Opinião

O debate sobre a vida em tempos sombrios

Autor

  • Bruna Rodrigues

    é advogada do Serviço de Assistência Judiciária (SAJ) da PUC-MG. Pós-Graduada em Direito Processual e graduada em Direito pela mesma universidade.

24 de abril de 2020, 15h44

A vida humana também desfruta, em suas formas anônimas, de “dignidade” e exige “respeito”. (JÜRGEN HABERMAS)[1]

Em tempos de pandemia inúmeras incertezas assolam a sociedade. A doença causada pelo novo coronavírus de Covid-19[2] apresentou-se a humanidade e desse modo possibilitou debates que se encontravam adormecidos e até mesmo eram considerados sem importância, frente a temas como globalização, economia, política, soberania nacional, dentre tantos outros. Nesse viés, a ‘vida’ e suas vertentes tornaram-se pano de fundo das discussões e preocupações de muitos países.

Com a pandemia a humanidade busca uma nova maneira de sobreviver ao caos implantado, os hábitos mudaram e as prioridades foram alteradas.

Em recente entrevista concedida pelo filósofo Jürgen Habermas, a Nicolas Truong, publicada pelo jornal francês Le Monde, reproduzida pelo italiano La Repubblica e no Brasil disponibilizada pelo Instituto Humanitas Unisinos[3], foram levantadas questões relevantes ao atual cenário. A crise sanitária global e seus desafios éticos marcaram a entrevista.

Contudo, cumpre esclarecer que não é objetivo do presente texto analisar de maneira profunda a entrevista em referência, mas sim, extrair da mesma, fragmento de determinada inquietação apresentada por Habermas em entrevista[4] e já demonstrada pelo autor em outra obra, conforme será descrito na sequência.

Ao ser questionado sobre os desafios éticos desta crise global e sanitária, preleciona:

Acima de tudo, vejo dois casos possíveis que violam a intangibilidade da dignidade humana, que a Constituição alemã garante no preâmbulo e afirma no segundo artigo com a declaração ‘Toda pessoa tem direito à vida e à integridade física’.

O primeiro diz respeito à chamada triagem, o outro à escolha do momento certo para interromper o distanciamento social. O perigo de sobrecarregar as unidades de terapia intensiva nos hospitais, que já ocorreu na Itália e é temido em nosso país, lembra os cenários da medicina das catástrofes que geralmente ocorrem apenas durante as guerras. Se o número de pacientes hospitalizados exceder o número de leitos disponíveis nas unidades de terapia intensiva, os médicos inevitavelmente terão que tomar uma decisão trágica, porque, em qualquer caso, é imoral.

Daí surge a tentação de abdicar do princípio da igualdade de tratamento para todos os cidadãos, independentemente de status, origem, idade etc., e, no nosso caso, em especial, favorecer os jovens em detrimento dos idosos. Isso poderia ser desejado pelos próprios idosos em um ato de altruísmo moralmente admirável.”[5]

E ao final Habermas questiona: “Mas qual médico ‘pesaria’ o ‘valor’ de um homem contra o ‘valor’ de outro, erigindo-se assim a mestre da vida e da morte?”[6]

É frente a tal inquietação que o presente texto se funda, uma vez que reflexões sobre a vida são necessárias.

Em 2004, fora publicada a tradução do livro “Die Zukunft der menschlichen Natur”, com o título “O futuro da natureza humana”, de Habermas.[7] Neste estudo, a proposta principal consistiu na realização de debates sobre questões éticas, pesquisa com embriões, diagnóstico genético de pré-implantação (DGPI) e abordagens sobre o aborto. No tópico II, denominado “Dignidade humana vs. Dignidade da vida humana” da obra em referência, Habermas assevera que o debate filosófico,

“[…] em torno da admissibilidade do uso de embriões exclusivamente para pesquisa e do DGPI moveu-se até agora no canal da discussão sobre o aborto. Na Alemanha, tal discussão levou à regulamentação segundo a qual a interrupção da gravidez até a 12ª semana é considerada um ato ilegal, mas livre de pena. Pela lei, o aborto é permitido se houver uma indicação médica em caso de risco para mãe. Como em outros países, esse tema dividiu a população em dois grupos.”[8]

Frise-se que os questionamentos em relação à vida e seu controle implantam um novo “aspecto em jogo — a instrumentalização de uma vida humana, produzida sob condições e em função de preferências axiológicas de terceiros.” [9] Logo, a instrumentalização da vida transfere a mesma o “status” de “coisa”, que pode ser utilizada como meio. 

Nesse viés, Habermas argumenta que apesar da seriedade das discussões sobre o aborto, as mesmas fracassam diante da tentativa de alcançar-se uma “descrição ideologicamente neutra, e, portanto, sem prejulgamentos, do status moral da vida humana prematura, que seja aceitável para todos os cidadãos de uma sociedade secular.” [10]

Ora, se não há dúvidas que a vida humana possui valor intrínseco antes do nascimento “quer chamemos simplesmente de ‘sagrada’, quer recusemos tal ‘sacralização’ daquilo que constitui um fim em si mesmo”[11], deve-se compreender que a substância normativa da necessidade de proteção a vida-humana pré-pessoal não é capaz de identificar uma expressão racionalmente aceitável para todos os cidadãos “nem na linguagem objetivante do empirismo, nem na religião.”[12]

Esta discussão é ainda mais profunda quando a inquietação de Habermas consiste em compreender como será possível definir o universo dos possíveis portadores de direito e deveres morais? Isto considerando que na “linguagem dos direitos e deveres, a comunidade de seres morais, que fazem suas próprias leis”[13], uma vez que necessitam de um regulamento normativo para disciplinar suas relações. Contudo, apenas “os membros dessa comunidade podem se impor mutuamente obrigações morais  e esperar uns dos outros um comportamento conforme a norma.” [14]

Nesse leque, aqueles que estão aptos ao debate normativo já se posicionam em uma esfera pública democrática, que analisa proposições morais em sentido estrito. São verificadas proposições ideologicamente neutras sobre o que pode ser considerado “bom para todos”. Logo, pode-se considerar que a “pretensão de aceitabilidade racional distingue as proposições sobre a solução “justa” para os conflitos de ação das proposições acerca do que é “bom para mim” ou “para nós” no contexto de uma história de vida partilhada.” [15]


 

Ocorre que até mesmo aqueles que não possuem condição de imporem-se mutuamente obrigações e direitos intersubjetivamente reconhecidos, como os animais, são beneficiados por obrigações morais, como forma de respeito ao seu sofrimento.

 

Esta linha Habermasiana de raciocínio conduz a um caminho que luta pela demonstração de que a dignidade humana e a simetria de suas relações interpessoais visam manter uma distinção obrigatória entre “direitos” e “bens”.[16] Em análise ao caso em tela, a criança ou o embrião que não seja considerada no sentido estrito do termo como pessoa, não deve ser compreendida como um bem material, ou seja, instrumentalizado.[17]

Ademais, conforme exposto em tópico antecedente, “algo pode ser considerado como indisponível, ainda que não receba o status de sujeito de direitos, que, nos termos da Constituição, é portador de direitos fundamentais inalienáveis”[18], de modo que, indisponível, não é apenas aquilo que a dignidade humana tem, já que a disponibilidade pode ser privada por contundentes motivos morais, sem por isso ser “intangível no sentido dos direitos fundamentais em vigor de forma irrestrita e absoluta.” [19]

Jürgen Habermas também enfatiza que,

“[…] “a dignidade humana”, entendida em sentido moral e jurídico, encontra-se ligada a essa simetria das relações. Ela não é uma propriedade que se possa “possuir” por natureza, como a inteligência ou os olhos azuis. Ela marca, antes, aquela “intangibilidade” que só pode ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas.[20]

A abordagem, conforme exposta acima, preza pela dignidade humana e intangibilidade da vida pré-pessoal, mesmo diante das celeumas relacionadas à vida do embrião no útero materno e o direito de autodeterminação da mulher.

Insta salientar que o autor, neste momento, possui especial cuidado com alguns estágios de vida, já que, o mesmo entende o “comportamento moral como uma reposta construtiva às dependências e carências decorrentes da imperfeição da estrutura orgânica e da fragilidade permanente da existência corporal (evidente sobretudo em fases da infância, da doença e da velhice).” [21] Tais estágios de vida são por Habermas, considerados como vulneráveis, o que justifica a dependência do indivíduo em relação aos outros. [22]

Desse modo, a vulnerabilidade confere ao indivíduo um estágio de exposição ao outro. O “feto ou embrião” nesta condição de fragilidade em função da autonomia da existência daquele que o preserva de alguma forma, de modo que a “individualização da história de vida realiza-se por meio da socialização.” [23]

A socialização do feto como forma de admissão no contexto de interação no mundo da vida partilhada de forma intersubjetiva, apenas ocorre com o processo de nascimento, pois, transforma o organismo em uma pessoa, no sentido completo da palavra. Nesse contexto, Habermas dispõe que,

“Somente a partir do momento em que a simbiose com a mãe é rompida é que a criança entra no mundo de pessoas, que vão ao seu encontro, que lhe dirigem a palavra e podem conversar com ela. Apenas na esfera pública de uma comunidade linguística é que o ser natural se transforma ao mesmo tempo em indivíduo e em pessoa dotada de razão.” [24]

Não obstante o exposto, o autor relembra que não é possível refletir de forma errônea sobre o fato de que “antes de ser inserida em contextos públicos de interação, a vida humana, enquanto ponto de referência dos nossos deveres, goza de proteção legal, sem ser, por si só, um sujeito de deveres  e um portador de direitos humanos.”[25]

Habermas assevera que,

Os pais não apenas falam sobre a criança que cresce in útero, mas de certo modo, também se comunicam com ela. Não é apenas a visualização dos traços inegavelmente humanos do feto na tela que faz da criança que se move no útero materno um destinatário, no sentido de uma anticipatory socialization [socialização por antecipação]. Obviamente, temos para com ela e em consideração a ela deveres morais e jurídicos. Além disso, a vida pré-pessoal, anterior a um estágio em que se pode atribuir a ela o papel destinado a uma segunda pessoa, a quem se pode dirigir a palavra, também conserva um valor integral para a totalidade de uma forma de vida eticamente constituída.”[26]

Em suma, a breve exposição apresentada neste estudo, demonstra que “o caráter dos entraves morais, difíceis de definir, que regulam o trato com a vida humana antes do nascimento e após a morte explica a escolha de expressões semânticas flexíveis.” [27] Ou seja, a vida humana é uma destas expressões, que “desfruta em suas formas anônimas de dignidade, e exige respeito”[28], pois, se é possível recorrer ao termo dignidade, é porque o mesmo é capaz de delimitar um amplo aspecto semântico e mesmo assim evoca apenas um conceito mais especifico da dignidade humana. [29]

Nesse leque,

As conotações, que ainda se vinculam com muito mais clareza ao conceito de “honra” a partir da história de seus modos de utilização pré-modernos, também deixaram, rastros na semântica do termo “dignidade” — a saber, a  conotação em um ethos dependente do status social. A dignidade do rei materializava-se no estilo de pensamento e de comportamento de uma forma de vida diferente daquela da mulher casada e do celibatário, do artesão e do carrasco. Dessas manifestações concretas de uma determinada dignidade é que se abstrai a “dignidade do homem”, universalista em sua essência, e que compete à pessoa como tal. Quanto a esse processo de abstração que conduza à “dignidade humana” e ao “direito humano” — o único de Kant —, não podemos de nossa parte nos esquecer de que o mesmo a comunidade moral dos sujeitos livres e iguais de direitos humanos não forma um “reino dos objetivos” no além  numeral, mas permanece inserida em formas concretas de vida e no seu éthos. [30]


Desse modo, diante das reflexões apresentadas é possível concluir que a vida humana é valiosa e não deve ser desamparada por falsas ponderações e discursos estrategicamente criados. Ademais, dessas lições, Habermas deixa algo transparecer, de maneira nítida. O autor refere-se à dignidade da pessoa humana como intrínseca a vida, independentemente da vulnerabilidade de seu estágio, condição social, ou qualquer critério que possa buscar a distinção entre a “vida humana”.

 

Ao final deste breve ensaio acadêmico não poderia deixar de indagar: hoje, qual seu posicionamento frente a este tema? Em defesa da vida ou contra a sua manutenção? Ainda reflita, o debate sobre a vida pode ser instrumentalizado? As decisões relacionadas ao assunto podem ser tomadas de maneira indiscriminada e por todas as esferas de poder? Se sim, teriam tais decisões legitimidade? Os interessados devem ser ouvidos, a fim de participarem racionalmente deste diálogo? Quais são os malefícios dos discursos sombrios e discriminatórios sobre a vida? Sua resposta é relevante, exponha seus fundamentos, pois, a formação de um discurso racional é um procedimento lento, uma vez que “é uma tendência própria do direito tornar-se mais e mais procedimental, abandonando modelos concretos de vida social como fundamento.”[31]

 

REFERÊNCIAS

FELDHAUS, Charles. O Futuro da Natureza Humana de Jürgen Habermas: Um comentário. Revista ethic@: Florianópolis, 2005. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/20241/18613> Acesso em 10 mar. 2020.

FIOCRUZ. Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. Disponível em: < https://portal.fiocruz.br/pergunta/por-que-doenca-causada-pelo-novo-virus-recebeu-o-nome-de-covid-19> Acesso em 18 mar. 2020.

HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

NOBRE, Marcos. 01. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. (Org.). Direito e Democracia: um guia de leitura em Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008.

UNISINOS. A solidariedade é a única cura. Entrevista com Jürgen Habermas. Trad.: Luisa Rabolini. Rio Grande do Sul: Instituto Humanitas Unisinos, 2020. Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597983-a-solidariedade-e-a-unica-cura-entrevista-com-juergen-habermas> Acesso em 15 abr. 2020.


[1] HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 52.

[2] FIOCRUZ. Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020.

[3] UNISINOS. A solidariedade é a única cura. Entrevista com Jürgen Habermas. Trad.: Luisa Rabolini. Rio Grande do Sul: Instituto Humanitas Unisinos, 2020.

[4] Idem.

[5] UNISINOS. A solidariedade é a única cura. Entrevista com Jürgen Habermas. Trad.: Luisa Rabolini. Rio Grande do Sul: Instituto Humanitas Unisinos, 2020.

[6] Idem.

[7] HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 44.

[8] Ibidem, p. 41-42.

[9] Ibidem, p. 43.

[10] HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 43.

[11] Ibidem, p. 65.

[12] Idem.

[13] Ibidem, p. 46.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] FELDHAUS, Charles. O Futuro da Natureza Humana de Jürgen Habermas: Um comentário. Revista ethic@: Florianópolis, 2005, p.314.

[17] Idem.

[18] HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 44.

[19] Idem.

[20] Ibidem, p. 46.

[21] HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 47.

[22] Ibidem, p. 48.

[23]Idem.

[24] Ibidem, p. 50.

[25] Idem.

[26]  HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal?. Trad.: Karina Jannine. Rev. da Trad.: Eurice Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, p. 50-51.

[27]  Idem.

[28] Ibidem, p. 53. 

[29] Idem.

[30] Ibidem, p. 52. 

[31]  NOBRE, Marcos. 01. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. (Org.). Direito e Democracia: um guia de leitura em Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 35.

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    é advogada do Serviço de Assistência Judiciária (SAJ) da PUC-MG. Pós-Graduada em Direito Processual e graduada em Direito pela mesma universidade.

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