Limite penal

Toda a forma de violação do fair play deve ser punida

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

24 de abril de 2020, 8h00

Spacca
A inobservância das regras de conduta processual tende a ser maior quando o agente punidor não se faz presente e/ou é inefetivo. Por mais que o agente processual possa individualmente observar, a tendência é de que ocorra o afrouxamento das diretrizes diante da possibilidade de que o deslize normativo possa auxiliar na vitória da estratégia. Por isso Cordero1 resumia: "Tutto sta nel fair play" (tudo está no fair play).

Em uma sala de aula, no dia da prova, a saída temporária do professor, em geral, faz com que os alunos possam trocar informações sobre a resposta. Com a exclusão do agente punidor, a tendência é que não haja punição e, com isso, fomente-se a fraude2. Para além das questões morais, o que há de evidente é que no regime das nulidades, a atitude do juiz em apitar/reconhecer as fraudes procedimentais, modifica o modo como as partes jogam em desconformidade com as regras. No caso brasileiro, diante do império da nulidade relativa, em que o prejuízo deve ser demonstrado, categoria amplamente manipulada, o efeito é um processo que acontece como o julgador quiser, mesmo desconsiderando-se as normas procedimentais que deveriam ser obrigatórias. Diante da pretensão em obter a vitória, sem riscos de nulidade, fomenta-se a manipulação. E quando todo mundo quer manipular e o juiz não controla a nulidade, no fundo, o Estado se demite da função de mediador da violência privada, ampliando a deslegitimação do provimento judicial.

A garantia da eficácia das regras procedimentais é o pressuposto do devido processo legal substancial. Será preciso mitigar os truques procedimentais, mas dependeremos da atitude do juiz em garantir as regras, situação que, no Brasil, encontra evidências de desformalização do processo em nome dos resultados. Toda a lógica da prova ilícita/ilegítima é baseada no pressuposto de que o Estado não pode validar como peça de “lego” probatório algo que tenha sido produzido em desconformidade com as regras de produção. Sem isso, estamos jogados nos truques processuais. A ideia democrática de um Processo Penal Justo3 passa pelo cumprimento das regras procedimentais4.

Muitos dos jogadores e autores de Processo Penal confundem os registros da norma, acoplando o discurso da eficiência5, da proeminência do plano da realidade, rebaixando o discurso da formalidade. O discurso da forma recebe a carga negativa de obstáculo para descoberta dos “criminosos” e como meio de exoneração de culpa de culpados. O que esses jogadores não se dão conta é de que, sem regras do jogo devidamente cumpridas, abra-se espaço para ampla manipulação das próprias regras do jogo. Por isso, mesmo lotados de boas intenções, contribuam para o jogo sujo, justamente porque os especialistas falam de algo que tem como pressuposto uma fraude democrática.

Pensamos que a premissa é: no processo penal, forma é garantia. Se há um modelo ou uma forma prevista em lei, e que foi desrespeitado, o lógico é que tal atipicidade gere prejuízo, sob pena de se admitir que o legislador tenha criado uma formalidade por puro amor à forma, despida de maior sentido. A categoria 'prejuízo', além de ser uma errônea importação do processo civil, é uma categoria vazia, conceito vago, impreciso e indeterminado, que vai encontrar seu preenchimento semântico naquilo que quiser o interprete-julgador. Portanto, constitui um trampolim para o decisionismo antidemocrático, na medida em que um processo somente será nulo quando, como e para quem quiser o julgador. Tal cenário é ainda agravado pela mitigação autoritária da contaminação, através de um estancamento de atos, como se isso fosse possível, desconsiderando uma lição básica de Fazzalari6 de que todos os atos procedimentais miram o provimento final e de que a validade de um ato pressupõe a validade do antecedente e é condicionante da validade do precedente. Enfim, nunca foi tão importante compreender que punir é necessário e também civilizatório, mas não a qualquer preço, não violando regras do jogo.

O discurso que sustentamos pode parecer muito fora de moda, vintage, até garantista demais, ao mesmo tempo que faz com que se possa exigir, quando envolva os próprios jogadores, um discurso de duplo nível. Garantias quando for acusado e flexibilidade quando for o outro. A ilusão básica de quem opera manipulando as regras é a de que não precisa cuidar do devido processo penal porque não se sente capaz de ser vítima do mesmo processo penal que defende. A história deveria fazer com esses mesmos se dessem conta de que — parafraseando Aron Barack —, se deve cuidar do processo penal para que ele cuide de nós e de todos. Observar as regras e garantias que o Estado faz parte do processo civilizatório.


1 CORDERO, Franco. Guida ala procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 42-43. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2020; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2020, p. 207-209.

2 BECKER, Gary S.; LANDES, William M. Essays in the Economics of Crime and Punishment. NewYork: Columbia University Press, 1974.

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Direito Constitucional e a teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 481: ““O que é um processo justo? (…) Quais os critérios orientadores da determinação do carácter ‘devido’ ou ‘indevido’ de um processo? (…) As respostas – sobretudo as da doutrina americana – reconduzem-se fundamentalmente a duas concepções de ‘processo devido’ – a concepção processual e a concepção material ou substantiva. (…) A teoria substantiva pretende justificar a ideia material de um processo justo, pois uma pessoa tem direito não apenas a um processo legal, mas sobretudo a um processo legal justo e adequado, quando se trata de legitimar o sacrifício da vida, liberdade e propriedade dos bens particulares. (…) O problema nuclear da exigência de um due process não estaria tanto – ou pelo menos não estaria exclusivamente – no procedimento legal mediante o qual alguém é declarado culpado e castigado (privado da vida, da liberdade e da propriedade) por haver violado a lei, mas sim no facto de a lei poder ela própria transportar a injustiça privando uma pessoa de direitos fundamentais”. MIRZA, Flávio. Processo justo: o ônus da prova à luz dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. In: ALVES, Cleber Francisco; SALLES, Sérgio de Souza (orgs.). Justiça, Processo e Direitos humanos: coletânea estudos multidisciplinares. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 89.

4 MATIDA, Janaina. “Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção”. In: Arquivos da resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP, Florianópolis: Tirant lo blanch, 2019.

5 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao ‘Verdade, Dúvida e Certeza’, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. In: Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos (2001-2002). Rio de Janeiro, 2002, p. 188.

6 FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: CEDAM, 1994, p. 85-86; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 2001, p. 102-132; CATTONI, Marcelo. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; REZENDE, Marcos. A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro – Reflexões sobre a crítica de Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari. Revista Brasileira de Direito Processual: RBDPro. – ano 22, n. 87, p. 31-59, jul/set 2014

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