Direito em pós-graduação

A incidência das normas do CDC na produção de EPIs no combate à Covid-19

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25 de abril de 2020, 8h00

ConJur
Para o enfrentamento da pandemia do Covid-19 e na tentativa de suprir essa falta de produtos hospitalares essenciais, a Anvisa simplificou seus requisitos para fabricação, importação e aquisição de dispositivos médicos prioritários para uso em serviços de saúde, emitindo a regulamentação emergencial pelas Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC), especialmente, as Resoluções de nºs 349/20201 e 356/20202, que tratam da regularização de equipamentos de proteção e de fabricação e importação de dispositivos médicos e dispõem, de forma temporária e extraordinária, sobre os requisitos para disponibilização prioritária e rápida destes produtos considerados estratégicos.

Com o objetivo de contribuir para a produção e suprimento dos referidos dispositivos médicos, os Cursos de Pós-Graduação da PUCPR e de outras instituições uniram esforços, criando um grupo para a troca de conhecimentos e de discussão das questões surgidas com a prática do enfrentamento do enorme desafio, o que levou o PPGD da PUCPR a elaborar (prontamente e gratuitamente) parecer jurídico (ora em anexo) visando o saneamento das dúvidas causadas pelas implicações legais relativas à incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em face das vigentes Resoluções da Anvisa.

A primeira questão enfrentada, diz respeito à incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) aos sujeitos que mesmo gratuitamente estão elaborando os produtos médicos.

O CDC estabelece os conceitos de consumidores (art. 2º) e fornecedores (art. 3º) que são os sujeitos da relação jurídica de consumo, e produto (objeto), e o profissional de saúde e o paciente que receberem os produtos elaborados com as permissões das novas regras da Anvisa serão enquadrados como consumidores já que inegavelmente serão os destinatários finais destes produtos. Ademais, no artigo 17 do CDC3, prevê que todas as vítimas do evento decorrente de “defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos” (art. 12, do CDC) são equiparadas a consumidores.

Por outro lado, para se enquadrar no conceito de fornecedor basta ter participado da cadeia de fornecimento do produto. Quando o texto legal adota a expressão “desenvolvem atividades”, afasta o profissionalismo e a lucratividade entre os seus requisitos essenciais, adotando-se a exigência de habitualidade4 para o enquadramento no conceito de fornecedor. No caso concreto, a pessoa física, entidade ou instituição que “produzir, montar, criar, construir ou distribuir” (ainda que de forma gratuita e sem habitualidade anterior) os produtos contidos nas Resoluções da Anvisa, serão enquadrados como fornecedores.

Uma vez que os equipamentos de proteção que serão colocados no mercado (ainda que forma gratuita) e tidos como meios essenciais para atuação dos profissionais de saúde ou meio de vida dos pacientes, legitimamente espera-se que atendam todos os padrões de segurança, qualidade, prestabilidade, durabilidade exigidos pelo justamente em razão da sua gravidade e essencialidade destes produtos.

Reconhecendo expressamente a vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, III) que pode se caracterizar de várias formas, sendo as mais comuns técnica, fática ou informacional5, o CDC estabelece um regime de proteção para as relações de consumo, com base em dois vetores: segurança e qualidade. De tais vetores decorre a proteção da confiança do consumidor, com o objetivo de lhe garantir a adequação dos produtos e serviços ofertados no mercado de consumo, bem como evitar riscos e prejuízos pelos produtos ou serviços6.

Dentre os direitos básicos do consumidor (art. 6º, CDC), destacam-se a proteção da vida, saúde e segurança do consumidor; a informação adequada e clara sobre os produtos e serviços fornecidos, inclusive quanto aos riscos que apresentam; a efetiva prevenção e reparação dos danos. Em outro momento o CDC (arts. 8º ao 107 do CDC) determina que os produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo não devem acarretar riscos à saúde ou segurança dos consumidores. O CDC também coíbe práticas abusivas e em rol exemplificativo do seu art. 39, tem-se com ilícita a colocação no mercado de consumo de produtos ou serviços em desacordo com as normas técnicas aplicáveis (inciso VIII).

A RDC 349/2020 estabelece os procedimentos extraordinários e temporários, para “tratamento de petições de regularização de equipamentos de proteção individual, de equipamentos médicos do tipo ventilador pulmonar e de outros dispositivos médicos identificados como estratégicos pela Anvisa, em virtude da emergência de saúde pública internacional decorrente do novo Coronavírus”, facilitando os procedimentos para registro de equipamentos de proteção individual, ventiladores pulmonares e outros dispositivos médicos entendidos como estratégicos pela Anvisa para o combate ao Covid-19.

Já a RDC 356/2020 facilita, também de forma extraordinária e temporária, o ingresso de novas empresas para “fabricação, importação e aquisição de dispositivos médicos identificados como prioritários para uso em serviços de saúde, em virtude da emergência de saúde pública internacional relacionada ao SARS-CoV-2”. Na prática, a RDC 356/2020 dispensa as autorizações sanitárias AFE – Autorização de Funcionamento de Empresa e da notificação à Anvisa, para os produtos identificados no art. 2º89.

No artigo 9º, a RDC 356/2020 autoriza a aquisição de dos mencionados dispositivos médicos, essenciais para o combate à Covid-19, mesmo que não regularizados pela Anvisa, mas desde que “regularizados e comercializados em jurisdição membro do International Medical Device Regulators Forum (IMDRF), por órgãos e entidades públicas e privadas, bem como serviços de saúde, quando não disponíveis para o comércio dispositivos semelhantes regularizados na Anvisa”. A prestação de informações claras quanto ao uso dos produtos, em língua portuguesa, depende sobretudo do público-alvo responsável pela utilização dos referidos dispositivos médicos, não se podendo presumir que todos os profissionais de saúde envolvidos no atendimento aos pacientes sejam fluentes nos idiomas estrangeiros de origem dos produtos10.

Por fim, o artigo 9º, §3º, da RDC 356/2020, estabelece que “o serviço de saúde em que o equipamento eletromédico seja instalado é responsável pela instalação, manutenção, rastreabilidade e monitoramento durante todo o período de vida útil do dispositivo, incluindo seu descarte”, ou seja, para além da responsabilidade do fabricante e/ou importador, estabelece-se a responsabilidade do serviço de saúde na utilização adequada dos dispositivos médicos que lhe foram fornecidos.

A RDC 356 da Anvisa não enseja a liberação da aplicação das normas protetivas às relações de consumo, e das decorrentes obrigações legais, e nem o poderia fazer, pois a proteção ao consumidor é valor constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, inafastável por convenção das partes ou por norma infraconstitucional (mesmo em período de pandemia)11.

O pesquisador, independentemente de pertencer aos quadros de instituição pública ou privada, que está atuando na concepção dos materiais cuja produção é regulamentada pelas RDCs 349 e 356 da Anvisa, deve estar atento ao cumprimento destas normas se estes EPIs forem utilizados por profissionais da área da saúde (médicos, enfermeiros, etc.) ou pacientes nos hospitais, sob pena de responderem solidariamente pelos eventos danosos advindos deste descumprimento, vez que teriam contribuído com a ocorrência dos danos.

Assim, uma vez não observados os dispositivos pertinentes à proteção ao consumidor, previstos no CDC (especialmente no que tange à observação da garantia de dever de segurança, qualidade, prestabilidade, adequação e durabilidade, e também em relação à prestação de informações claras e suficientes sobre origem, utilização e riscos, além da observância da transparência, da confiança e da boa-fé), há a possibilidade de responsabilização legal dos agentes de mercado, marcada tanto pela característica da objetividade12 quanto da solidariedade1314 conforme dispõem os arts. 12 e 18 do CDC.

Em caso de desconformidade dos EPI’s com as normativas da Anvisa quanto ao atendimento das normas do CDC, por definição legal tais produtos já serão considerados viciados e passíveis de serem retirados do mercado, bem como, na ocorrência de qualquer incidente que prejudique a segurança, saúde ou vida do consumidor, tal produto terá ocasionado acidente de consumo pela ocorrência de fato do produto.

Desta forma, tem-se que a abertura trazida pelas analisadas RDCs da Anvisa em relação aos equipamentos de Classe 1 para o combate à pandemia da Covid-19, não afastam ou relativizam a aplicação e os dispositivos de proteção ao consumidor estabelecidos pelo CDC, sendo que em caso de lesão ao consumidor incidirá a sistemática de responsabilidade estabelecida pelo diploma legal consumerista.

Clique aqui para ler parecer jurídico sobre o tema

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do coronavírus (Covid-19).


1 http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/5809525/RDC_349_2020_.pdf/1db02b46-604a-4345-8362-8267bb802045, acesso: 09/04/2020.

2 http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/5809525/%281%29RDC_356_2020_COMP2.pdf/77b7173c-84d1-45d7-8b9f-62ef8e07285b, acesso: 09/04/2020.

3 Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

4 Que pode ser identificada também pelo volume de produção.

5 Cf. MARQUES, Claudia Lima e MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 154-159.

6 Cf. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 282.

7 O art. 10, CDC, impõe aos fornecedores o dever de chamamento (recall) quando identificado que os produtos ou serviços já colocados no mercado são nocivos ou perigosos à saúde e segurança dos consumidores ou que estejam em desconformidade com as normas de prestabilidade, e portanto, também podem acarretar riscos aos consumidores.

8 Art. 2°- A fabricação e importação de máscaras cirúrgicas, respiradores particulados N95, PFF2 ou equivalentes, óculos de proteção, protetores faciais (face shield), vestimentas hospitalares descartáveis (aventais/capotes impermeáveis e não impermeáveis), gorros e propés, válvulas, circuitos e conexões respiratórias para uso em serviços de saúde ficam excepcional e temporariamente dispensadas de Autorização de Funcionamento de Empresa, da notificação à Anvisa, bem como de outras autorizações sanitárias.

9 A RDC 356/2020 não exime o fabricante ou importador de cumprir todas as demais exigências aplicáveis ao controle sanitário de dispositivos médicos, necessárias para assegurar a qualidade, segurança e eficácia dos produtos fabricados ou importados. Entre tais requisitos, destaca-se a necessidade de adequação técnica, seguindo as normas de ABNT obrigatórias para cada tipo de produto especificado na referida Resolução. Além disso, a normativa ressalta expressamente o dever do fabricante e/ou importador em realizarem o controle pós inserção dos produtos no mercado.

10 A tradução para o idioma nacional deveria ser medida obrigatória, para assegurar a informação clara e adequada, já que a falha na informação, por si só, caracteriza um vício na qualidade do produto no regime jurídico do CDC e pode pôr em risco a segurança, saúde e vida dos consumidores (cidadãos, pacientes e profissionais de saúde), em caso de uso inadequado por falha na informação.

11 Ainda, dispõe o art. 3º, inc. II, da RDC 356 que “a dispensa de ato público de liberação dos produtos objeto deste regulamento não exime: (…) o fabricante e importador de realizarem controles pós-mercado, bem como de cumprirem regulamentação aplicável ao pós-mercado”. Sendo certo que uma das regulamentações aplicáveis é o CDC.

12 Responsabilidade que prescinde da análise de culpa como imprudência, imperícia e negligência.

13 Isto é, cada agente econômico responderá integralmente perante o consumidor tendo a possibilidade de exercer o direito de regresso contra o real responsável.

14 Inclusive há a possibilidade de responsabilização do fornecedor aparente, especialmente nos casos de importação, para aquele que agrega seu nome nos produtos fornecidos. Cf. EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do Direito das Relações de Consumo e Sustentabilidade. 3. Ed. Curitiba: Juruá, 2011, p. 83: “A responsabilização do fornecedor aparente justifica-se pelo fato de que, ao indicar no produto fabricado por terceiro seu nome, marca ou outro sinal que o identifique, o fornecedor aparente assume perante o consumidor a posição de real fabricante do produto. Isso permite a sua plena responsabilização na forma do art. 12 do CDC”.

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