Opinião

Eternas desilusões: o MPF e a soberania do Tribunal do Júri

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Raul Mangabeira

    é graduando em Direito pela Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

23 de abril de 2020, 13h17

"Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais."
 [1].

O Supremo Tribunal Federal deve começar a julgar em breve o Recurso Extraordinário (RE) n.º 1.235.340, cujo objeto diz respeito à possibilidade de o veredicto do Tribunal do Júri autorizar a execução imediata de pena imposta pelo Conselho de Sentença [2]. Em outubro do ano passado, o plenário virtual, por unanimidade, reconheceu a repercussão geral da questão constitucional suscitada [3].

O Ministério Público Federal (MPF), agora, apresenta memoriais [4], alegando, em síntese, a constitucionalidade desse imediato cumprimento de pena, que se respaldaria no inciso XXXVIII, "d" e "c", do artigo 5° da Constituição Federal (CF), alíneas que preveem, respectivamente, a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida, bem como a soberania de seus veredictos.

Ao longo da sua exposição, a PGR colaciona gráfico do Atlas da Violência de 2019, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública [5], por meio do qual apresenta dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, a indicar que em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil, o que equivaleria a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada cem mil habitantes, representando, assim, o maior nível histórico de letalidade violenta internacional.

Argumenta, ainda, que "o sistema de persecução penal brasileiro revela-se incapaz de dar a devida resposta no que concerne à capacidade de esclarecimento dos crimes e à efetividade da ação investigativa" [6].

Finaliza apontando que "impossibilitar, pois, o imediato cumprimento de pena aplicada pelo Tribunal do Júri, além da lesão ao princípio da soberania dos seus veredictos, resultaria em tornar ainda mais ineficaz a persecução penal, contribuindo para a perpetuação de um sentimento de impunidade e descrédito por parte da sociedade" [7].

De fato, a questão é nítida como parece. A PGR apresenta seus memoriais com base nas possíveis consequências que a inconstitucionalidade do imediato cumprimento da pena implicaria. Em suma, o receio da PGR diz respeito à eventual (in)eficácia da persecução penal e a eventual sensação de descrédito por parte da sociedade — uma vez mais, quer-se que a dogmática fique à mercê de utilitarismo e eficientismo práticos.

O presente artigo pretende demonstrar, portanto, a incongruência lógica, primeiro, dos insubsistentes fundamentos jurídicos invocados para legitimar a imediata segregação diante de uma decisão condenatória do Tribunal do Júri, trazendo ao lume como o invocado inciso do artigo 5º da Constituição da República, nas alíneas apontadas, nem de relance sugere essa hipótese. Por segundo, pretende-se demonstrar como a apresentação de dados estatísticos sobre o número de arquivamentos de inquéritos — um indício da inefetividade das investigações policiais, certamente por culpa da fragmentação das condições de trabalho que esses bravos profissionais enfrentam no dia a dia — representa um argumento de inegável cunho eficientista e de, data venia, franciscana pobreza dogmática.

O primeiro equivocado fundamento utilizado pelo MPF. A 1ª regra do jogo [8]
O texto do inciso XXXVIII, "c", apontado pela PGR como fundamento para a segregação imediata, apenas enuncia que a decisão do tribunal do júri representa um veredicto soberano. Repetitivo, pero necessário: "a decisão do tribunal do júri representa um veredicto soberano". O significado literal desse período simples revela a sua exclusiva função de determinar a soberania do veredicto do júri.

Em momento algum, na construção sintática do inciso constitucional, há sequer menção ao fato de que uma decisão soberana precisa ser cumprida antes do trânsito em julgado. A compreensão extensiva das consequências do caráter soberano da decisão, no sentido de que esta significaria a necessidade de, tão logo proferida, produzir seus efeitos, é nada mais do que uma hermenêutica elástica e impossível.

Soberano, com efeito, não quer dizer irrecorrível.

Na prática, busca-se, a partir da leitura açodada do texto constitucional, extrair consequências não constitucionalmente previstas, a entregar ares de legitimidade a uma pretensão (no mais das vezes) exclusivamente acusatória.

Por soberania, em verdade, quer a Constituição traduzir que o mérito do caso penal [9] não poderá ser modificado por uma decisão emanada de órgão distinto do Tribunal do Júri. Trata-se, portanto, de intangibilidade recursal sobre o mérito da decisão do Conselho de Sentença. O que se decide sobre o fato, no júri, fica, em princípio, no júri.

O segundo equivocado fundamento utilizado pelo MPF. A 2ª regra do jogo
O outro fundamento invocado pela PGR é o XXXVIII, alínea "d", também contido no artigo 5º da Constituição da República. Trata-se da previsão sobre a competência de julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Texto, portanto, que enuncia exclusivamente uma regra de competência processual.

Ao enunciar que a regra procedimental é a de que a competência para julgar crimes dolosos contra a vida pertence ao Tribunal do Júri, a Constituição enuncia tão apenas aquilo que pretende enunciar: uma regra de competência. Ponto. Fim. Qualquer interpretação além da que salta aos olhos é tentativa de conferir um alcance não previsto pelo texto constitucional.

Logo, não é decorrência lógica de uma regra de competência o regime de aplicação da pena. Como enuncia um famoso axioma da lógica popular [10]: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou, melhor colocando, uma coisa é regra de competência e jurisdição e outra coisa é violação à regra (e não a princípio) [11] constitucional de presunção de inocência.

A presunção de inocência não é um princípio. A 3ª regra do jogo
Virgílio Afonso da Silva, imprescindível sobre o tema, aponta, com fundamento em Robert Alexy, que os princípios são normas que estabelecem que algo deve ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas presentes. São, por isso, chamados mandamentos de otimização [12].

A presunção de inocência, pois, não é uma norma-princípio. Não é algo que deve ser realizado na maior medida do possível. Trata-se de uma regra. Por consequência, todos, em qualquer cenário, em qualquer processo, serão presumivelmente inocentes. Como regra, não admite flexibilização: ou se aplica ou não se aplica.

Como bem colocado na indispensável leitura do parecer confeccionado pelo IBCCRIM, "se, na forma, a presunção de inocência só pode ser tida como regra, então de seu conteúdo decorre logicamente a vedação da antecipação do início da pena para antes do marco do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sem maiores dificuldades de compreensão" [13].

Dessa maneira, indicar que o trânsito em julgado será o marco inicial do cumprimento da pena não é fazer uma recomendação principiológica, é enunciar uma regra do jogo. Regra que coexiste harmoniosamente com os dois fundamentos invocados pela PGR. Ou seja: a prisão como ultima ratio não contradiz a competência do júri, tampouco a soberania de seus veredictos.

A possibilidade de modificação do decreto condenatório, diante de perspectivas recursais surgidas a partir do pronunciamento do júri, representa sempre um vislumbre de liberdade. E, sendo a liberdade uma regra derivada da presunção de inocência, não há espaços para que esta seja flexibilizada, sobretudo ao argumento de que, com isso, imperaria um sentimento de "descrédito por parte da sociedade".

As consequências pretendidas pela Procuradoria-Geral da República
Ainda em seus memoriais, a Procuradoria-Geral da República sustenta que a inconstitucionalidade da imediata segregação após a decisão do Tribunal do Júri "resultaria em tornar ainda mais ineficaz a persecução penal, contribuindo para a perpetuação de um sentimento de impunidade e descrédito por parte da sociedade" [14].

De estranhar que um dos motivos alegados pelo órgão ministerial seja o receio de que a sociedade tenha um sentimento de descrédito em relação ao Judiciário. Um descrédito que decorreria a partir do momento em que o judiciário passasse a garantir direitos individuais básicos, a exemplo do marco inicial da execução da pena apenas a partir do trânsito em julgado. Descrédito, portanto, advindo de uma ideia de liberdade. A pergunta que precisa ser feita é: de qual sociedade o Ministério Público está falando? É daquela que defende a pena de morte? [15]

Se o argumento da ineficiência da persecução penal por si só não merece qualquer crédito, já que isso se aprimora por meio de investimentos em inteligência e por melhores condições técnicas de trabalho aos profissionais de polícia (tão sobrecarregados no dia a dia da prática investigatória), o argumento sobre o receio de que a sociedade possa adquirir um sentimento de descrédito tampouco merece amparo.

A merecer, admitir-se-ia a hipótese de que a sociedade poderia emparedar o Judiciário, e isso, acredita-se, jamais será possível em um Poder Judiciário compromissado com os direitos fundamentais. Frise-se, por necessidade em tempos de crise, que o compromisso da Corte Suprema é com os direitos fundamentais, e não com eventuais sentimentos de desprezo por parte da opinião pública. Esta última hipótese não representa, em essência, um argumento dogmático, sendo claro exemplo de eficientismo.

O descontentamento faz parte do jogo, e, com algumas adaptações, a antológica colocação do necessário Sobral Pinto poderia facilmente ter seu objeto estendido, a fim de dizer que a carreira jurídica, qualquer que seja, não é uma profissão para covardes.

Conclusão
As ideias aqui apresentadas demonstram a flagrante impossibilidade do imediato cumprimento de pena a partir da decisão condenatória do Tribunal do Júri. Essa impossibilidade se revela a partir dos argumentos trazidos pela própria PGR, que, quando interpretados à lógica dos direitos fundamentais, apresenta a verdadeira essência das regras do processo penal.

As três regras são as seguintes: 1) a soberania da decisão do júri; 2) a competência do Tribunal do Júri; e 3) a presunção de inocência.

Como regras, aplicam-se sem anular umas às outras, já que entre elas não há qualquer contradição ou antagonismo, de maneira que a verdadeira dogmática as prestigia simultaneamente, garantindo, a um só tempo, a soberania do júri, a sua competência e a regra da presunção de inocência.

Saliente-se, ainda, que as medidas cautelares pessoais estão em pleno vigor, malgrado não devam ser desvirtuadas e/ou vulgarizadas. Eventual necessidade de restringir a liberdade pessoal do réu acusado de homicídio continua sendo possível, desde que seja decretada comprovadamente como garantia da ordem pública ou da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado [16]. O descabimento do cumprimento antecipado da pena em nada se relaciona com a (im)possibilidade de prisão preventiva.

Por fim, deixa-se registrada a flagrante inconstitucionalidade da recente sistemática de cumprimento de pena implementada pela Lei 13.964/2019, a determinar a imediata execução provisória quando houver condenação superior a 15 anos.

Como colocado por Welzel, em conferência pronunciada em 15  de outubro de 1971, na Universidade Nacional de Córdoba, a dogmática tem plenas condições de neutralizar o campo ideologicamente muito débil do direito e principalmente do direito penal [17]. Lembrando Gimbernat Ordeig, aponta que a função da dogmática é "pôr limites e construir conceitos, possibilitando, assim, uma aplicação segura e calculável do direito penal, subtraindo-lhe a irracionalidade, o arbítrio e a improvisação" [18].

Essa constante necessidade do Estado de procurar soluções rápidas, práticas, improvisadas e irracionais deve, portanto, ser completamente desprezada (e denunciada), pois a sensação de, assim, estar-se combatendo o crime, é falsa. Como diria Drummond (com o perdão do trocadilho), desiludidos não deveriam seguir iludidos, sem lógica, sem razão e sem coerência. Ao menos, não em um Democrático Estado de Direito.

 


[1]     Necrológio dos desiludidos do amor, poema de Carlos Drummond de Andrade, in Brejos da Alma.

[2]     Veja-se a pauta de julgamento divulgada no DJ2 n.º 22/2020.

[3]     A decisão é de 25/10/2019.

[5]     Disponível em <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/>, Acesso em 16 de abril de 2020.

[6]     Cf. fl. 7 dos Memoriais.

[7]     O original não contém os grifos.

[8] Sobre a teoria dos jogos aplicada ao processo penal, veja-se ROSA, Alexandre Morais da. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal, 2. ed. Santa Catarina: Empório do Direito, 2015.

[9]     O conteúdo do processo penal, convém lembrar, é o caso penal. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. 3ª Tiragem. Curitiba: Juruá, 1998, p. 152.

[10]   Expressão utilizada por Tavares Louro, licenciado em Línguas pela Faculdade de Letras de Lisboa.

[11]   A presunção de inocência compreendida como regra e não como princípio é justamente a posição adotada no brilhante parecer apresentado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. A leitura é imprescindível e o estudo  desenvolve, de maneira muito mais aprofundada, com diversas referências, os argumentos aqui lançados. Subscrevem o parecer Maurício Dieter, Débora Nachmanowicz, Pollyana Soares e June Cirino dos Santos. Para tanto, confira, no STF, a petição 22786, de 16 de Abril de 2020, anexada nos autos do RE n.º 1.235.340.

[12]   SILVA, Virgílio Afonso. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, v. 1, 2003, p. 609.

[13]   Veja DIETER, Maurício; NACHMANOWICZ, Débora; SOARES, Pollyana; et al. Parecer do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais no Recurso Extraordinário n.º 1.235.340. Pet. 22786, p. 10.

[14]   Os grifos são nossos.

[15]   Veja-se, sobre o apoio à pena de morte, pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha, de 2018. De acordo com seus resultados, 57% da população concorda com a pena capital. Veja em <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2018/01/1948797-apoio-a-pena-de-morte-no-brasil-e-a-mais-alta-desde-1991.shtml>, Acesso em 16 de Abril de 2020.

[16]   A constitucionalidade, inclusive, de alguns desses critérios, é duvidosa, mas este é um ponto para futuro desenvolvimento.

[17]   WELZEL, Hans. A dogmática no direito penal. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, 13/14, p. 7-12., jan./jun. 1974, p. 9.

[18]   Idem.

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