Opinião

Posicionamentos conflitantes do Cade durante a pandemia

Autores

  • Marlus Santos Alves

    é sócio do escritório Silva Matos Advogados vice-presidente Brasília da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial — Brasil (Camarb) vice-presidente da Comissão de Arbitragem da OAB/DF mestrando em Direito Comercial Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/DF.

  • Luiz Guilherme Ros

    é doutorando em Direito Econômico pela Universidade de Brasília mestre em Direito Constitucional pelo IDP advogado sócio do escritório Silva Matos Advogados consultor do Programa das Nações Unidas perante o Cade no projeto Control of Data Market Power and Potential Competition in Merger Reviews secretário da Comissão de Defesa da Concorrência da OAB-DF e membro da Comissão de Direito Regulatório da OAB-DF.

23 de abril de 2020, 16h49

A Constituição Federal define categoricamente em seu artigo 170 que a Ordem Econômica deverá ser pautada na livre iniciativa. O inciso IV deste artigo prevê, ainda, que um dos princípios basilares é a "livre concorrência". Por outro lado, o inciso V expõe que a "defesa do consumidor" também é um princípio a ser respeitado [1].

Ocorre que a própria Carta Magna, em seu artigo 173, §4º, estabelece que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise ao aumento arbitrário dos lucros [2]. Previsão semelhante é adotada no artigo 36, III, da Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) ao expor que uma das infrações à ordem econômica seria o aumento arbitrário de lucros [3].

Ao mesmo tempo, entretanto, não podemos nos esquecer de que a economia tem uma lei básica, qual seja: a lei da oferta e da demanda. Segundo esta, quanto maior a demanda por um produto, maior será seu preço, ao passo que quanto menor a demanda, menor tenderá a ser seu preço.

Diante da pandemia da Covid-19, em 18 de março de 2020 a Superintendência Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) instaurou o Procedimento Preparatório de Inquérito Administrativo nº 08700.001354/2020-48. Segundo a SG, o procedimento em questão foi instaurado "tendo em vista a situação de elevada demanda por produtos médicos-farmacêuticos em decorrência da necessidade cuidados emergenciais motivados pelo aumento de casos relacionados à Covid-19, empresas do setor de saúde podem estar aumentando os preços e lucros de forma arbitrária e abusiva, sendo necessário, por parte do Cade, zelar para que tais abusos, se efetivamente verificados, sejam punidos com base no artigo 36, I, III e IV, com as penas cominadas nos arts. 37 e 38, todos da Lei nº. 12.259/2011.

Trata-se, portanto, de uma suposta conduta de preço abusivo, que carece da existência de posição dominante das empresas investigadas, sendo tal posição presumida no caso de o agente deter market share superior a 20%, nos termos do art. 36, §2º da Lei nº 12.529/11.

A ideia de abuso da posição dominante é considerada um ilícito pois implica em alguma anormalidade, distinto do processo de competição. Como expõem PEREIRA NETO e CASAGRANDE (2015) [4], "o direito econômico concebeu a figura do abuso de posição dominante para disciplinar situações em que um agente econômico  utiliza seu poder de mercado de forma a distorcer o processo competitivo, exorbitando os limites das liberdades econômicas garantidas constitucionalmente (i.e, liberdade de iniciativa e liberdade da concorrência)".

Ocorre que, como exposto pelo próprio Cade, "o preço ou aumento excessivo por si só não pode ser considerado uma prática lesiva à concorrência; ele o será apenas na medida em que for decorrente de infração, ou se for apto a causar efeito anticompetitivo. A interpretação do Cade converge com a tese doutrinária que distingue entre duas modalidades diferentes de imposição de preços excessivos: I) os preços meramente excessivos, ou 'exploratórios' (exploitative prices), decorrentes do poder de mercado; e II) os preços abusivos ditos 'excludentes' (exclusionary abuse), praticados com o intuito de excluir competidor do mercado (praticado por empresas verticalmente integradas)".

Defende-se a atuação da autoridade antitruste no combate aos preços abusivos excludentes, de modo a propiciar as condições necessárias ao funcionamento do mercado, corrigindo suas eventuais falhas, não lhe cabendo substituir os mecanismos de mercado ou interferir no papel do agente privado no processo de tomada de decisões, entre as quais destaca-se a formação de preços. Isto é, entende-se que a atuação das autoridades antitruste deve se dar sobre o processo competitivo, de forma a garantir que a disputa por fatias de mercado seja uma disputa lícita, e que o eventual poder de mercado dela resultante seja legítimo.

Admitir a competência da autoridade da concorrência para analisar a prática de preços excessivos ou de aumentos arbitrários de lucros por si só significaria atribuir à autoridade a dicção do preço justo, não abusivo. Isso significa supor que tem o administrador conhecimento do funcionamento do mercado, da estrutura de custos da empresa, dos investimentos realizados pelo agente, o que não é razoável, dada a natural assimetria que existe entre o agente econômico e a autoridade antitruste. Ademais, "a simples ordem para baixar o preço não assegura que a concorrência será restabelecida naquele mercado, e cria para a autoridade o dever de supervisionar constantemente o cumprimento de sua decisão" [5].

Ora, o próprio Cade parece ser expresso em afirmar que a sua atuação deve limitar-se aos casos em que os preços abusivos sejam excludentes, isto é tendentes a eliminar um concorrente do mercado. Sua atuação, portanto, não serve para "corrigir falhas de mercado" decorrentes do que se denomina de preços exploratórios. O Cade não atua como regulador de preços, mas, sim, observando se o ambiente competitivo se mantém saudável. Não podemos esquecer que a escolha pelo livre mercado pode importar em aumento de preços em virtude de momentos de elevada procura.

Atuar como tabelador de preços, ou como agente que fixa o máximo que uma empresa pode cobrar, para além de não ser adequado para a realidade da nossa economia, baseada na livre iniciativa e na livre concorrência, não é o aconselhável do ponto de vista econômico, devendo os controles de preço ocorrer, apenas, em situações extremas. Não é por outra razão que o Cade nunca puniu uma conduta anticompetitiva de preço abusivo.

Não se nega que o Estado possa intervir no domínio econômico de forma indireta [6] e atuar no tabelamento de preços. Inúmeros são os exemplos de tabelamento de preços que o Estado pratica. Por exemplo, o mercado de planos de saúde individual/familiar é regulado pela Agência Nacional de Saúde, que indica os percentuais máximos que os reajustes podem ser feitos. Outro exemplo é a Lei 10.742/2003, que define normas para regulação do setor farmacêutico. Por força dessa lei, os preços dos medicamentos são nacionalmente regulados pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).

O permissivo para atuar no controle de preços decorre da própria Constituição Federal, em seu artigo 174 [7], que permite que o Estado exerça, dentro dos limites da lei, a função de regulação do domínio econômico. Ocorre que tais medidas são e devem ser excepcionais. Controlar preço, ou tabelar preços tende a ter impactos futuros negativos, que podem importar em desabastecimento, ausência de inovações no mercado, dentre outros problemas.

O Cade está ciente de que uma atuação no sentido de tabelar preços, ou impor valores máximos, tem o condão de ser prejudicial ao mercado. O Departamento de Estudos Econômicos dessa autoridade, inclusive, elaborou notas técnicas por meio das quais aponta preocupações concorrenciais relacionadas a dois projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. As propostas tratam do congelamento de preços de medicamentos e do estabelecimento de teto de preços para itens essenciais ao combate do coronavírus, durante o período da pandemia.

Nesse cenário de posicionamentos cruzados dentro de uma mesma autoridade, fica a indagação se a Superintendência Geral do Cade atuará no sentido de coibir práticas eventualmente abusivas de empresas atuantes no mercado de saúde ou se estaremos diante de uma tendência da autoridade concorrencial condenar preços abusivos na sua história.

 


[1]  Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;

[2]  Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.(…)
§ 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

[3] Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
III – aumentar arbitrariamente os lucros;

[4] Pereira Neto, Caio Mario da Silva e CASAGRANDE, Paulo Leonardo. Direito Concorrencial, Doutrina Jurisprudência e Legislação, Editora Saraiva (2015), P. 138

[6] Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.122-155.

[7] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Autores

  • é sócio do escritório Silva Matos Advogados, mestrando em Direito das Empresas pela Lisbon Business School e bacharel pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Frequentou especialização em Law Enforcement e Compliance pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É vice-presidente em Brasília da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial — Brasil.

  • é sócio do Escritório Silva Matos Advogados, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É membro da Comissão de Direito Regulatório e da Comissão de Direito de Defesa da Concorrência da OAB-DF. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral e assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e autor de artigos relacionados à área de antitruste.

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