Opinião

A flexibilização indevida das garantias processuais e pessoais - Parte 2

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23 de abril de 2020, 16h36

Continuação da parte 1.

Não se pode olvidar que o interrogatório é o momento do acusado de se defender, é a ocasião em que o juiz mantém contato pessoal e direto com o réu, sendo possível ao magistrado tomar conhecimento da personalidade do acusado e dos motivos e circunstâncias do crime.

Dessa maneira, considerando que o interrogatório é o ato de maior relevância na ação penal, uma vez que o acusado da prática do delito expõe ao julgador a sua visão dos fatos, não se pode legitimar a utilização indiscriminada de vídeo chamadas por meio de Whatsapp, Skype e Zoom, pois estão longe de serem comparados com a efetividade da videoconferência já instituída e praticada.

Uma possível oitiva ou interrogatório em época de pandemia por meio do Whatsapp, Skype e Zoom, onde a testemunha e/ou o réu estarão em suas respectivas residências, prestarão declarações sobre os fatos sem a presença física de um defensor para instruí-los, em razão do isolamento social, o que por si só já fere uma garantia pessoal do acusado.

Ainda, em determinados casos há a possibilidade de nem todos os envolvidos possuírem acesso à conexão de internet apta a garantir qualidade de som e imagem, em determinadas situações a parte pode apresentar, inclusive, dificuldades em manusear os aplicativos. 

Nos casos que tramitam sob segredo de justiça, não se tem a garantia de que as informações captadas pelos aplicativos não serão compartilhadas ilegalmente ou até mesmo acessadas ilicitamente por meio de hackers. Considerando a recente polêmica envolvendo o aplicativo Zoom sobre a possibilidade de invasão de chamada após modificar alguns números de uma URL padrão.

Outrossim, levando-se em consideração a hipótese de que a testemunha ou réu estará em sua própria residência realizando o ato, as autoridades policial ou judiciária poderão estar adentrando em seus domicílios, em violação clara ao direito de intimidade.

Até que ponto não serão reconhecidas nulidades em decorrência do uso discricionário pelas autoridades de vídeo chamadas realizadas por meio do Whatsapp, Skype e Zoom, por suposta ausência de demonstração de prejuízo, conforme dispõe o artigo 563, do Código de Processo Penal, tese amplamente utilizada pelos Tribunais Superiores?

Além do mais, não se pode olvidar que o distanciamento entre os atores jurídicos (especialmente os juízes e representantes do Ministério Público) e o acusado sem dúvida alguma poderá acarretar em sua insensibilização e desumanização, sendo estes, inclusive, os fundamentos para a implantação das audiências de custódia.

Este cenário totalmente informal sem dúvida alguma poderá ser utilizado em desfavor do réu ao longo do processo, seja por não ter um advogado presente no ato, seja pela impossibilidade de confronto entre réu e testemunhas, bem como da comunicação privada entre ele e seu defensor.

Ou seja, em decorrência da ausência de lei acerca do tema, estes questionamentos acabarão sendo definidos pelo juízes e/ou autoridades policiais, que serão travestidos da figura de legisladores, podendo acarretar em reflexos negativos na validade da prova em si.

E não só isso, essa desburocratização desencadeada pelo anseio de celeridade processual poderá ensejar na flexibilização das garantias processuais e pessoais do acusado, de forma que a necessidade de prestação jurisdicional por si só não garante a qualidade da justiça e o devido processo legal.

É cediço sobre a necessidade de se aceitar as evoluções tecnológicas e as utilizar quando pertinente, porém, tal aplicação não pode representar a mitigação das garantias processuais e pessoais, uma vez que estas acabam por serem vistas como entraves à eficiência almejada.

Não sem razão, Morais e Marcellino (2013) criticam essa ideia de modo bastante incisivo, asseverando que a velocidade insensibiliza o Judiciário e subtrai dos jurisdicionados o que eles efetivamente buscam na jurisdição: garantias fundamentais, inclusive processuais.

Isto porque, os atos processuais devem ser realizados com segurança jurídica, o que só pode ocorrer com estrita observância do princípio da legalidade e do devido processo legal.

Com efeito, o devido processo legal, como expressão maior das garantias processuais fundamentais, é a garantia de que o cidadão ao requerer a entrega da prestação jurisdicional, seja protegido por um processo justo.

Desse modo, não se pode permitir que cada autoridade policial e/ou judiciária atue de forma discricionária acerca do procedimento adotado para a realização de audiência, interrogatório ou oitiva, devendo-se garantir a isonomia para todos que estão sujeitos ao processo, de forma que se faz necessário a existência de normas seguras para assegurar não somente a aplicação de direitos já estabelecidos, como também conceder segurança jurídica.

Como forma de exemplificar a afirmação de que cada autoridade poderá proceder de acordo com seu entendimento pessoal acerca do procedimento para a realização de audiências, tem-se a Portaria Conjunta nº 1/2020 — PRESI/GABPRES, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e das Seções Judiciárias da Justiça Federal de São Paulo e de Mato Grosso do Sul.

Pela redação do tópico “e” da mencionada portaria, é facultado aos magistrados a realização de audiências, inclusive de custódia de presos, por videoconferência, porém, não há qualquer delimitação da forma como se procederá com tal medida[1]. Isto porque, pelo entendimento amplo sobre videoconferência, tal ato poderá ser realizado, inclusive, mediante a utilização dos aplicativos Whatsapp, Zoom e Skype.

Nesse contexto, não se pode relativizar as garantias processuais da legalidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, contato físico entre réu e julgador, direito do acusado, preso ou não, de comparecer a todos os atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, para garantir o uso inadequado da tecnologia para desburocratizar a justiça.

Não se pode negligenciar os efeitos que a utilização destes dispositivos pode acarretar no processo judicial, especialmente, nas garantias que o legislador pretendeu tutelar, trazendo sempre como pressuposto que, no processo criminal, o protagonista é o réu.

Sob esta ótica, devem ser resguardados seus direitos, sob pena de violação das garantias asseguradas ao indivíduo, acarretando em eventuais nulidades pelo descumprimento. Dessa maneira, para que seja possível eventual utilização dos aplicativos de vídeo chamada, deve haver uma mudança legislativa por meio de criação de lei ou até mesmo recomendação do Conselho Nacional de Justiça para a unificação dos procedimentos.

Isto porque, não é viável que cada magistrado tenha um procedimento diferente, não dá para contar com o voluntarismo dos juízes, desembargadores e tribunais.

Em um momento ímpar como este em que estamos vivendo, e considerando a ausência de lei que discorra sobre o tema, cabe ao Poder Judiciário em geral e aos juízes e autoridades policiais em especial lidar com maior cautela e discernimento, para que seus atos não causem crises colaterais em meio à pandemia.

Mais do que nunca é necessário recolher comportamentos ativistas, devendo-se garantir a aplicação fiel do direito em suas decisões.

Qualquer modo de agir que arrisque a aplicação das garantias processuais representará perigo superior ao que estamos enfrentando, e que ninguém — vítimas, testemunhas e réus — sejam privados de suas garantias processuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FILHO. Antônio Carvalho, SOUSA. Diego Crevelin de e PEREIRA. Mateus Costa. Bacenjud, coronavírus e as garantias processuais. Conjur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-08/opiniao-bacenjud-coronavirus-garantias-processuais>. Acesso em: 17.04.2020.

2. ABBOUD. Gabriel Coimbra Rodrigues. A execução antecipada da pena e a flexibilidade das garantias no discurso punitivo. Justificando, 2018. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/06/29/a-execucao-antecipada-da-pena-e-a-flexibilidade-das-garantias-no-discurso-punitivo/>. Acesso em: 17.04.2020.

3. GERMANO, Felipe. Bombou na quarentena: por que o Zoom é um desastre de privacidade para você. UOL, 2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/ 02/bombou-na-quarentena-por-que-o-zoom-e-um-desastre-de-privacidade-para-voce.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 17.04.2020.

4. COVID-19: CNJ emite recomendação sobre sistema penal e socioeducativo. CNJ, 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/covid-19-cnj-emite-recomendacao-sobre-sistema-penal-e-socioeducativo/>. Acesso em: 17.04.2020.

5. ROSA, Alexandre Morais da; JUNIOR, Julio Cesar Marcellino. O processo eficiente na lógica econômica: desenvolvimento, aceleração e direitos fundamentais. Coleção Osvaldo Ferreira de Melo, Univali-Fapesc, 2012, p. 213.


[1] e) facultar aos magistrados a realização de audiências, inclusive de custódia de presos, por videoconferência, se entenderem razoável, bem como a limitação da presença às pessoas indispensáveis aos atos processuais;

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