Opinião

Covid-19: Imprevisão e apontamentos sobre a incerteza

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25 de abril de 2020, 6h04

A pandemia da Covid-19 é um desafio brutal. Há diversas dúvidas que prejudicam, sobremaneira, as decisões pessoais, empresariais e de políticas públicas. O isolamento social –– ou até o lockdown –– vem causando efeitos profundos na forma como as pessoas interagem.

E, diferentemente da crise do subprime de 2008, de choques do petróleo, de guerras, entre outros, vivemos um momento permeado pela incerteza. Todos sempre convivemos com o risco, basta estar vivo para estar sujeito a eles. Mas, a incerteza é muito mais grave e dramática. Ela desafia a lógica, a nossa capacidade de raciocinar, de criar soluções, e, em última instância, de tomar decisões informadas. Como se verá, a pandemia gerou atos que produziram efeitos imprevisíveis, e estes reverberam para consequências incertas.

Frank Knight, economista e um dos Founding Fathers da Universidade de Chicago, construiu o seguinte raciocínio: “’risco’ se refere a uma situação em que a probabilidade de um certo resultado pode ser determinada, e portanto pode-se obter seguro contra o mesmo. ‘Incerteza’, por outro lado, se refere a um evento cuja probabilidade não pode ser determinada.” Os dicionários definem imprevisível como “aquilo que não se pode prever”; e, incerto, “o que tende a oferecer dúvidas, incertezas; aquilo que é duvidoso, pouco confiável”. A imprevisibilidade lida com uma impossibilidade de previsão, a incerteza cuida da inviabilidade de qualquer previsão.

Não há dúvidas de que estamos em um cenário de incerteza –– dentre outras questões, com uma volatilidade alucinante e liquidez muito reduzida ––, marcada pela impossibilidade de se projetar a situação atual para o futuro. Um grande exemplo disso foi um fato ocorrido no dia 20 de abril de 2020, quando os contratos para entrega de petróleo chegaram a valores negativos. Os estoques estavam abarrotados, diante da redução brutal no consumo ­­–– mesmo com a redução na produção ––, e os agentes do mercado não podiam receber mais nada. A alternativa era pagar para não receber. Por isso, o valor ficou negativo. E ninguém sabe o que ocorrerá com os contratos que vencerão em maio, junho, julho… Frise-se, isso não é risco é incerteza.

No entanto, a pandemia, por si só, não é condição necessária nem condição suficiente capaz de gerar a situação que estamos vivendo e desequilíbrio econômico-financeiro nos mais diversos contratos. O que está causando esse efeito são as medidas adotadas frente ela –– notadamente o isolamento social ou até lockdowns ––, as quais sofrem mutações praticamente diárias causando ainda mais incerteza, levando algumas pessoas ao processo hipotético e especulativo de teorizar sem ter os fatos.

Por essas razões, nas discussões jurídicas sobre descumprimento, rescisão ou desequilíbrio de contratos, será necessário demonstrar as consequências causais diretas e imediatas que afetem, efetivamente, a execução de determinada avença. Até porque, a despeito do que ocorre com diversas atividades econômicas, muitas estão sendo beneficiadas. São as chamadas externalidades positivas. Dentre as atividades favorecidas, pode-se citar, de largada, os serviços de delivery, o serviço de streaming Netflix e a venda de produtos de limpeza.

Diante deste cenário, não há elementos concretamente identificáveis capazes de sustentar, por exemplo, a aplicação automática e irrefletida da Teoria da Imprevisão, cujos elementos são: (a) superveniência de um acontecimento imprevisível; (b) alteração da base econômica objetiva do contrato; e, (c) onerosidade excessiva.

No que se refere à imprevisão, per se, Nassim Taleb salientou que uma pandemia não é um Cisne Negro (evento inesperado e de grande magnitude)[1], pois viajamos ao redor do planeta fazendo com que aumente a circulação de germes e vírus. Sendo assim, uma pandemia seria, na visão de Taleb, um evento previsível. A ideia do autor é corroborada pela história. Tivemos H1N1, gripe aviária, suína, dentre outras. Diante disso, precisamos olhar mais atentamente para as consequências do evento pandemia, e, mais especificamente, para as políticas públicas adotadas na tentativa de combatê-la.

A chave para essa avaliação está nas determinações provenientes dos Governos, seja no âmbito Federal, Estadual ou Municipal. É preciso analisar as medidas e os comportamentos dos agentes econômicos gerados por elas, além de verificar suas consequências causais (necessárias e suficientes) no cumprimento de um contrato específico. Mas, além disso, para buscar mitigar a situação, é imperioso considerar a própria incerteza futura. O impacto das medidas adotadas por governos está irradiando e afetando nossa forma de olhar para o mundo, nos programar e prever ações e comportamentos. Tempos de incerteza econômica, política e social, que não conduzem a soluções estanques que podem vir na forma de uma decisão liminar corriqueira.

Vale destacar que, em grande parte, as decisões estatais vêm sendo tomadas com base no medo e seguindo o modo 1, não reflexivo, de que nos fala Daniel Kahneman. Ao invés de refletir antes de decidir, há uma tendência em usar o “piloto automático” do cérebro, agindo com base em impulsos imediatos. O resultado é um risco maior de externalidades negativas, por falta de ponderações mais profundas. E o alcance das consequências negativas não esperadas vai reverberar no tempo e afetar um número enorme de contratos, atividades e ações humanas. Trata-se do efeito borboleta da Teoria do Caos. É impossível contemplar todas as variáveis que afetarão os contratos em um exercício de projeção para o futuro.

Sendo assim, a solução mais simples é a rescisão dos contratos, pois ela estanca o problema e não conduz a uma tormentosíssima projeção especulativa para o futuro. Todavia, haverá casos em que seja necessária uma adaptação para adequá-los às consequências e incertezas do momento. Surge, então, a pergunta: como lidar com incerteza?

Para responder à pergunta, precisamos contemplar a Lei da Liberdade Econômica, que reforçou o pacta sunt servanda e trouxe o colorido da Análise Econômica do Direito. O parágrafo único, incluído no artigo 421 do Código Civil dispõe o seguinte: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. Logo em seguida, o artigo 421-A apresenta a seguinte redação:

"Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.”

É ler para entender. A lei reforça a excepcionalidade da revisão e a intervenção mínima. Além disso, presume a paridade dos contratos empresariais, exigindo elementos (inclusive de prova) concretos capazes de justificar o afastamento da presunção. Em complemento, ela destaca o conceito de que o contrato é um instrumento de alocação de riscos, e que essa alocação deve ser respeitada; reafirma, ainda mais uma vez, que a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. Ou seja, há aspectos concretos para a revisão contratual.

Há que se considerar, também, o disposto no inciso V, do novo § 1º, do artigo 113 do Código Civil: “A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (…) V –corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.”

Vejam que foi mencionada, expressamente, a racionalidade econômica e as informações disponíveis no momento em que o contrato foi celebrado. Trata-se de medida de extrema prudência, com o objetivo de garantir que a interpretação do contrato não esteja dissociada de sua lógica econômica. O cálculo econômico, com base nas premissas de contratação­ –– inclusive a própria alocação de riscos ––, deve ser preservado.

Tudo isso, obviamente, deve ser conjugado com o artigo 478 do Código Civil que dispõe: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. O dispositivo é muito importante para delimitar que o foco está nas partes. Me parece que seria prematuro, por exemplo, sustentar que o inadimplemento em outros contratos –– por parte de terceiros, afetando o fluxo de caixa –– teria conduzido ao desequilíbrio de um contrato específico. Vale lembrar que a solução para uma inadimplência generalizada é a Recuperação Judicial ou a Falência. Mas, casos específicos e bem detalhados não podem ser afastados a priori.

Muito bem. Como preservar os contratos em um momento de incerteza? Qualquer um que esboçar uma fórmula para tanto estará especulando. Na introdução desse texto, apresentei o conceito de Frank Knight de que incerteza se refere a um evento cuja probabilidade não pode ser calculada. Se o cálculo das probabilidades não pode ser efetuado, não é possível criar projeções para o futuro.

Sendo assim, eventual intervenção judicial (ou arbitral) para ajuste deve ser mínima, permitindo apenas uma sobrevida, e exigindo a comprovação da manutenção dos elementos de incerteza com alguma periodicidade (talvez mensal, com a apresentação transparente dos custos envolvidos na execução do contrato, por parte do requerente). Tal comprovação deverá ser adotada, também, na hipótese de suspensão de um contrato. No caso de rescisão, contudo, a questão se torna mais simples, pois não haverá a necessidade de avaliação periódica dos elementos de incerteza. Essa é a solução que me parece mais adequada diante da impossibilidade de projeção para o futuro.


[1]As we travel more on this planet, epidemics will be more acute—we will have a germ population dominated by a few numbers, and the successful killer will spread vastly more effectively.”

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