Olhar Econômico

Mercado ilegal pode ser também ilícito concorrencial

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

23 de abril de 2020, 8h00

Spacca
A transação de bens na antiguidade dava-se em locais abertos junto às povoações, lugares esses que, na Roma Antiga, ficaram conhecidos como mercatus, derivado de mercx (mercadoria) e mercari (comerciar). Sua grande transformação, que hoje abarca também ajustes virtuais, foi acompanhada pela evolução da significação semântica do termo mercado.

Mercado é o ambiente físico ou virtual, a que acodem potenciais compradores e vendedores com o intuito de realizar, organizadamente, trocas comerciais, de bens e serviços, sob a égide da lei da oferta e da procura. Sua dimensão jurídica reside em efetuar transações ou trocas comerciais de maneira organizada, em consonância com os ditames legais do país em que ocorrem.

Sendo o mercado passível de ser visto de vários ângulos, várias são suas possíveis classificações. Presentemente, interessa a classificação jurídica: mercado legal ou ilegal.

É vasto o número de setores e produtos atingidos pelo mercado ilegal no Brasil. Diuturnamente, bebidas, brinquedos, CDs e DVDs, cigarros, celulares, combustíveis, computadores, cosméticos, eletroeletrônicos, farmacêuticos, fertilizantes, impressoras, material audiovisual, material esportivo, óculos, perfumes, pilhas, produtos de higiene, produtos de limpeza, software, relógios, soluções de segurança, suprimentos de informática, Tv por assinatura, vestuário e videogames são furtados, roubados, fabricados ilegalmente, contrabandeados, descaminhados, pirateados etc.

O ambiente brasileiro de negócios é profundamente impactado pelo mercado ilegal, que reduz a arrecadação, prejudicando a economia; além de favorecer a criminalidade. As campanhas educativas e as medidas repressivas não tem sido suficientes, havendo necessidade de serem intensificadas e de se adicionar outros expedientes a esse combate, para que ele possa ser ganho[1].

Nos últimos anos, dois órgãos notabilizaram-se pelo empenho em diminuir o mercado ilegal: o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e aos Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP/SENACON) e o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP).

O primeiro, órgão consultivo e colegiado, com representação do governo e da sociedade, foi instituído em 2004, sendo pautado, atualmente, pelo Decreto 9.875, de 27 de junho de 2019[2]. A SENACOM, a partir dessa data, passou a exercer a secretária-executiva do órgão (art. 5º). Sua competência, relacionada ao combate à pirataria, ao contrabando, à sonegação fiscal delas decorrentes, e aos delitos contra a propriedade intelectual inclui apoiar medidas necessárias; fomentar ou coordenar campanhas educativas; estimular, auxiliar e fomentar o treinamento de agentes públicos; efetuar levantamentos estatísticos, requerer informações e dados dos Poderes Públicos; criar e manter banco de dados; auxiliar o planejamento de operações especiais e investigativas de prevenção e repressão; propor mecanismos de combate à entrada de produtos e sugerir fiscalizações específicas; além de acompanhar a execução de atividades de prevenção e de repressão (art. 3º).

O exame do Relatório Anual de atividades do CNCP de 2019, “CNCP em números e ações”[3] (período dirigido pelo Secretário Luciano Timm), comprova que o órgão, realmente: (i) cuidou do tema sob vários ângulos (aperfeiçoamento legislativo, incentivo à economia formal, promoção e apoio a atividades educacionais e incentivo a operações fiscalizatórias); (ii) exerceu papel integrador entre agências governamentais e setor privado; (iii) fomentou políticas públicas; (iv) foi ativo no combate ao crime organizado, inclusive cooperando com a fiscalização e forças policiais; (v) consolidou-se como fórum de debates, ideias e de interlocução; e (vi) transformou-se em referência nacional e internacional.

Associação civil sem fins lucrativos, criada em 2006, o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), congrega 30 setores econômicos, que uniram suas forças na luta versus contrabando, descaminho, falsificação, pirataria, sonegação fiscal, subfaturamento e respectivas práticas comerciais ilícitas. Seu propósito é fazer com que sociedade, setor privado e Estado unam seus esforços nesse embate. Encontram-se representadas no FNCP empresas, entidades setoriais empresariais e sindicatos. É dirigido pelo Dr. Edson Luiz Vismona.

Levantamento feito pelo FNCP[4] aponta que, somente em 2019, o Brasil teve prejuízos bilionários com os ilícitos em questão.

O FNCP, desde 2014, vem estimando as perdas de setores industriais, bem como os impostos que deixaram de ser recolhidos, devido ao mercado ilegal; tendo registrado o seguinte: (i) a perda, em 2019[5], foi de R$ 291,4 bilhões de reais; o crescimento das perdas é maior que o aumento do PIB do Brasil; (iii) enquanto, em 2019, o PIB expandiu 1,1%, as perdas em função da ilegalidade são crescentes, tendo sido calculadas em, ao menos,7.85%, nesse mesmo ano.

Tabela 1. Mercado Ilegal 2019. Perdas de 15 setores + estima de evasão fiscal:

Setor

Mercado ilegal (em Bilhões de reais)

Vestuário (*)

58,4

Higiene, perfumaria e cosméticos

25

Combustíveis

23

Bebidas Alcoólicas (***)

17,6

Cigarros

15,9

Defensivos agrícolas

11,2

Óculos

10,1

TV por assinatura

9,0

Eletroeletrônico

7,5

Software

7,5

Celulares (**)

5,0

Audiovisual (Filmes)

4,0

Material Esportivo

2,7

Perfumes Importados

2,0

Brinquedos

0,7

 

 

Perda de 15 setores

199,6

Perda estimada com sonegação (46%)

91,8

TOTAL PERDAS SETORIAIS + SONEGAÇÃO

291,4

(*) Dados apresentados em 2018 e sem nova atualização

(**) Fonte: celulares IDC (Internacional Data Corporation)

(***) Fonte: Euromonitor

Fonte: FNCP, Prejuízos do Brasil. Mercado Ilegal 2019, publicada em março de 2020.

É ilustrativo passar rápida vista de olhos nos dois setores mais afetados no Brasil pelo mercado ilegal. O maior deles é o de cigarros, que não cessa de crescer nos últimos 6 anos. Esse aumento deve-se aos cigarros produzidos nacionalmente sem as licenças exigidas, e, em especial aos trazidos ilegalmente de outros países, mormente do Paraguai. Em 2018 e 2019, o contrabando fez a indústria de tabaco perder, respectivamente, R$ 14,4 e R$ 15,9 bilhões, tendo alcançado 57% dos cigarros comercializados, ou seja, 63,4 bilhões de cigarros. Os fabricantes legais de cigarros empregam 25,9 mil pessoas. Se a ilegalidade fosse extirpada, essa indústria poderia empregar mais 27 mil pessoas. Relativamente aos combustíveis, os roubos e desvios nos dutos e as perdas devidas às fraudes, chegou ao montante de R$ 23 bilhões, no ano de 2019 (vide tabela 1)[4].

Obviamente, a imensidão das fronteiras e a situação geopolítica e econômica do Brasil dificulta o combate ao mercado ilegal; combate esse que começou a ser visível, na última década do século passado. Como se pode depreender do exposto anteriormente, muito embora o arsenal de medidas venha-se intensificando desde então, esse mal continua crescendo exponencialmente. Tal significa que, além do acréscimo de esforço, tanto nas ações já executadas, quanto na coordenação entre elas; será necessário agregar outras. Prisma que merece ser explorado em relação ao mercado ilegal é sua faceta concorrencial.

Há ilícitos em si não originalmente concorrenciais, mas que podem gerar significativos efeitos competitivos. Estudos já demonstraram[6] que a evasão fiscal praticada, intencionalmente, por contribuinte, poderia ser considerada também infração à ordem econômica, desde que, cumulativamente: (i) tal prática fosse repetitiva; (ii) ocorresse em mercado de alta tributação e baixa margem de lucro; (iii) houvesse significativo aumento da participação da empresa em mercado relevante analisado; (iv) existisse correlação entre a maior participação de mercado e a conduta evasiva; e (v) estivesse presente dano concorrencial efetivo [7].

Os passos que foram seguidos e que vem conduzindo o ilícito tributário, em determinadas circunstâncias bem estabelecidas, a adquirir também a qualidade de ilícito antitruste, deve servir de balizamento para a estrada a ser trilhada pelo comércio ilegal. Em suma, o caminho seria o seguinte: (i) inicialmente far-se-ia pesquisa multidisciplinar percuciente, dentro dos melhores ditames éticos e científicos; (ii) seguida de revisão, em seminário fechado, por parte de especialistas, acadêmicos e profissionais, com vistas à incorporação de críticas e sugestões; (iii) mesa científica aberta para apreciação do resultado e eventual adequação de resultados e recomendações; e (iv) disseminação mais ampla, por meio de publicações etc., visando alcançar objetivos práticos, ademais de contribuir com políticas públicas.

Dentre os inúmeros benefícios do decréscimo do mercado ilegal, trazido pelo acima proposto, estaria a tão urgente ampliação da arrecadação tributária pós pandemia, sem exacerbar os já sofridos contribuintes.


[1] Rodas, João Grandino, “Efeitos do mercado ilegal no Brasil são profundamente deletérios”, Publicado em Revista Eletrônica Conjur, 9 de agosto de 2018. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-out-18/olhar-economico-comercio-digital-acordo-entre-estados-unidos-mexico-canada

[2] O Dec. 9.875/2019 (art. 13) revogou o Dec. 5.244/2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9875.htm

[3] Relatório Anual de atividades do CNCP de 2019. Disponível em https://www.novo.justica.gov.br/news/combate-a-pirataria-avanca-com-acordos-internacionais/relatorio-anual-2019-final_3001.pdf

[4] FNCP – Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade. Brasil perde R$ 291,4 bilhões para o mercado ilegal. Publicado em 24 de março de 2020. Disponível em https://www.etco.org.br/noticias/brasil-perde-r-2914-bilhoes-para-o-mercado-ilegal/

[5] Nesse ano analisaram-se as perdas de 15 setores industriais: vestuário, óculos, cigarro, Tv por assinatura, higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, bebidas alcoólicas, combustíveis, audiovisual, defensivos agrícolas, celulares, perfumes importados, material esportivo, brinquedos, software; além de eletroeletrônicos (PCs, servidores, networking, impressoras/toners/cartuchos de tinta e equipamentos de segurança).

[6] Carvalho, V. M.; Mattiuzo, M.; Prol, F.M.; e Langanke, A, Concorrência e Tributação. 1.ed. São Paulo, Editora CEDES, 2019. Pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Direito Econômico e Social – CEDES, de autoria dos pesquisadores Vinícius Marques de Carvalho, Marcela Mattiuzzo, Flavio Prol e Amanda Langanke. Disponível em https://504eb8ab-4bae-4f11-a612-b96d27078dcc.filesusr.com/ugd/e2107f_670c26b2af354d38ae3e27fb601bfd30.pdf

[7] Rodas, João Grandino, “A pesquisa sobre tributação e concorrência na visão de especialistas”, Revista Eletrônica ConJur, de 18 de abril de 2019. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-18/olhar-economico-pesquisa-tributacao-concorrencia-visao-especialistas

Todos acessados em 23 de abril de 2020.

Autores

  • é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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