Opinião

O sistema interamericano de direitos humanos e a Covid-19 nas penitenciárias

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22 de abril de 2020, 14h26

A pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil proporcionando diversos desafios nos planos econômico, social, político e jurídico. Especificamente no campo jurídico, houve, de imediato, especial preocupação das autoridades públicas com a questão penitenciária, naturalmente porque os estabelecimentos prisionais são sensíveis às exigências das autoridades sanitárias no enfrentamento do coronavírus, bem como em razão da vulnerabilidade das pessoas custodiadas.

Vale lembrar que o país vive uma crise quanto ao sistema prisional, tanto que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por meio da concessão de medida cautelar, o Estado de Coisas Inconstitucional no âmbito da famigerada ADPF 347/DF, diante da reconhecida incapacidade de o Estado controlar a superlotação carcerária decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas, redundando em violação massiva de direitos fundamentais [1].

Vislumbra-se, inclusive, que a população carcerária se encontra próxima do patamar de 773 mil presos [2] (déficit de quase 70% de vagas), o que, consequentemente, gera preocupação das autoridades públicas diante da dificuldade em se respeitar, naqueles ambientes, diversas obrigações criadas por meio da Lei 13.979/2020, a qual, acertadamente, inseriu medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

O hiperencarceramento impulsiona outros problemas igualmente conhecidos, tais como ambiente insalubre e umidade nas celas, tornando terreno fértil para a propagação de várias doenças (por exemplo: tuberculose, hanseníase, problemas respiratórios, etc.) e, no contexto atual, a principal preocupação está retratada na Covid-19. Diante desse quadro de graves problemas estruturais nos presídios nacionais, a potencial disseminação do coronavírus é obviamente superior ao ambiente externo. A título de exemplo, como forma de traduzir o dado abstrato em números, a cidade de Nova Iorque, atualmente um dos maiores focos da doença do mundo, atenta à fácil propagação do vírus dentro do sistema carcerário (7,7% da população carcerária acometida, enquanto extramuros a fração corresponde a 1,2% na cidade) [3], reduziu em 20% sua população carcerária [4].

Em outras palavras, diante do alarmante cenário que se vislumbra no país, necessitava-se de um plano de ação que evitasse a Covid-19 no sistema prisional, ou, ao menos, que reduzisse os danos de sua incidência.

Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça editou, no dia 17 de março de 2020, a Resolução 62/2020 trazendo uma série de recomendações aos juízes no tocante aos presos provisórios e definitivos, podendo-se destacar entre elas as seguintes: I) orientações compreendendo a fase de conhecimento e execução de atos infracionais nas Varas da Infância e da Juventude; II) reavaliação das prisões provisórias, com prioridade para determinados grupos; III) excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva; IV) concessão de saída antecipada dos regimes fechados e semiaberto, na linha da Súmula Vinculante 56 do Supremo Tribunal Federal; IV) concessão de prisão domiciliar às pessoas presas em regime semiaberto e aberto; e V) colocação em prisão domiciliar de pessoa presa com diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19 [5].

Na sequência, atento à gravidade da pandemia no país, o ministro Marco Aurélio concedeu medida cautelar na ADPF estabelecendo nova recomendação aos juízes de todo o país. Em suma, a decisão compreendeu os seguintes pontos: I) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a 60 anos; II) regime domiciliar para custodiados com enfermidades graves; III) adoção de prisões domiciliares para determinados grupos; progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto. Infelizmente, o posicionamento acima não foi referendado pelo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento principal de que a decisão fugiria do assunto debatido da ADPF, além de conter determinação expressa de que se faça uma espécie de mutirão de todos os indivíduos [6]. Diante disso, outros requerimentos de medida cautelar no bojo da mesma ADPF foram julgados prejudicados pelo relator em razão do entendimento consolidado pelo plenário.

Além disso, editou-se a Portaria Interministerial nº. 07/2020, dispondo sobre medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública no âmbito do sistema prisional. Por sua vez, estipulou-se no referido ato normativo critérios para fins de identificação, isolamento dos casos suspeitos ou confirmados e outras medidas inerentes à administração penitenciária.

Entretanto, as medidas previstas na portaria são aparentemente inexequíveis e insuficientes no cenário de Estado de Coisas Inconstitucional, pois, a título de exemplo, para a prevenção, recomenda-se o uso de máscaras, o isolamento individual e o isolamento por coorte [7]. No entanto, dificilmente seria possível isolar os acometidos ou quem apresenta sintomas porque não há espaço nas celas diante da superlotação. Da mesma forma, se nem mesmo os materiais básicos de saúde, como sabão e água, são fornecidos diariamente, resta difícil imaginar o fornecimento de instrumentos de saúde aos presos e até mesmo aos agentes da administração penitenciária.

A Lei de Execução Penal (artigo 12) impõe à administração penitenciária assistir materialmente o interno, mediante fornecimento de instalações higiênicas. As Regras de Mandela [8] igualmente dispõem que o Estado deverá fornecer água e artigos de higiene necessários à saúde e à limpeza. No entanto, não são raros os casos de racionamento de água e do não fornecimento de itens básicos, tais como sabão e roupas limpas.

Mesmo com a prevalência apenas da recomendação do Conselho Nacional de Justiça, os juízes acataram a orientação e proferiram uma série de decisões [9] que compreendiam a gravidade da pandemia e resguardavam o direito à saúde dos detentos. No entanto, cabe destacar que as decisões foram alvo de críticas por parte de algumas autoridades públicas [10], as quais alertavam para a necessidade de parcimônia no proferimento das decisões, sob pena de se alcançar o caos na segurança pública do país.

Diante disso, cumpre destacar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, atenta à realidade dos países, no dia 10 de abril de 2020 editou a Resolução nº. 01/20 com a definição de padrões e recomendações aos países da Organização dos Estados Americanos (OEA), a fim de assegurar que as medidas de contenção que tenham por fim enfrentar e prevenir os efeitos da pandemia muitas vezes acompanhadas da restrição de direitos fundamentais possam se compatibilizar com o estrito respeito aos direitos humanos.

Por sua vez, no tocante às pessoas privadas de liberdade, a comissão apresentou as seguintes recomendações: I) reavaliação dos casos de prisão preventiva para substituição por medidas alternativas, especialmente nos grupos mais vulneráveis à Covid-19; II) análise dos pedidos de benefícios carcerários e medidas alternativas à pena de prisão, mormente das pessoas em situação de risco no contexto da pandemia, mas levando em conta sempre uma análise exigente a depender do caso concreto e seus peculiaridades; III) adequar as condições de detenção no que tange à alimentação, saúde, saneamento e medidas de isolamento para impedir o contágio intramuros; e IV) estabelecer protocolos para garantia da segurança e ordem nas unidades penitenciárias, com o escopo de evitar atos de violência relacionados à pandemia [11].

A resolução é importante porque demonstra quão acertada foi a recomendação do Conselho Nacional de Justiça, que já antecipava muitas das orientações formuladas pela Comissão Interamericana. Vale dizer, inclusive, que o Brasil havia recebido elogios do órgão internacional pela postura adotada em função da mencionada Resolução nº. 62/2020 [12].

A postura da Comissão não é novidade, pois, em se tratando de violação à saúde das pessoas presas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui precedente específico prolatado no caso Chinchilla Sandoval vs. Guatemala [13], o qual reconheceu a responsabilidade do Estado na proteção à saúde e à vida das pessoas privadas de liberdade.

De qualquer sorte, a postura antecipada pelo Conselho Nacional de Justiça reforça o compromisso do Brasil com organismos internacionais e a proteção dos Direitos Humanos, de modo que o enfrentamento da pandemia envolve uma atuação diligente por parte do Poder Judiciário, examinando-se obviamente caso a caso, a fim de evitar o alastramento da Covid-19 no âmbito do sistema penitenciário.

Portanto, seja pela aplicação da Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça ou pelo respeito à Resolução 01/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, medidas deverão ser adotadas pelos juízes para mitigar os danos eventualmente causados pelo coronavírus no seio do sistema penitenciário, sob pena, inclusive, de eventual responsabilidade do Brasil em função do desrespeito ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.

 


[1] Disponível o acórdão: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665. Acesso em 13 abr.2020.

[4] Disponível em: https://legalaidnyc.org/news/new-york-city-jail-population-drops-20-percent-covid-19/. Acesso em 13 abr. 2020.

[7] N.A.: Isolamento por Coorte é um método no qual o estabelecimento (normalmente hospitalar), diante da impossibilidade de isolamento dos acometidos, define uma área específica (ala) para fazê-lo. Trata-se de um isolamento comunitário. Disponível em: http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/CIEVS/COOrte.pdf. Acesso em 13 abr. 2020.

[9] Presos com liberdade condicionada a fiança devem ser soltos em todo o país, diz STJ. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/stj-manda-soltar-todos-presos-liberdade-condicionada-fianca. Acesso em: 13 abr.2020. STJ concede nova liminar, e doleiro Dario Messer irá para prisão domiciliar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/stj-concede-liminar-dario-messer-ira-prisao-domiciliar. Acesso em: 13 abr.2020. Desembargador do TRF-3 dá HC a preso com base em recomendação sobre coronavírus. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-19/desembargador-hc-preso-base-recomendacao-cnj. Acesso em: 13 abr.2020.

[10] Moro e Judiciário entram em conflito por liberação de presos. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/constanca-rezende/2020/04/05/moro-e-judiciario-entram-em-conflito-por-liberacao-de-presos.htm. Acesso em 13 abr.2020. Saída de presos pelo coronavírus pode gerar crise sem precedentes, diz Fux. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/saida-de-presos-pelo-coronavirus-pode-gerar-crise-sem-precedentes-diz-fux/. Acesso em: 13 abr.2020.

[11] Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2020/073.asp. Acesso em: 13 abr.2020

[12] Em particular, a CIDH saúda a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do Brasil para conter a pandemia e impedir sua propagação nos centros penitenciários, recomendando aos tribunais e juízes que reduzam a população de pessoas privadas de liberdade, adotando medidas alternativas à prisão. Entre as medidas estão a revisão de casos de detenção preventiva, a adoção de prisão domiciliar para idosos e gestantes e a progressão para o regime aberto para aqueles que estavam próximos de receber o benefício legal. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2020/066.asp. Acesso em: 13 abr.2020.

[13] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Chincilla vs. Guatemala, 2016. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_312_esp.pdf. Acesso em 13. abr. 2020.

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