Improbidade em debate

Improbidade e responsabilidade ministerial

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24 de abril de 2020, 15h07

Spacca
O Ministério Público, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal, é instituição “essencial à função jurisdicional do Estado”, à qual cabe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Como pressuposto para o desempenho dessas funções, a propósito, o Ministério Público conta com garantia da maior envergadura: a independência funcional de seus membros, prevista no § 1º daquele dispositivo, atributo indispensável a garantir o denodo na perseguição das missões institucionais, mas também a evitar o aparelhamento verticalizado da instituição (top-down) segundo visões pessoais de mundo.

Não podemos deixar de reconhecer a importância daquele predicado institucional, absolutamente indispensável, como também não podemos deixar de pontuar que, num regime que se pretenda democrático, qualquer exercício de poder deve estar sujeito a limites e responsabilidade (accountability), como bem registrou o Ministro Gilmar Mendes em seu voto no tema de repercussão geral (RE 593.727) em que se reconheceu o poder investigatório ministerial: “o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle.

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Uma dessas balizas limitadoras a que nos referimos é a imparcialidade, que, nos termos do artigo 43 da Lei n. 8.625/1993, deve reger a atividade desenvolvida por membro do Ministério Público, ainda que deva ela ser compreendida em seus devidos termos.

Explica-se: a depender das circunstâncias e da natureza do caso concreto, o membro do Ministério Público poderá exercer suas funções como parte ou como fiscal da ordem jurídica. Se, quando atua como custos legis, é evidente que o órgão deve agir de forma imparcial — não como assistente de qualquer das partes, mas em defesa da ordem jurídica —, sua atuação como parte exige maiores reflexões. Isso porque, em uma primeira análise, pareceria um contrassenso falar em “parte imparcial”.

Ocorre, no entanto, que a ideia de “imparcialidade” se relaciona no ponto com a liberdade para emitir determinado pronunciamento — e não com a defesa cega de um argumento —, de modo que se afasta a possibilidade de configuração de paradoxo. É de Hugo Mazzilli[3] o esclarecimento:

O Ministério Público é parte imparcial? Seria um contradictio in terminis dizê-lo parte e, ao mesmo tempo, negar sua condição de parte; gerando um oximoro, essas duas expressões juntas só se podem completar se não as tomarmos no mesmo sentido. Por parte, quer-se dizer que é sujeito de ônus e faculdades na relação processual; por imparcial, quer-se dizer que conserva liberdade para emitir seu pronunciamento. Assim, se propuser uma ação em defesa de interesses globais da sociedade (v.g., uma ação ambiental ou uma arguição de inconstitucionalidade), apesar de sua posição formal de parte (como sujeito ativo da relação processual), nem por isso o Ministério Público deixará de zelar pela ordem jurídica; ao contrário. Nesse caso, não estará obrigado a postular a procedência do pedido se, ao fim da instrução se convencer de que não há justa causa para tanto.

É dizer que a “parcialidade” admissível por parte do Ministério Público é, seja como fiscal, seja como parte, somente para com a defesa intransigente da ordem jurídica, jamais em favor de projetos pessoais de poder ou de satisfações íntimas de vingança. Quer isso dizer que, mesmo em defesa da ordem jurídica, deve ser resguardada a impessoalidade, inibindo-se qualquer traço de conduta direcionada que, ainda que sob o signo da defesa jurídica, se traduza em verdadeiro abuso na modalidade desvio de finalidade.

Não foi por acaso, então, que o Conselho Nacional do Ministério Público, em procedimento específico, rechaçou a incidência de seu enunciado de nº 6 — que veda o controle disciplinar sobre atividade-fim — para admitir a sindicabilidade de conduta de membro insinuadora de desvio de suas funções institucionais.[4]

Ainda que em sede disciplinar hipóteses mais extremas desafiem a possibilidade de controle, como visto acima, certo é que, primordialmente, o “o ato ministerial atinente à atividade-fim é passível de controle no âmbito do Poder Judiciário, que é a sede por excelência para discussão de seu mérito[5].

Embora a possibilidade de controle em sede jurisdicional seja trivial, algumas questões importantes se colocam. A primeira delas no sentido de que, a teor de decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal também em repercussão geral, o acionamento deve se dar em face da pessoa jurídica de direito público a que vinculado o respectivo Ministério Público integrado pelo membro, que somente poderia ser demandado subsidiária e regressivamente.[6]

Segunda questão, bem mais controvertida, reside em saber se a responsabilidade estatal será objetiva ou subjetiva. É bem verdade que, no passado recente, o mesmo Supremo Tribunal Federal assentou em caso concreto que a responsabilidade por ato ministerial, conquanto exigisse acionamento do Estado, e não do membro, observaria, quanto àquele, responsabilização objetiva, a teor do artigo 37, § 6º, da Constituição.[7] Com esse entendimento, todavia, convive a posição que, no caso de atos judiciais, sustenta que a responsabilidade objetiva somente teria lugar em hipóteses pontuais, a saber, erro judiciário e excesso de prazo em prisão.[8]

Curioso notar que o entendimento, a par de resgatar a teoria da irresponsabilidade — todas as demais hipóteses não desafiariam controle —, acaba por transmudar, no caso de erro, responsabilidade objetiva, mesmo admitida contingencialmente, em subjetiva, pelo simples fato de exigir, num dos casos, evidenciação de erro, isto é, de conduta ao menos culposa.

De todo modo, o fato é que aquele entendimento acenderia a ameaça de sua ampliação para que alcançassem os membros do Ministério Público, frequentemente também enquadrados como agentes políticos lado a lado com a magistratura. Ainda que não tenhamos notícia judicial — ao menos nas cortes superiores — de que essa ampliação tenha tido lugar, o alerta serve para que reforcemos nosso posicionamento de que a responsabilidade do Estado, na hipótese de dano oriundo de conduta de membro do Ministério Público, segue, e deve continuar sendo, objetiva.

Terceira e derradeira questão que coloca toca a responsabilidade regressiva, merecendo menção o artigo 181 do Código de Processo Civil, que, ecoando o artigo 143, I, do mesmo diploma, assegura aos membros do Ministério Público, a exemplo dos juízes, responsabilidade subjetiva somente no caso de dolo ou fraude, excluindo-se, pois, a mera culpa.

Não deixa de ser irônico que uma das grandes bandeiras doutrinárias em sede de improbidade — a eliminação da modalidade culposa, proposta essa encampada pelo Projeto de Lei n. 10.887/2018 — encontre ausência de paralelismo com a responsabilização dos membros do Ministério Público. Seja como for, fato é que a disposição processual limita em grande medida a possibilidade de exercício de direito regressivo pelo Estado contra o órgão ministerial.

À guisa de conclusão, ainda que com o perdão pela repetição, frise-se não temos absolutamente nenhuma pretensão de que este escrito milite em favor de uma censura ou de uma limitação à atuação do Ministério Público, instituição das mais caras ao Estado Democrático/Constitucional de Direito. O que apontamos, nada obstante, é apenas algo inerente à democracia: limites a poderes.

 

[3]MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 92.

[4] Precedente: Autos n. 0.00.000.000197/2014-91. Documento de Origem: SEC/CN/CNMP n. 115/2014.

[5] NÓBREGA, Fábio George Cruz da. O controle administrativo e disciplinar do CNMP e a impossibilidade de interferência na atividade finalística dos membros do Ministério Público. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CNMP em ação: uma análise teórica de sua jurisprudência. Brasília: CNMP, 2017. p. 73.

[6] A teor do disposto no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima passiva o autor do ato.

[RE 1.027.633, voto do rel. min. Marco Aurélio, j. 14-8-2019, P, DJE de 6-12-2019, Tema 940]]

[7] Responsabilidade objetiva do Estado por atos do Ministério Público (…). A legitimidade passiva é da pessoa jurídica de direito público para arcar com a sucumbência de ação promovida pelo Ministério Público na defesa de interesse do ente estatal. É assegurado o direito de regresso na hipótese de se verificar a incidência de dolo ou culpa do preposto, que atua em nome do Estado.

[AI 552.366 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 6-10-2009, 2ª T, DJE de 29-10-2009.]

[8] ARE 828027 ArG-segundo, DJ de 23.11.2017.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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