Direito Civil Atual

Do PL 1.179/2020 ao Código Civil: um caminho para a revisão judicial dos contratos

Autor

  • Thalles Ricardo Alciati Valim

    é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e em Direito Contratual pela Université de Lyon II; professor de Teoria Geral do Direito Civil e das Obrigações junto à Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

23 de abril de 2020, 8h19

Os efeitos devastadores e imprevisíveis da pandemia atual, na saúde e na economia, acabaram repercutindo no ordenamento jurídico, restando-lhe responder às necessidades da sociedade durante o período emergencial.

Não é de hoje que acontecimentos extraordinários e imprevisíveis causam perturbações nos sistemas jurídicos. Em coluna anterior, lembrou-se que o surto de peste bubônica ocasionado no século VI d.C. levou o Imperador Justiniano a editar uma série de atos normativos destinados a combater os efeitos econômicos da crise1.

A Primeira Guerra Mundial, por sua vez, foi o pano de fundo para a edição, em França, da célebre Loi Failliot, de 1918, permitindo a resolução de contratos comerciais celebrados antes da eclosão do conflito, em 1914.

Inspirados pela Loi Failliot, um grupo de juristas e magistrados apresentou, por intermédio do senador Antonio Anastasia, o PL 1.179/2020, com o objetivo de implementar um “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado” (RJET).

Se aprovado2, o PL 1;179/2020 consistirá em lei transitória, com vigência apenas durante o estado de calamidade pública causado pela pandemia. Diversas matérias de Direito Privado são nele tratadas: (i) a prescrição e a decadência; (ii) as pessoas jurídicas de Direito Privado; (iii) a resilição, resolução e revisão dos contratos; (iv) as relações de consumo; (v) as locações de imóveis urbanos; (vi) a usucapião; (vii) os condomínios edilícios; (viii) o regime societário; (ix) o regime concorrencial; e (x) o Direito de Família e Sucessões.

A despeito da amplitude das matérias que foram objeto de regulação no PL 1.179/2020, é preciso cautela. Uma de suas grandes virtudes foi tratar apenas dos aspectos do Direito Privado que demandavam adaptação à luz do momento turbulento pelo qual passamos.

Com pouco mais de vinte artigos, não é possível inferir que o referido projeto de lei pretenda suspender a eficácia do Código Civil e das leis especiais que compõem o sistema de Direito Privado. Como não foi, igualmente, a intenção do legislador francês ao editar a Loi Failliot no começo do século passado.

O PL 1.179/2020 consiste em louvável e necessário instrumento de combate aos reflexos da pandemia no campo jurídico, mas que deverá ser interpretado e aplicado em conjunto com todo o arcabouço já existente e burilado no decorrer de mais de dois milênios.

Tomemos, a título de exemplo, o Capítulo IV do projeto de lei ora em comento e que trata da revisão e da resolução judiciais por alteração das circunstâncias.

O art. 6° proíbe a retroatividade dessas medidas de extinção ou modificação contratuais, incluindo a possibilidade de resolução por inadimplemento decorrente de caso fortuito e força maior. Não houve, contudo, afastamento das regras contidas no Código Civil. Mas, apenas, delimitação quanto à sua aplicação.

O art. 7°, caput, reafirma aquilo que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já vinha há tempos reconhecendo, proporcionando estabilidade3: o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário não são fatos imprevisíveis aptos a ensejar a revisão ou resolução contratuais nos termos dos arts. 478, 479 e 480, do Código Civil. Novamente, houve a preocupação, no projeto, de se impor limites claros à aplicação dessas regras sem que, com isso, houvesse o afastamento completo das medidas por elas previstas.

Fica claro, portanto, da leitura do projeto, que há, nele, um silêncio eloquente, indicando que o aplicador do Direito — em particular, o juiz — deve buscar soluções na legislação em vigor, tanto quanto ela seja compatível com a realidade atual.

Nesse sentido, muito tem se discutido a respeito da revisão e da resolução por alteração das circunstâncias. A maioria dos doutrinadores salienta a necessidade de se utilizar com cautela esses remédios contratuais. Muitos apontam que a melhor solução não está na judicialização do conflito, mas na negociação entre as partes.

Caberia, então, ao PL 1.179/2020 impor um dever de negociar? Essa seria uma opção válida para o legislador, mas desnecessária. A imposição de uma etapa prévia de renegociação às partes acabaria por postergar uma inevitável judicialização. É o que ocorreu no ordenamento jurídico francês, que, reformado em 2016, introduziu a revisão dos contratos mediante um procedimento complexo que se inicia com uma tentativa de negociação, mas acaba desaguando na revisão ou resolução judiciais, a critério do julgador4.

Parece-nos que o regime previsto pelo Código Civil brasileiro, inspirado no ordenamento italiano5, apresenta uma capacidade muito maior de estimular a renegociação dos contratos.

A dinâmica instituída pelos arts. 478 e 479 do Código Civil é inteligente6. De um lado, o devedor tem o poder extintivo de resolver o contrato. De outro, o credor tem em suas mãos o poder modificativo que, se exercido, impede a resolução. De modo que, ao credor, não interessa a resolução do contrato que ainda lhe traz vantagens, sendo preferível a adequação de seu conteúdo. O devedor, por sua vez, se não tivesse como arma o poder de pleitear a resolução, ficaria sob o jugo do credor. O direito potestativo do credor não é imune a controle judicial, vez que a oferta de modificação deve ser “equitativa”.

É possível concluir, portanto, que o legislador brasileiro quis originalmente estimular a negociação, ainda que por via indireta.

Para se coibirem os excessos que podem acompanhar esse período excepcional, é preciso, portanto, além da aprovação do PL 1.179/2020, que o regime de revisão dos contratos previsto pelo Código Civil seja aplicado apenas excepcionalmente e quando necessário. O sistema originalmente previsto pelo legislador em 2002 certamente auxiliará as partes a renegociarem seus contratos evitando uma desnecessária judicialização.

Em reforço a esse entendimento, poderá vir em auxílio, ainda, a recém aprovada “Lei da Liberdade Econômica” (Lei 13.874/2019). Este diploma proclamou o princípio da intervenção mínima nos contratos e a excepcionalidade da revisão contratual (CC, art. 421, parágrafo único). Ademais, segundo o art. 421-A, III, quando a revisão contratual ocorrer, deverá ser limitada, de modo a “garantir ao máximo a conservação do conteúdo contratual, originalmente pactuado pelos contraentes”7.

Some-se a isto o fato de o sistema de revisão judicial ser composto pelo que Otavio Luiz Rodrigues Jr. chamou de um “modelo por etapas”, que exige: (i) o afastamento de institutos próximos, mas distintos, tais como a lesão e a nulidade das cláusulas abusivas; e (ii) a qualificação da relação jurídica subjacente (se de consumo, ou não), norteando-se por uma noção central: “a atuação do juiz na economia contratual não pode ser entendida como obrigatória e sim como algo excepcional. A despeito do discurso amplamente divulgado sobre o enfraquecimento da autonomia privada, ela conserva importantes funções jurídicas, econômicas e sociais. Sua manutenção é útil porque expressa o que as partes desejaram e o que entenderam como justo e adequado a seus interesses”8.

Não podemos, portanto, perder de vista que o caminho para a superação dessa crise começa na aprovação de medidas emergenciais, como as previstas pelo PL 1.179/2020, mas termina no Código Civil. Afinal de contas, as regras ali contidas já viveram maiores contratempos, já adquiriram imunidade a crises e guerras e nos dão segurança precisamente em tempos de incerteza.


1 MORAES, Bernardo Bissoto Queiroz de. Reflexos jurídicos de uma pandemia: um pouco de história. Revista Consultor Jurídico, 7 abr. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-07/direito-civil-atual-reflexos-juridicos-pandemia-historia>. Acesso em: 9 abr. 2020.

2 O PL 1.179/2020 foi aprovado no Senado Federal, com autógrafo encaminhado para revisão à Câmara dos Deputados, mediante o Ofício n° 377, no dia 13 de abril de 2020.

3 RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier; PRADO, Augusto Cézar Lukascheck. A liberdade contratual e a função social do contrato — alteração do art. 421-A do Código Civil: art. 7°. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier (org.). Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 324.

4 Código Civil francês, art. 1195. Si un changement de circonstances imprévisible lors de la conclusion du contrat rend l'exécution excessivement onéreuse pour une partie qui n'avait pas accepté d'en assumer le risque, celle-ci peut demander une renégociation du contrat à son cocontractant. Elle continue à exécuter ses obligations durant la renégociation.

En cas de refus ou d'échec de la renégociation, les parties peuvent convenir de la résolution du contrat, à la date et aux conditions qu'elles déterminent, ou demander d'un commun accord au juge de procéder à son adaptation. A défaut d'accord dans un délai raisonnable, le juge peut, à la demande d'une partie, réviser le contrat ou y mettre fin, à la date et aux conditions qu'il fixe.

5 RODRIGUES JR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 89.

6 Para maiores detalhes, cf. MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Revisão contratual: onerosidade excessiva e modificação contratual equitativa. São Paulo: Almedina, 2020, p. 48-49.

7 RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier; PRADO, Augusto Cézar Lukascheck. A liberdade contratual e a função social do contrato — alteração do art. 421-A do Código Civil: art. 7°. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier (org.). Comentários à Lei da Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 324.

8 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Um “modelo de revisão contratual por etapas” e a jurisprudência contemporânea do Superior tribunal de Justiça. In: LOPEZ, Teresa Ancona; LEMOS, Patricia Faga Iglecias; RODRIGUES JR., Otavio Luiz (coord.). Sociedade de risco e Direito Privado: desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013, p. 513.

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    é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e em Direito Contratual pela Université de Lyon II; professor de Teoria Geral do Direito Civil e das Obrigações junto à Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

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