Opinião

Covid-19: o conhecimento no exame da proporcionalidade

Autores

  • Fabiana Pagel da Silva

    é juíza titular do Juizado da Violência Doméstica de Canoas/RS.

  • Roberto Jose Ludwig

    é juiz titular do 2º Juizado da 15ª Vara Cível de Porto Alegre coordenador do Departamento de Assuntos Constitucionais da AJURIS e doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

23 de abril de 2020, 18h09

Duas impactantes notícias sobre o mesmo tema trouxeram consigo alguma perplexidade e, paradoxalmente, também um novo olhar sobre a interpretação adequada da Constituição numa época de gravíssimas medidas restritivas a direitos fundamentais.

Em 31/03/2020,  o Supremo Tribunal Federal proibiu liminarmente ao Governo Federal veicular qualquer campanha que, tal como "O Brasil não pode parar", sugira que a população deva retornar às suas atividades ou que minimize os riscos da pandemia do novo coronavírus para a saúde e a vida da população [1].

Alguns dias antes, a Justiça Federal do Rio de Janeiro acolhera pleito liminar formulado pelo Ministério Público Federal no sentido de proibir o Governo Federal de veicular por quaisquer meios peças de propaganda da campanha "O Brasil não pode parar" [2].

O caráter perturbador desses eventos não reside apenas na controvérsia levantada quanto ao protagonismo do Poder Judiciário em tema tão candente, mas também em expor uma fissura interna na base da política de prevenção e combate à pandemia da Covid-19: enquanto autoridades políticas e sanitárias de diferentes níveis estabeleceram a necessidade do isolamento social, um movimento diametralmente oposto, por influência econômica, propõe a retomada da circulação das pessoas.

O toque auspicioso das decisões referidas consiste em projetar nova luz sobre o exame da constitucionalidade de medidas sanitárias gravosas e, em particular, sobre a relevância do conhecimento científico nele aplicado.

Questiona-se: por que a proporcionalidade?

A pandemia ocasionou o afloramento de duas posições extremadas: de um lado, há quem sustente que todo sacrifício é válido em prol da saúde coletiva; de outro, o colapso econômico deve ser evitado até mesmo ao custo de alguns milhares de mortes. Tais posições coincidem com a defesa de valores sociais fundamentais em qualquer comunidade, como a saúde pública e estabilidade econômica; mais ao fundo, estão valores individuais básicos: vida e saúde por um lado; liberdade em seus múltiplos espectros de outro [3].

Nada melhor que isso serve para ilustrar o que Carl Schmitt designou como a "tirania dos valores" [4], ou seja, a discussão pautada exclusivamente pela axiologia conduz ao paroxismo: para o valor máximo, até o mais alto preço deve ser pago, inclusive o aniquilamento dos demais.

Para compatibilizar diretivas fundamentais, atribuindo a cada qual a máxima eficácia, tanto no plano do direito coletivo como do individual, sem aniquilar a concorrente, a melhor solução consiste em realizar a ponderação de acordo com a proporcionalidade, procedimento estruturado em passos e técnicas de sopesamento, de modo a articular a aplicação de direitos fundamentais com caráter de princípio e de bens coletivos sem o risco de incursão em pressuposições axiológicas insustentáveis [5].

Isso é possível através do conceito de relação de precedência condicionada [6], pois as condições fáticas e jurídicas definem se um principio tem precedência sobre outro, com vista à otimização de seus comandos no caso concreto.

Para tanto, a solução proporcional, aceita como ótima pelo sistema, será aquela que  atenda ao (sub)princípio da idoneidade, que exclui o emprego de meios que prejudiquem, pelo menos, um princípio sem ao menos fomentar um dos princípios ou objetivos a cuja realização devam servir [7]; ao (sub)princípio da necessidade, que, por sua vez, pede que se escolha aquele meio, dentre dois que fomentem igualmente um princípio, que ao mesmo tempo intervenha menos em princípio oposto [8]; e, por derradeiro, o princípio da ponderação propriamente dito (terceiro subprincípio) diz com a otimização relativamente às possibilidades jurídicas, segundo o qual, se comprova sucessivamente o grau de não-cumprimento ou prejuízo de um princípio; a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário; e, por derradeiro, se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não-cumprimento de outro princípio.

Facilmente se percebe que tais operações suscitam problemas epistêmicos, porquanto fazem aflorar o debate sobre as informações utilizadas e as escolhas feitas na própria determinação dos graus de importância e de cumprimento/prejuízo, assim como sobre o  parâmetro de certeza exigível quanto às premissas fáticas e normativas levadas em consideração no procedimento.

Sem o enfrentamento dessas questões relativas ao conhecimento tomado em conta no procedimento de ponderação, a racionalidade oriunda de conceito de otimicidade se perde, por não se sujeitar ao controle discursivo dos seus resultados pelos demais integrantes da comunidade, que possuem o legítimo interesse de contestar os resultados obtidos ou sugerir retificações em qualquer dos passos encetados, valorações feitas ou pressuposições assumidas [9].

Não poderia ser diferente a relevância emprestada, no caso da pandemia da Covid-19, à certeza das premissas empíricas a serem consideradas para o balanceamento dos direitos à vida/saúde e à liberdade, o que, como se observa na discussão pública da necessidade ou não da medida sanitária do isolamento social, diz com o suporte científico e técnico disponível em seu favor e contra, como se verá abaixo.

As decisões  judiciais acima referidas claramente frisam esse aspecto.

Na liminar do ministro Barroso, que transcreveu na fundamentação pronunciamentos técnicos de diferentes autoridades do setor sanitário tanto públicas (Organização Mundial de Saúde; Ministério da Saúde e Conselho Federal de Medicina) como privadas (Sociedade Brasileira de Infectologia), baseou-se no argumento de que "não há qualquer dúvida" da ameaça do vírus à saúde da população; por seu turno, a Ação Civil Pública proposta na Justiça Federal carioca acolheu a tese da ausência de base científica para apoiar o relaxamento da medida de isolamento social.

Nessa quadra, a discussão levantada gira em torno de efetiva necessidade da medida de isolamento adotada, comparativamente a outras soluções possíveis, como um isolamento limitado apenas aos já infectados ou a estes somados aos integrantes de grupos de risco (isolamento vertical) [10], ou a mitigação do isolamento em relação a setores produtivos e estabelecimentos.

Dito de outro modo, a questão nodal e primeira não está em definir abstratamente a prioridade entre a vida/saúde e a liberdade  (ir e vir, trabalhar e empreender) ou entre saúde pública e estabilidade econômica; não é, ainda, o momento de realizar a ponderação stricto senso entre ambos, porque primeiro há necessidade de estabelecer a idoneidade (eficiência) e, após, a necessidade da medida discutida, ou seja, verificar se não há outra medida menos gravosa ou uma forma mais leniente dela que atinja a finalidade eleita.

Nessa tarefa, desde logo é preciso estabelecer uma premissa filosófica: a saúde constitui objeto de conhecimento na forma de ciência (episteme) e não de opinião (doxa[11]Embora cada pessoa possa manifestar opiniões sobre temas afetos à saúde, há séculos desenvolve-se a atividade de pesquisa científica no terreno sanitário, com a afirmação de diversas ciências, como a medicina, a farmacologia, a genética, a infectologia, etc., as quais reivindicam, com autoridade reconhecida e crescente especialização de áreas, o objeto genérico do conhecimento relativo à saúde.

Por isso, havendo possibilidade de pautar determinada decisão política relativa à saúde pública pela ciência embasada em evidência, não há qualquer razão moral, política ou jurídica que justifique preteri-la em favor de alguma opinião, por mais elevada que seja a autoridade que a emita.

Cumpre enfatizar que o critério aqui adotado é o da evidência científica disponível, com pesquisa básica ainda em evolução; todavia, esta também pode ser preenchida por experiências fáticas havidas ou em curso em diferentes países, onde o contágio iniciou mais cedo.

Nesse aspecto, elucidativo o exemplo da experiência italiana de rever o critério-guia das opções normativas após colher um péssimo resultado de uma opção equivocada, como exemplificado pela campanha "Milano non si ferma" (Milão não fecha), posteriormente repudiada. [12] A semelhança da campanha milanesa com "O Brasil não pode parar" justifica a inferência de que, também no Brasil, a recusa ao isolamento geraria um desastre posteriormente reconhecido pela autoridade pública?

A resposta à indagação encontra-se nas manifestações de diversas autoridades científicas, as quais têm vindo a público recomendar o isolamento como necessário [13] e utilizar o caso de Milão como uma política pública de saúde contrária à ciência baseada em evidência. Mesmo os juízos fixados no aspecto predominantemente econômico não podem eludir a evidência de que o caos no sistema de saúde dos países que negligenciaram a pandemia acarretou e ainda ocasionará enormes prejuízos à economia local.

Por isso, adotando-se o critério da evidência científica disponível até o momento, a medida do isolamento social horizontal deve ser considerada como apropriada para a finalidade de conter ou reduzir a propagação do coronavírus por ser altamente contagioso e não insignificativamente letal, bem como necessária, por não se apresentar como cientificamente embasada alternativa tão eficaz e menos interventiva. Restam, assim, atendidos os subprincípios da idoneidade e necessidade.

Na terceira etapa da aplicação da proporcionalidade, explicita-se a ponderação propriamente dita e, no seu trato sucessivo proposto acima, sobressai a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário, ou seja, a saúde pública, não apenas no seu viés de evitação de milhares de mortes, como também de colapso do sistema de saúde. Ausente outra alternativamente menos gravosa, de acordo com a ordem constitucional vigente, o direito à vida e à sua correlata, a  saúde, tem reconhecido um elevado peso abstrato, ainda que não absoluto, mas certamente superior ao da  liberdade; no plano coletivo; também se pode aquilatar como alto o peso abstrato da saúde coletiva, comparativamente com o da estabilidade econômica.

Por isso, sem que se pretenda fazer uma prognose do que o Poder Judiciário deliberará em cada caso ou em geral sobre o problema aqui debatido [14], a elevada  importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não-cumprimento de outro princípio da liberdade individual na medida proposta, ou seja, que haja o isolamento social.

À guisa de conclusão, registre-se que, em época de excepcional evento sanitário, a proteção constitucional de direitos encontra no exame da proporcionalidade um critério promissor de racionalidade, seja por possibilitar revisão da ponderação conforme a evolução do conhecimento, seja por combinar a ideia de eficiência extraída de ciência empírica com a  ponderação de princípios colidentes, de modo a apresentar uma alternativa à tirania de valores.

Por certo, a avaliação da necessidade da medida de isolamento social requer a máxima cautela, sob pena de o Poder Judiciário decidir em substituição ao legislador ou administrador e em afronta às suas competências constitucionais quanto à  determinação das medidas de enfrentamento da pandemia. Não por acaso, as decisões judiciais referidas adotaram o padrão "além de qualquer dúvida" ou de "certeza" no que tange ao embasamento empírico da gravosa medida de isolamento social; em ambos os casos, prevalece a relevância do critério do suporte de conhecimento baseado em evidência, o que engloba tanto o conhecimento científico já desenvolvido, ainda que não completo, como experiências fáticas conhecidas relativas a outros países.

 


[1] Cfe. ADPF 669, decisão disponível em.   http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342798642&ext=.pdf (acesso em 04-04-2020).

[2]  Cfr. ACP 5019484-43.2020.4.02.5101, disponível em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/Propaganda%20-%20COVID19%20-%20Decisao%20liminar.pdf (acesso em 04-04-2020).

[3]  CF/88, art. 5º, caput (inviolabilidade do direito à vida e liberdade); art. 196 (saúde como direito de todos e dever do Estado); art. 170, caput e § único (livre iniciativa; livre concorrência; liberdade de trabalho e de empresa).

[4]  Conforme Schmitt, “(d)o ponto de vista da lógica dos valores, sempre tem de valer que para o valor máximo o preço máximo não é demasiado alto e tem de ser pago.” Cfr. SCHMITT, Carl. Die Tyrannei der Werte, in: Säcularization und Utopie, Fschr. f. E. Forsthoff, Stuttgart/Berlin/Köln, Mainz 1967, S. 60.

[5]  ALEXY, Roberto. Theorie der Grundrechte. 2. Aufl. Frankfurt: Suhrkamp, 1994, S.  18.

[6] Ibidem, p. 84.

[7]  ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, ponderação e racionalidade. In: ______. Constitucionalismo discursivo. 3. ed. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 110.

[8]  Ibidem.

[9]  Ibidem, p. 131ss..

[11]  ARENDT, Hannah. Between past and future. New York: Penguin Books, 2006, p.  235.

[13]  Citem-se Ana Tereza Ribeiro Vasconcelos, geneticista e coordenadora do Laboratório de Bioinformática no LNCC ( https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/26/pesquisa-mostra-que-coronavirus-esta-aclimatado-no-brasil-e-reforca-necessidade-de-isolamento-diz-cientista.ghtml, acesso em 29-03-2020.) e o pesquisador da Universidade Brasília (UnB) Mauro Sanchez (https://jornaldebrasilia.com.br/cidades/coronavirus-isolamento-desacelera-contagio-diz-cientista/, acesso em 29-03-2020).

[14]  Interessante prognose encontra-se em artigo publicado por Bäcker em 25-03-2020, sobre o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. BÄCKER, Carsten. Corona in Karlsruhe: Eine Prognose.   Fonte: https://verfassungsblog.de/corona-in-karlsruhe/?fbclid=IwAR0Pq5MN0ZnDnVZ3Ittqr5dyoRsGf2HeBO1nosuAV7gMgaigLdBf6f5XPQE., acesso em 28-03-2020.

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