Opinião

A importância da Teoria do Direito em uma época de Covid-19

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24 de abril de 2020, 7h03

Em recente artigo publicado em jornal de circulação nacional, o ministro do STF Luiz Fux afirmou que coronavírus não é "habeas corpus", tornando pública sua posição relativa às medidas de desencarceramento seletivo sugeridas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ Recomendação 62/2020) durante a pandemia. Outros tanto já afirmaram, em sentido análogo, que coronavírus não é desculpa para reduzir salários, não é salvo-conduto para demitir, não é licença para sonegar, muito menos justificativa automática para inadimplir. Em síntese: uma pandemia não afasta per se a incidência de regras jurídicas.

Essa ideia faz algum sentido. É inegável que a Covid-19 não revogou o ordenamento jurídico brasileiro. Mas ela, ao mesmo tempo, obriga-nos a reencontrar um dos temas mais complexos da teoria do direito: o da criação de exceções não positivadas às regras jurídicas, isto é, o do problema do afastamento de regras abstratas à luz de casos concretos. Especificamente no âmbito penal, a discussão poderia ser organizada em dois grandes grupos: I) por que afastar regras que regulam a execução penal em tempos de pandemia (por exemplo, transformando um regime fechado em prisão domiciliar)?; e II) por que excepcionar regras que regulam as hipóteses de prisão cautelar ou de sua forma de cumprimento em tempos de pandemia (por exemplo, revisando prisões preventivas concedidas anteriormente à crise de saúde)?  

No entanto, antes de enfrentar tais perguntas, retornemos a outra que as precede: afinal, o Direito é um sistema de regras gerais e abstratas que não admite exceções? Ou a possibilidade de o aplicador criar exceções não positivadas é justamente o que equilibra e torna possível um ordenamento jurídico? Em outras palavras: a Justiça "geral" é sempre melhor no sentido redundante de mais justa do que a justiça "do caso"? Cremos que, de um lado, não há ordenamento jurídico sem lacunas e que, de outro, não há regra jurídica capaz de sempre dar conta da complexidade da vida real. Quem não afastaria a regra "proibido carros no parque" e não permitiria que uma ambulância nele ingressasse para salvar alguém entre a vida e a morte? Quem não afastaria a regra "proibido cães no metrô" e não deixaria que um cão-guia treinado fosse "os olhos" de sua dona durante a viagem?

Como se vê, lacunas e exceções definem um sistema jurídico. É a sua quantidade, todavia, que as torna um veneno ou um remédio. Os juízes, portanto, diariamente afastam regras em caso concreto. Isso, em si, não nos parece sempre um problema. O problema reside em quando, como e por que o fazem, ou seja: I) frequência; II) método; e III) recurso a argumentos intersubjetivamente controláveis. E justamente tais variáveis ficaram duramente afetadas pela Covid-19. Aumentou-se a frequência com que regras jurídicas são afastadas à luz de casos reais, sem, contudo, haver uma concomitante tentativa de padronização dos argumentos utilizados para tanto. Em síntese, a imprevisibilidade da vida social e econômica trazida pelo coronavírus aumenta a insegurança jurídica. Afinal: pode-se atrasar aluguéis? Pode-se reduzir salários? Pode-se transferir condenado em regime fechado e de grupo de risco para o regime domiciliar? Pode-se não recolher tributos? Etc.

Diante de tanta incerteza, o Direito vai perdendo a sua capacidade de orientar e de conformar condutas. Não por acaso, observamos como resposta uma "epidemia" de MPs e de leis que criam regras temporárias para tentar regular todos os setores atingidos, readequando parte do ordenamento jurídico à nova realidade regras de Direito Civil, Empresarial, Tributário, Administrativo, Trabalhista, PI, etc. Mas e o Direito Penal, o Processual Penal e o de Execução Penal? Suas regras devem seguir idênticas, como se a Covid-19 nunca tivesse existido? Apenas nesse preciso âmbito jurídico fingiremos normalidade em tempos distópicos?  Ou iremos enfrentar o problema com responsabilidade, criando regras temporárias (sob a forma de lei) para regular também o impacto da pandemia sobretudo nos estabelecimentos prisionais do país? [1]

É fato: parte do ordenamento brasileiro pré-Covid-19 pressupunha, no suporte fático de suas regras, um mundo que, ao menos agora, não mais existe. Excepcioná-las em alguma medida, seja via julgador, seja via leis temporárias, será algo inevitável. Caso se queria maior uniformidade, segurança e igualdade, será preciso fazê-lo via lei. Caso não haja consenso político a tanto, o ônus recairá sobre o julgador, que terá de identificar os casos que exigem exceções, construindo-as de modo fundamentado e controlável. Significa dizer, por exemplo, que, ao determinar ou negar uma prisão preventiva hoje, ele não poderá simplesmente recorrer aos mesmos argumentos de suas decisões pretéritas, mas terá de buscar outros efetivamente conectados à nova realidade.

Voltemos ao começo para então finalizarmos: sim, regras jurídicas podem às vezes ser afastadas. Não sempre, nem nunca. Sim, a pandemia não só pode como deve servir de fundamento em certos casos para a concessão de habeas corpus. Não em todos, nem em nenhum. Agora, se as regras penais, processuais penais e de execução penal se mantiverem absolutamente hígidas, sem qualquer necessidade de excepcioná-las cuidadosamente e em alguma medida durante esta histórica crise, é sinal de que, provavelmente, elas (as regras do sistema penal de que dispúnhamos) já padeciam de graves problemas muito antes da pandemia.  

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