Diário de Classe

Elucubrações sobre o presente e futuro no contexto jurídico da Covid-19

Autor

  • Matheus Vidal Gomes Monteiro

    é doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela Unisal e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição Constituição e Processo da UFF membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

25 de abril de 2020, 12h34

Muito tem sido publicado em todo o globo, e mais diretamente aqui no Brasil a partir de março deste ano, sobre a Covid-19, nos diversos ramos de conhecimento, segmentos da sociedade, tipos de mercado etc.

E devido ao rápido alastramento de seu potencial de contaminação em praticamente todos os países num período de poucos meses, não demorou muito tempo para que as diversas análises realizadas visando auxílio e melhor percepção da realidade possível fossem complementadas também por previsões de diversos cenários “pós-Covid-19”. A indagação central é: e depois, como será?

Nesse sentido, as previsões pós-Covid-19 se constroem, por exemplo, em como serão no futuro: as relações de trabalho? Os gastos públicos? A economia/mercado? As relações de consumo? A relação com o meio ambiente? Os atuais hábitos relacionados com saúde e lazer? E as formas de educação/ensino? A lista é tão extensa quanto às áreas que de alguma forma sofrem impactos atualmente.

Portanto, para além dos inúmeros desafios jurídicos identificados no presente, ultrapassado o contexto atual quais fatores/ideias/atividades/práticas podem ser acelerados, potencializados ou construídos no âmbito do Direito?

Daí a importância de ficarmos atentos a certos aspectos e práticas jurídicas no presente, como perigos reais e concretos também num cenário jurídico pós-Covid-19. De tal forma que, direcionando-nos para uma temática sempre relacionada à atividade interpretativo-decisória, mas que guarda impactos incindíveis à Teoria e Filosofia do (e no, como diria Streck) do Direito, seja possível tecer algumas considerações adicionais, a título despretensioso em termos de inovação completa, no intuito de reforçarmos às já diversas perspectivas críticas expostas sobre as várias práticas no âmbito jurídico atual, todavia, reforçando a vigilância a possíveis posturas futuras.

Inevitavelmente, sempre que me deparo com questões que muito destoam de minha pré-compreensão jurídica[1], (reconhecendo, por óbvio, a inafastável possibilidade de minha falibilidade) relembro essas palavras de Kelsen e sua clássica lição sobre a interpretação jurídica realizada pelos operadores práticos do Direito:

A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer […] uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. […] a obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma função voluntária.

Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade.[2] (grifo nosso)

Trata-se de importante lição de Kelsen na qual demonstra seu entendimento da interpretação do Direito, voltada à aplicação, como um inevitável ato de vontade[3] , eivada de subjetivismos oriundos de uma razão prática solipsista.[4] Desnuda e reconhece, os motivos diversos por trás de muitas práticas jurídicas, não todas por óbvio. Mas a contaminação é tamanha que o faz abandonar, de certa forma, maiores aprofundamentos nesse âmbito não-científico (pela ausência de purificação científica e mecanismos de controle, especificamente eivada de subjetivismos).[5]

Ora, em tempos de polarização política acentuada desde o período pré-eleitoral de 2018, que vem a cada dia potencializando a politização do Direito (em diversos âmbitos) sempre existente e ainda persistente, num contexto como o que estamos vivendo, no qual medo e ansiedade potencializam nossos instintos individualistas mais primitivos, e também fortalecem visões de mundo que alimentam os diversos predadores externos do Direito (economia, ética, moral e política)[6] e favorecem o uso estratégico da jurisdição[7], é preciso retomarmos a calma e sobriedade para a realização de diagnósticos e interpretações mais adequadas possíveis. Os subterfúgios como a vagueza do texto e a alta complexidade do caso, normalmente apresentados pela dogmática jurídica como álibis para o agir discricionário[8], agora recebem ingrediente adicional de fartas características: um contexto pandemônico.

Como resultado, devemos atentar para nossa atual crise, nosso momento perigoso, difícil e decisivo[9], alertando-nos para as interpretações/decisões no momento presente sem desconsiderar potenciais lesivos futuros delas.

Streck há tempos, de forma incessante e ininterrupta vem, inclusive semanalmente aqui no Conjur (Coluna Senso Incomum) denunciando as agressões ao Direito em diversos âmbitos. Como bem resumiu o professor: quando você vai à juízo, você quer que seja feito um fit (ajuste), filtrando a linguagem pública – Direito – sobre o caso concreto, a partir da coerência, integridade, e de uma estrutura jurídica forjada intersubjetiva e democraticamente? Ou deseja que a decisão sobre seu caso seja a externalização da opinião pessoal do juiz sobre seu caso com base na escolha em critérios subjetivos?[10]

Vejamos exemplo noticiado aqui no Conjur e comentado por Streck (aqui), consistente na decisão judicial que utilizou o seguinte argumento único[11]:

A questão relativa ao Covid-19 tem sido alegada de forma tão indiscriminada que sequer mereceria análise detalhada.

Dos cerca de 7.780.000.000 de habitantes do Planeta Terra, apenas 3 (três): ANDREW MORGAN, OLEGSKRIPOCKA e JESSICA MEIER, ocupantes da estação espacial internacional, o primeiro há 256 dias e os outros dois há 189 dias, portanto há mais de 6 meses, por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado CORONA VIRUS.

Importante lembrar que os que estão há menos tempo fora do planeta, dele saíram em 25 de setembro de 2019, cerca de dois meses antes das notícias acerca da pandemia que se iniciou nas China.

Portanto, à exceção de três pessoas, todas demais estão sujeitas a risco de contaminação, inclusive os que estavam na Estação Espacial Internacional e retornaram à terra no princípio de setembro de 2019.

Portanto, o argumento do risco de contaminação pelo Covid19 é de todo improcedente e irrelevante.

O que, então, no Direito, esse nosso momento de crise nos mostrará? Quais pré-conceitos e preconceitos serão desvelados/revelados (quais habitus dogmaticus, como diria Streck[12], ou qual aspecto do senso comum teórico, como dizia Warat[13], aparecerão mais claramente)? O que encontraremos ao cavar mais profundamente os argumentos jurídicos expostos nos diversos âmbitos de externalização de justificativas (decisões, livros, artigos, entrevistas etc.)? Quanto ao exemplo acima, quais normas/motivos, em termos kelsenianos, este ato jurídico-decisório nos demonstra?

Talvez, nada haja de novo nesse momento, sendo apenas utilizados outros elegantes argumentos em claro estilo perelmaniano[14] de persuasão (e não convencimento) a partir de uma retórica, agora, fincada em ansiedade e medo para diversos auditórios complexamente interligados. Talvez. Mas fiquemos atentos a argumentos (tido como jurídicos) oportunistas casuisticamente envernizados sob diversos aspectos e com diversas pretensões. Pois, como muito bem trazido nesta coluna nos artigos de Giancarlo (aqui), ao reconhecer que é nas fragilidades globais que a crise do Direito se desvela mais fortemente, e de Clarissa (aqui), ao afirmar que em contextos como o atual é que se colocam à prova a importância das instituições num regime democrático, demandando a resistência constitucional das instituições, é em momentos como o que vivemos que devemos afiar ainda mais nossos olhares.

Daí a importante vigilância teórico-jurídica que deve ser intensificada agora, fortalecendo a dogmática jurídica pela sua função de constrangimento epistemológico[15], para que não retrocedamos em avanços jurídicos já consolidados, tanto num presente que tem se demonstrado deveras agressivo, quanto num futuro próximo imprevisível.

Em virtude disto, em momentos como esse, é sempre bom relembrarmos Homero e seu Ulisses. Pois, como narrado, Ulisses, regressando a Ítaca, sabia que enfrentaria diversas provações, sendo a mais conhecida delas o “canto das sereias”. Elas, pelo seu canto encantador, desviavam os homens, conduzindo-os a caminhos tortuosos, tornando difícil o retorno. Então, Ulisses, para se proteger, ordena a um de seus subordinados que lhe amarrasse ao mastro do navio e que, em nenhuma hipótese, o desamarrasse mesmo que diante de uma nova ordem sua.[16]

Nossas amarras advêm da Constituição. Criando limites para que não sucumbamos a despotismos e arbitrariedades de qualquer espécie, em especial, em momentos de desespero coletivo como no qual nos encontramos, deixando-nos que as emoções temporárias se sobreponham à razão (jurídica), esquecendo-nos de importantes pré-compromissos constitucionais.[17] Afinal, não estamos no contexto de guerra como no caso do texto de Homero, mas, num discurso comum que se vê: estamos em guerra contra o vírus, há muitas melodias a serem observadas nesse canto…

Infelizmente, a história é cheia de exemplos potencialmente transgressores da legalidade constitucional, e, seja relembrando o caso de Ulisses, ou oportunamente revendo as lições de Dworkin[18] e sua necessidade de reconhecimento de princípios constitucionais deontológicos, pensemos também na responsabilidade futura com as próximas interpretações/decisões que serão tomadas, sob pena do surgimento de um neoDireito com elevado potencial argumentativo para se voltar contra a normatividade constitucional.

Com a devida vênia, utilizando de já conhecida expressão de Streck: a ver…

 


[1] A expressão utilizada leva em consideração a construção teórica de Streck a partir da conjugação de aspectos teóricos de Dworkin, Heidegger e Gadamer (especialmente). Para conferir de modo mais aprofundado o raciocínio do autor, v. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. E, de forma específica sobre o tema, podemos encontrar exposições em: STRECK, Lenio Luiz. O problema da decisão jurídica em tempos pós-positivistas. Revista Novos Estudos Jurídicos. Vol. 14. N. 2. P. 3-26. 2009. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/viewFile/1766/1406. Acesso em: 10 abr. 2020. STRECK, Lenio Luiz. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – A hermenêutica jurídica? Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 29/08/2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-ago-29/isto-hermeneutica-juridica. Acesso em: 10 abr. 2020.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, 2003, p. 393.

[3] Nas palavras do autor: “Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina­ se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda. Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica.” (In: KELSEN, op. cit., p. 394.).

[4] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014, p. 128.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. STRECK, 2014, p. 128.

[6] STRECK, 2017.

[7] ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: RT, 2014, p. 440.

[8] Idem.

[9] Significados de ‘crise’ retirados de: Dicionário Online de Português (https://www.dicio.com.br/crise/) e Priberam Dicionário (https://dicionario.priberam.org/crise).

[10] STRECK, Lenio Luiz. O desembargador, “os astronautas” e o “habitus dogmaticus”. Conjur. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-09/senso-incomum-desembargador-astronautas-habitus-dogmaticus. Acesso em: 10 abr. 2020.

[11] Sem entrar no mérito da referida decisão no presente texto.

[12] STRECK, 2020.

[13] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1994.

[14] Em especial: PERELMAN, Chaïm. TYTECA-OLBRECHTS, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[15] STRECK, 2017.

[16] Utilizado também por STRECK, Lenio Luiz. TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. BARRETTO, Vicente de Paulo. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um terceiro turno da constituinte. Revista da Faculdade de Direito de Franca. Franca. V. 2. Ano 2. 2010. Disponível em: http://www.revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/view/62/32. Acesso em: 10 abr. 2020.

[17] Idem.

[18] Em especial: DWORKIN, Levando os Direito a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, e DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Autores

  • é doutor em Direito (Unesa), mestre em Direito (Unisal) e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição, Constituição e Processo da UFF, membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

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