Direito Civil Atual

Diretrizes interpretativas de crise nas relações privadas

Autores

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

25 de abril de 2020, 10h40

ConJur
A escalabilidade viral da Covid-19 é extrema. Alastrando pelo mundo e praticamente afetando todos os países, desencadeou consequências dramáticas: milhões de infectados e mais de cem mil óbitos até começo de abril de 2020. À patogenia atual somam-se antigas e novas causas: meio ambiente ainda desamparado por inadiáveis políticas públicas relacionadas à saúde sanitária; consumismo como racionalidade econômica; medidas prevencionistas e precautórias ainda não absorvidas pela população; aumento de habitantes por faixa etária (sobretudo, em idades mais avançadas); concentração acentuada de indivíduos por metro quadrado em grandes centros.Enfim, estão reunidas circunstâncias amplamente favoráveis à proliferação do patógeno.[1]

Soma-se a isso a incerteza: o ‘não-saber’ é verdadeiro revés. A tecnologia, distribuída em densidade informacional (conectividade), inovação (criação), amplitude (espaço), imediatismo (tempo) e acesso (custos), acaba testada por desafios que enquanto ao senso comum possam parecer singulares e simples (v.g., higiene pessoal e limpeza doméstica), ao saber científicos e apresentam repletos de incógnitas(vacinas, medicamentos, isolamentos, medidas profiláticas e terapêuticas).

Evidente que o temor (estatal, científico e comunitário) e os resultados catastróficos contabilizados e alusivos aos extremos flagelos dispersos irrompem complexas ‘irritações’ nas variadas esferas e instituições da sociedade.O sistema jurídico,a partir do abalo pela interceptação de causa externa, reage com as próprias ferramentas para correção de rumos e definição de diretrizes normativas (lei, aplicação e interpretação).As significativas funções teóricas do direito (conformação, transformação e garantia) são intensificadas e ajustadas aos tempos de crise.

Para tanto a experiência jurídica brasileira reúne o aproveitamento de dispositivos já consagrados internacionalmente, na legalidade constitucional e legislação infraconstitucional (especialmente as codificações nacionais), assim como novas proposições legislativas (delege lata delege ferenda) objetivando a disciplina das relações públicas e privadas sob forte impacto deste colapso global.

Vale dizer: para situações excepcionais alguns critérios ganham prevalência, contudo sem que haja alteração acentuada ou concentrada do Direito.Ao que parece, o mais prudente, é ter a altivez na clareza de que interpretação e dogmática têm grande protagonismo na solução das mais diversas intempéries e conflitos.

As manifestações no plano internacional são imprescindíveis, porquanto podem ser internalizadas ou mesmo levadas em consideração como modelos jurídicos.A recomendação da OMS classificando a Covid-19 como pandemia e, via de consequência, instalando transnacionalmente situação de ‘Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional’se aproxima da conhecida ferramenta de ‘alerta’, já captada no direito pátrio (rico tema de prevenção a desastres).[2] Na sua fatia, a OIT advertiu sobre aumento do número de desempregados, sugerindo pautas urgentes relacionadas à proteção dos empregados no ambiente de trabalho, implantação de políticas públicas de estímulo à economia e ao emprego, assim como incentivo a postos de trabalho e renda. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao seu tempo, emitiu recomendações relacionadas à promoção da vida, saúde e integridade das pessoas;às liberdades fundamentais e à defesa de grupos vulneráveis.[3]

No direito estrangeiro,colhe-se o exemplo da edição na Alemanha da Corona-Gesetz[4]que estabelece, afora outras medidas,no plano das obrigações,moratória em contratos relacionais de caráter essencial e em mútuos (tanto a benefício de consumidores e pequenas empresas), como suspende ordens de despejo e quebra de locação por falta de pagamento. Igualmente a Espanha, que optou em adotar regime flexível (também moratória) quanto aos contratos celebrados por consumidores, trabalhadores e famílias vulneráveis, inclusive com direito à resolução e contratos sem imposição de multa.[5]

Em determinadas situações excepcionais, em que o equilíbrio contratual é permeado por um abismo, rever as prestações não basta, e a moratória não pode ser descartada como uma possibilidade, observado sempre o devido processo legal, com a intervenção do Poder Judiciário.

No âmbito interno, a Lei 13.979/20 inaugura a fixação de medidas a serem adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (com remissão clara à OMS). O destaque inicial está ligado às diversas atividades dos poderes públicos para confrontação da crise, com relevo à maior flexibilidade nas aquisições de produtos e serviços referentes ao trato da pandemia (dispensa e aproveitamento de licitações), suspensão dos prazos processuais nos processos administrativos e de prazos prescricionais na aplicação de sanções administrativas, assim como ampliação e redefinição, ainda que temporária, de bens e serviços de natureza essencial.

Da mesma lei, entretanto, são perceptíveis inserções de dispositivos que tangenciam verticalmente situações jurídicas privadas tanto patrimoniais como existenciais: i) direito de propriedade (possibilidade de requisição de bens e serviços); ii) direitos de personalidade relativos ao corpo (realização compulsória de exames médicos, tratamentos, vacinação), iii) direitos de personalidade relativos à liberdade (isolamento e quarentena), iv) direitos de personalidade relativos a dados pessoais (coleta de amostras e identificação dos infectados).

Em trâmite no âmbito legislativo federal entre tantos projetos de lei, dois merecem distinção. O PL 1179/20 que institui o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), fixando marco temporal para incidência de efeitos contingenciaise atribuindo regramento ocasional a diversos institutos (resilição, resolução e revisão contratuais; locação urbana;prescrição extintiva e aquisitiva; condomínios edilícios; regime societário; concorrência e dívida por alimentos).E o PL 1997/20, na linha da legislação alemã, instituindo moratória em contratos com objetos essenciais, aí inclusos aqueles de natureza bancária, securitária e prestação de serviços de assistência à saúde em favor dos consumidores. Ambos projetos são complementares,haja vista as infindáveis situações a que estão expostos os brasileiros.

A atenta observação quanto às nuances narradas permite ao cientista jurídico concluir pela prevalência de certos critérios hermenêuticos que podem auxiliar no deslinde de inúmeras circunstâncias. Podemos assim sintetizar:

i. Maior intervenção do Estado nas relações particulares
A necessidade em adotar medidas de resposta à pandemia exige do Poder Público, como já visto, não apenas iniciativas legislativas e executivas, mas também fixação de ‘estado de calamidade’, potencializando,temporariamente (gize-se), o interesse público sobre o interesse privado, nas diversas situações jurídicas subjetivas existenciais e patrimoniais, inclusive incidindo sobre as liberdades individuais. Calha, porém, o aviso de que nestas circunstâncias as hipóteses de responsabilização do Estado por danos e prejuízos aos particulares são mais acentuadas, cabendo temperar a atuação administrativa mediante boa governança e prioridade na utilização dos fundos públicos e sociais.Para tanto alguns critérios podem ser operacionalizados quanto à restrição da liberdade: a) persecução de finalidade pública; b) demonstração de razoabilidade da restrição por quem a exige; c) não extinção ou desnaturalização do direito afetado; d) proporcionalidade nas medidas; e) igualdade substancial na repartição dos encargos à toda coletividade.[6]

ii. Modelo jurídico inibitório
A monetização de vidas ceifadas, desde que haja fundamento imputável de responsabilidade considerando a pandemia (ausência de leitos, políticas públicas de saúde, contágio e deveres de solidariedade), estratégia ex post, está condicionada à indicação do momento de violação do direito e ocorrência de danos. Necessário adotar, para melhor concretude aos direitos da personalidade e direitos fundamentais, medidas inibitórias (preventivas e precautórias)[7]que surtam efeito a partir da simples ameaça de lesão a direito, modelo ex ante, removendo ou cessando ilícitos, especialmente os futuros onde o estado anímico é desnecessário.

iii. Reconhecimento de vulnerabilidades
As recomendações internacionais respeitantes aos direitos humanos estrategicamente abonam o conceito de vulnerabilidade como falha setorial a fim de proporcionar a utilização de programas normativos e estatutários de empoderamento de pessoas sob circunstâncias de grave diferenciação circunstancial. Por isso, passou-se de única vulnerabilidade para plúrimas ‘vulnerabilidades’, onde há dimensões de fragilidade (mercado, família, espaço digital, cidades etc.)com ampla carência de priorização de promoção pessoal. No caso da Covid-19, a indicação de existência ‘grupo de risco’ reforça tipos vulneráveis, como cria outros (além de idosos, pacientes de asma, enfermidades hematológicas, doença renal crônica, imunodepressão, diabetes, hipertensão; e, ainda, obesos e fumantes).

iv. Dever de solidariedade
Numa situação crítica de larga e indefinida instabilidade as projeções individuais, mesmo que protegidas juridicamente, cedem à afirmação do dever de solidariedade, derivado da solidariedade arrimada valorativamente como escopo republicano (CF, art. 3º). Quando em projeção no direito privado, referido dever, encontra ampla coordenação com princípios normativos notadamente estruturais e funcionais (boa-fé; função social do contrato, da propriedade e da empresa; autonomia privada) permitindo melhor adequação dos institutos à situação emergencial (responsabilidade civil, contratos, propriedade, direito de vizinhança, família e sucessões etc.). Numa só expressão: o dever de solidariedade justifica e fundamenta as relações jurídicas privadas qualificadamente tanto pela cooperação coletiva quanto pela colaboração mútua entre partes e indivíduos.

Tais diretrizes interpretativas, insista-se, não são novas,mas são totalmente relevantes e indispensáveis em tempos de pandemia.

 


[2] Trata-se da lei nº 12.608/12 que institui a Política nacional de Proteção e Defesa Civil, especificamente no inciso IX do art. 5º quando trata dos alertas quanto aos desastres naturais.

[3] Resolución nº 1/2020. Pandemia y derechos humanos em las américas (Adoptado por la CIDH el 10 de abril de 2020).

[4]Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia do COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal de 27.03.2020.

[5] Real Decreto-ley de 11, de 31 de marzo, por el que se adoptam medidas urgentes complementarias en el ámbito social y económico para fazer frente al COVI-19.

[6] LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos de derecho privado: Código civil e comercial e la Nación Argentina. BuenosAires: 2016, p. 241.

[7] SILVA, Jorge Pereira da. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, p. 108.

Autores

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    é Promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro.; professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ); professor permanente do doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense (PPGDIN); doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ; e diretor do Brasilcon – Instituto de Política e Direito do Consumidor.

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    é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia e diretor do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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