Senso incomum

Professor de Harvard lança "constitucionalismo Deus acima de todos"

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23 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Algo assustador — e perigoso — aconteceu na teoria constitucional nestes dias de pandemia. Um antigo defensor ortodoxo de interpretação textualista acaba de mudar de lado, transformando-se num ativista “teo-onto-voluntarista”, a ponto de rejeitar a própria noção histórica de Constituição.

Não estou falando de alguém da terceira divisão. Falo de Adrian Vermeule — primeira divisão — e seu artigo publicado na revista The Atlantic, chamado Beyond Originalism (Para Além do Originalismo). Aqui, uma explicação teorética inicial se faz necessária.

Com efeito, o originalismo é uma corrente de interpretação constitucional que prega que o significado das cláusulas constitucionais foi fixado no momento da promulgação da Constituição (não esqueçamos que a Constituição dos EUA é de 1787). Vamos a um exemplo? Todos concordamos que a Constituição dos EUA proíbe a punição “cruel” e “atípica” (cruel and unusual punishment). Agora, o que é, o que significa “cruel” e “atípico”? Para o originalismo… significa aquilo que os Pais Fundadores queriam dizer à época. E permanece e permanecerá assim, para todos os tempos. Ironicamente, consideram constitucional a pena de morte por câmara de gás e cadeira elétrica. Vai saber que raios seria “cruel and unusual punishment”.

Problemas? Muitos. Quem garante que aquilo que se diz sobre o que disseram os Pais Fundadores não é aquilo que o intérprete quer dizer acerca do que disseram os Pais Fundadores? Ora, quem é que dispõe dessa grande chave de acesso à cabeça de Jefferson, Adams, Madison, Jay, Washington, Hamilton, Franklin? Mais: todos eles pensavam do mesmo modo? Parece, pois, que o originalismo não é tão seguro assim.

Por diligência epistêmica, preciso situar o leitor, que pode estar perguntando: quem é Adrian Vermeule? Explico. Até poucos dias, ele defendia um tipo ortodoxo de textualismo, a partir de argumentos institucionais. Rejeitava até os exemplos clássicos acerca das insuficiências desse modelo de interpretação. Muitos juristas (Pufendorf, Blackstone, Bentham e Posner) criticaram em alguma medida o formalismo, defendendo o chamado “cânone dos resultados absurdos” (lembram dos cães na plataforma?). Para tanto, citavam o caso da Lei de Bolonha, pela qual “quem derramasse sangue nas ruas deveria ser punido com a maior severidade”. Entendeu-se que ela não poderia ser estendida ao cirurgião que atendesse alguém na rua.

Pois saibam que Vermeule era tão radical que não concordava com esse cânone. Para ele, reconhecer ao juiz o poder de fazer correções em casos específicos terá um custo sistêmico, em termos de previsibilidade do direito e de incentivos para a ação do Legislativo. Ele invoca Schauer, para quem um poder de os juízes evitarem resultados absurdos também é um poder de os juízes evitarem resultados que eles equivocadamente julgam absurdos.

A última parte do livro Judging under uncertainty: an institutional theory of legal interpretation, Vermeule dedica a essa análise institucional comparativa entre diferentes regimes interpretativos, dentro do contexto americano. Ao constatar os elevados custos de erro de interpretações mais ambiciosas pelos juízes, como quando recorrem ao histórico legislativo, ele defende que o modelo de interpretação judicial mais efetivo nesse sistema seria o textualismo.

Com seu modelo, Vermeule até mesmo discorda do famoso caso Brown, que acabou com a educação segregada, porque textualmente a lei e a Constituição permitiam a segregação.

Discordo1 totalmente dessa posição do, chamemos assim, Vermeule I. Por mais que um texto importe, o intérprete não pode ignorar o tempo, os fatos e a história, especialmente a wirkungsgechichtliches Bewusstsein (a consciência da força dos efeitos que a história tem sobre o intérprete).

Se esse textualismo era um problema, vejamos, agora, algo pior, pois Vermeule II partiu para uma teoria da interpretação que se distancia totalmente do texto, para promover seus valores religiosos.

Agora Vermeule quer passar à “ofensiva”, deixando para trás o textualismo. Para isso, critica também o originalismo, teoria que ele mesmo nunca professou, mas que era dominante no seio do conservadorismo jurídico americano. Ocorre que, com o tempo, até mesmo os liberais passaram, em determinados casos, a professar teses originalistas, diz com certo lamento.

Face a estes tempos, que ele supõe serem de vitória do conservadorismo, Vermeule decreta o fim do originalismo. Não há mais utilidade nessa teoria. E, para tanto, propõe o “novo”: um constitucionalismo do bem comum (Common-Good Constitutionalism), algo como uma teologia constitucional. O significado será aquele que promove… o “bem comum”. E como seria o bem comum vermeuleano?

Vejamos: Na pandemia, diz ele, um governo justo deve ter amplos poderes (bom, por aqui parece que isso já está “pegando”). E como se faz isso? É fácil, responde Vermeule: Isso se faz por meio de um illiberal legalism (sim, o leitor leu corretamente: um legalismo iliberal) que não seja meramente conservador, porque o conservadorismo padrão se contenta em jogar defensivamente de do jogo liberal ou das regras deste. Ou seja, um direito com garantias liberais atrapalha um bom governo. Run to the hills!

Vermeule diz, ao final, que o constitucionalismo – esse que ele propõe – se tornará mais direto, mais abertamente moral (menos textual), menos dependente ou ligado a doutrinas tendenciosas (ou a escritórios de advocacia). Um constitucionalismo de valores morais substantivos. O próprio Vermeule indica seus valores morais substantivos (sem demonstrar por meio de critérios de verificação, claro): hierarquia, autoridade. Boas maneiras.

A esse respeito, o professor Garrett Epps, da Universidade de Baltimore, levantou uma série de preocupações, que passo a reconstruir nos próximos parágrafos.

Seria uma pegadinha de Vermeule? Pois é. O artigo até poderia ser uma sátira. Garret Epps suspeita que o autor está sendo sincero, e nada mais está fazendo do que vocalizando o que muitos conservadores americanos realmente pensam sobre o papel da Suprema Corte.

Essa interpretação é consistente com o histórico de Vermeule. Nos últimos anos, ele passou por um processo de conversão religiosa que o levou a defender a submissão do Estado à Doutrina da Igreja Católica, aderindo a um movimento conhecido como “integralismo”. Segundo Epps, Vermeule já vinha dando mostras de que isso mudou fortemente sua visão jurídica, ao defender que a política de imigração americana desse prioridade na concessão de vistos…para, pasmem, indivíduos católicos. Veja-se que a discussão aqui não diz respeito à religião do autor, em seu mérito teológico. Ela apenas se torna relevante para minha análise jurídica porque é invocada por Vermeule para legitimar uma mudança no Estado e no direito, em detrimento do credo (ou ausência de credo) de outros indivíduos.

Esse artigo (Beyond the Originalism) seria uma reformulação mais abrangente e radical do pensamento jurídico do autor. A partir daí, passa a defender uma revisão da liberdade de expressão, direitos reprodutivos, liberdades sexuais e outros direitos relacionados. Em tempos de trumpismo, esse tipo de posição não é algo raro no debate público americano, mas geralmente parte de figuras à margem do meio jurídico.

Contudo, diante dessa guinada conservadora radical, a pergunta que Garrett Epps faz é: onde se pode encontrar, na Constituição americana e em textos legais específicos, as pautas que esse “constitucionalismo do bem comum” quer promover? O argumento por um governo forte, que promova um projeto moral em detrimento das liberdades individuais, não tem suporte no direito americano. É invencionice.

Para Epps, “seria muito mais honesto Vermeule dizer que a velha Constituição fracassou e que os conservadores de toga deveriam invadir o Palácio de Inverno, rasgar o trapo velho, e substituir a República pela de Gileade”. Lembremos aqui a distopia de The Handmaid’s Tale.

Epps diz, ainda, que a tese de Vermeule tem uma retórica jurídico-político-religiosa constrangedoramente similar às da ditadura de um Franco. Esse filme já teve muitos remakes, cujas cenas iniciais sempre começam na imaginária cidade de Deus de Santo Agostinho (aqui no Brasil recentemente esse Santo também foi invocado), mas terminam em porões encharcados de um sangue bem real.

As críticas não param por aí. Outro petardo epistêmico veio do Prof. David Dyzenhaus, da Universidade de Toronto, quem escreveu o artigo Schmitten in the USA. O professsor Thomas Bustamante, em nota ao artigo, mostra bem como Vermeule distorce Dworkin, cujos pressupostos são liberais sociais e democraticos. Vermeule, ao distorcer Dworkin, dá uma ideia fascista do conceito de “comunidade”. Posição semelhante é a do não menos brilhante Marcelo Cattoni, quem diz: impressionante o mal que Vermeule está causando. Disse tudo, em poucas palavras.

Sigo. Dyzenhaus, elegante, diz que Vermeule, por obvio, não é nazista. Mas a posição que ele articula no artigo publicado no The Atlantic reproduz todos os elementos da posição de Carl Schmitt antes de 1933, incluindo uma ânsia por alguma idéia de legalidade, evidenciada em sua afirmação de que ele está advogando um tipo de teoria interpretativa do tipo que Dworkin desenvolveu, embora com um conteúdo iliberal diferente. Só que é um Dworkin às avessas. E Dyzenhaus concluia: embora Vermeule não mencione Schmitt, ele está nas entrelinhas. Trata-se de uma teologia política. E, pior, o artigo coincide com a aprovação da versão húngara (Orbán) da lei de habilitação de 1933.

E no Brasil?

Bom, por aqui, o perigo de a “virada Vermeule” “pegar” é enorme. Há, aliás, uma “tempestade perfeita” para tal. Basta ver os voluntaristas brasileiros que de há muito pregam que, na crise, o texto constitucional vale nada. Aliás, nas práticas cotidianas, já de há muito o Direito vale menos do que os argumentos morais (e moralistas) — o que pode ser visto, facilmente, pelo fenômeno que de há muito batizei de pamprincipiologismo. Quanta gente não diz por aí que acima da Constituição estão os valores da comunidade?

O que seria, aliás, um “constitucionalismo do bem comum”? Bem comum para quem? Se não conseguimos até hoje sequer colocar em prática o imposto sobre grandes fortunas (previsto na Constituição e não em um pretenso “repositório de valores ontológicos” tipo distopia Handmaid’s Tale) – que poderia dar um poderoso impulso justamente para a realização do bem comum – vemos autoridades propondo escolhas pelas quais velhos poderiam morrer em nome do “bem comum”.

A Constituição do Brasil diz que o Brasil é uma república que visa a erradicar a pobreza, fazer justiça social. Isso é norma. Ora, aqui no Brasil Vermeule chega atrasado. O que precisamos é fazer cumprir o nosso Brazilian common good constitutionalism, se me permitem a ironia. O bem comum que a nossa Constituição já deixou bem claro qual é e os voluntaristas brasileiros ignoram todos os dias.

É claro que estou sendo simplista de propósito. Ironizando. Mas eu falo muito sério. Tanto que vou, brincando de novo, beyond irony. Falo muito sério.

Com efeito. Passamos — um conjunto de juristas — mais de 30 anos pregando a força normativa da Constituição. Enquanto isso, muita gente pregava instrumentalismos, tudo bajo um realismo retrô. Esse conjunto de juristas vem pregando a força normativa e o papel diretivo da Constituição sem nem exigir ou exibir antihermenêuticos textualismos. Nesse sentido, escrevo sobre isso há décadas (Verdade e Consenso, Dicionário de Hermenêutica, Jurisdição Constitucional, dentre outros livros).

O problema é quando setores do Judiciário desprezam os limites do texto Constitucional sob pretexto da voz das ruas (medida onde?), da justiça (qual?), do bem comum (de quem?), isto é, voltamos mais de 100 anos no tempo para pregar o velho dualismo constitucional. Exemplos não faltam.

Em um país com “síndrome de Caramuru”, não ficarei admirado e nem surpreso se a tese da “virada Vermeule” frutificar por aqui. Enfim, somos bons em fazer haraquiri institucional. A tese de Vermeule mostra que a “teoria da katchanga” não é somente um privilégio de países de terceiro mundo.

Vermeule quer uma carta em branco, como o foi a Lei de Habilitação do Reich. Podem dizer que não. Mas quem preencherá o sentido, vago e ambíguo, do conceito de “bem comum”? O regime instaurado em 1964 no Brasil se dizia democrático.

Porque Vermeule, vejam bem, é um professor de direito constitucional de Harvard. É óbvio que ele sabe bem o que faz. Sabe bem… mas mesmo assim faz. E, nisso ao menos eu concedo o elogio, ele assume: ele está dizendo que isso tem relação com o momento dos EUA e a presidência de Trump. Pelo menos ele está sendo honesto. Ele só defende o bem comum porque ele sabe que aquele quem vai dizer o significado de bem comum é o Justice Kavanaugh (o “conservador” envolvido em uma série de polêmicas de assédio, mas enfim, I digress), o Justice Gorsuch, e um provável terceiro apontado por Trump em caso de reeleição.

Claro. Vermeule quer o common good porque sabe que o good ali é o seu. Porque caberá aos seus dizer qual é o bem comum. Vermeule abandona o Direito e coloca a política acima dele. Por aqui, quantos são tão sinceros?

Eu digo: Se a política corrige o Direito, o que e quem vai corrigir a política? A fórmula Streck diverge de Vermeule: a Constituição diz qual é o bem comum. É a partir dela. Que não é um instrumento para o bem comum, mas condição de possibilidade para o bem comum.

Agora imaginem se esse Vermeule II criar um modelo do juiz-sacerdote, que pode orientar a ação em Cortes de países nos quais está havendo uma perigosa mistura entre movimentos políticos de extrema direita, direito de exceção e fanatismo religioso?

No andar da carruagem, se Vermeule fosse médico, baniria os antibióticos!

MEU PEDIDO:

Assim, aqui vai meu pedido final, parafraseando o famoso samba de Edson Conceição e Aloisio Silva, imortalizado na voz de Alcione: “não deixem o constitucionalismo morrer, não deixem o constitucionalismo acabar”:

  • Aos liberais, peço que acordem para a fragilidade da aliança que fizeram com o que há de mais retrógado e anti-democrático no país, por revanchismo contra a esquerda.

  • Aos direitistas, peço que atentem para o caráter realmente reacionário de alguns dos que dizem militar entre suas fileiras.

  • Aos esquerdistas, peço que se juntem à defesa da autonomia individual, bem compreendida pela social democracia, e entendam que no jogo da radicalização a extrema direita ganhará de lavada.

Afinal, como no samba, a democracia foi feita no e pelo constitucionalismo e a democracia foi feita pra gente viver..!


1 Tenho orientado uma tese de doutorado, de Ziel Ferreira Lopes, na qual se faz uma crítica à posição de Vermeule, a partir de um marco hermenêutico-interpretativista, mostrando que o professor de Harvard atropela questões importantes sobre a correta compreensão dos direitos, exagerando em argumentos institucionais contra o Judiciário e idealizando a atuação das Agências Reguladoras.

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