da seguinte forma:

“Em relação à saúde e assistência pública, inclusive no tocante à organização do abastecimento alimentar, a Constituição Federal consagra, nos termos dos incisos II e IX, do artigo 23, a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios”. (grifei)

Ao fim, concedeu-se parcialmente a medida cautelar para:

“RECONHENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIENCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário.”

A decisão reputou constitucional a adoção de medidas restritivas de liberdades por parte de entes federativos subnacionais, da mesma forma que se reconheceu a competência comum destes para a organização do abastecimento alimentar.

Por estas razões, restrições, adotadas por entes subnacionais, que possam comprometer, direta ou indiretamente, o livre comércio realizado nas centrais de abastecimento, ofendem o sistema internacional de proteção de direitos humanos e à própria constituição brasileira, porque não resguardam o conteúdo básico do direito à alimentação adequada e a soberania alimentar da população

Conclusões

A pandemia da Covid-19 trouxe mudanças profundas para a sociedade brasileira e levou entes federativos a impor restrições a liberdades individuais para assegurar o direito à saúde da população. Tais restrições podem comprometer a atividade de abastecimento.

As centrais de abastecimento são instrumentos do sistema normativo internacional e do sistema constitucional nacional, que se destinam a organizar o abastecimento e garantir a alimentação adequada e a soberania alimentar da população.

Normas do sistema internacional de proteção dos direitos humanos garantem a “livre passagem” de gêneros alimentícios pelo território nacional, quando destinados às centrais de abastecimento.

Da mesma forma, a constituição federal atribui a todos os entes da federação a competência comum para organizar o abastecimento alimentar, o que atrai para estes o dever de colaborar mutuamente para a manutenção da atividade das centrais de abastecimento e enseja a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo que venha caminhar em sentido contrário a esta postura colaborativa.

Por fim, mesmo que a pandemia da Covid-19, faça com que o estado democrático de direito seja testado ao limite de suas instituições, a constituição ainda se mostra capaz de unir a sociedade e incentivar a colaboração mutua, de todos, não só para proteger o direito à saúde, mas também para assegurar a alimentação adequada.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).

Autores

  • é procurador do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito Público e doutorando do PPGD da Universidade Estácio de Sá (Unesa). Professor da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (Esap).

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