Opinião

MP nº 948/2020 e os efeitos da Covid-19 para o consumidor

Autor

  • Rebeca de Queiroga Falcão

    é advogada colaboradora na Defensoria Pública do Distrito Federal nas áreas de Direito Civil e do Consumidor e pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal (ESMA/DF).

22 de abril de 2020, 10h56

No último dia 8, foi publicada a Medida Provisória 948/2020, que dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, de modo a desobrigar o reembolso, por parte dos fornecedores, dos valores pagos pelos consumidores por serviços não prestados, em razão da pandemia do coronavírus.

Em matéria publicada no sítio eletrônico do Ministério do Turismo, a justificativa para o conjunto de medidas apresenta-se no sentido de "(…) auxiliar os segmentos turísticos e culturais nesse período de crise. O documento faz parte de uma série de ações do MTur para garantir a sobrevivência do setor durante a pandemia" [1].

É preciso ressaltar que se trata de medida absolutamente louvável e bem-vinda, sobretudo pelos prejuízos decorrentes da pandemia do coronavírus aos setores turísticos e culturais. Tendo-se em vista o cenário atípico que a economia global está enfrentando nos últimos meses, é imprescindível a tomada de iniciativas como as apresentadas pela MP 948/2020, a fim de evitar que segmentos de turismo, como muitos outros, degringolem ainda mais.

No entanto, em que pesem as adversidades nas quais esbarram os setores turísticos e culturais no momento, é vital não se olvidar o fato de que, nas relações de consumo, a presunção de vulnerabilidade do consumidor ainda se mantém absoluta. Significa que a adoção de medidas voltadas para resgatar a pujança de um setor da economia não deve se desenvolver, absolutamente, em detrimento da conservação das garantias e dos direitos básicos do consumidor. É plenamente possível e viável a convergência de interesses, tanto de fornecedores quanto dos consumidores em prol do reerguimento da economia.

Pois bem, publicada com o acertado intuito de auxiliar os segmentos turísticos e culturais, a MP 948/2020 elencou regras a serem seguidas para os casos de cancelamentos de serviços, de eventos e de reservas em razão do estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. O artigo 2º da referida medida dispõe que o prestador de serviços ou a sociedade empresária, em caso de cancelamento de serviços, reservas ou eventos, não está obrigado a reembolsar os respectivos valores pagos pelo consumidor. Todavia, condiciona essa permissão legal a três determinações, de obediência não cumulativa.

Em outras palavras, diante do cancelamento de um serviço, para que o fornecedor seja dispensado da obrigatoriedade do reembolso referente ao valor pago pelo consumidor, deve: assegurar alternativamente a remarcação dos serviços; disponibilizar crédito para uso ou abatimento em outras compras disponibilizadas pelas respectivas empresas; ou, por último, formalizar outro acordo com o consumidor, regra esta estabelecida pelo inciso III, do artigo 2º, da MP 948/2020.

O ponto nevrálgico que se discute é precisamente relacionado à possibilidade de formalização de um acordo entre consumidor e fornecedor com o intuito de, conjuntamente, estipular as melhores alternativas de ressarcimento para o serviço não prestado. Ora, adotando-se uma interpretação otimista e até ingênua das relações humanas, poder-se-ia dizer que, a partir do referido inciso, seria possível resolver eventuais impasses entre as partes e, quiçá, evitar uma enxurrada de litígios judiciais nesse sentido.

Ocorre que a redação da referida MP peca ao não estipular, mais especificamente, que "outro acordo a ser formalizado" seria esse e sob quais condições e regramentos poderia ser firmado. Considerando-se as vulnerabilidades técnica e jurídica que acometem o consumidor, saberia ele aferir se eventual acordo firmado com o fornecedor estaria em conformidade com a lei? O acordo, de fato, traria uma solução justa para ambas as partes? E, mais importante, estariam os seus direitos, enquanto consumidor, sendo respeitados?

São essas indagações que, na prática, dificilmente poderiam ser aferidas pelo consumidor com o aprofundamento técnico-jurídico que demandam. As situações que se apresentam no cotidiano envolvem pessoas das mais diversas formações e classes sociais. Não se pode permitir que tamanha subjetividade da expressão "outro acordo a ser formalizado" conceda indevida discricionariedade ao fornecedor quando da estipulação de um acordo sobre o modo como ocorreria o ressarcimento do consumidor pelos serviços cancelados.

Mais uma vez, ressalta-se que a urgência em se recuperarem determinados setores da economia, fortemente abalados pela pandemia do coronavírus, é indiscutivelmente legítima e necessária. No entanto, não se pode fazê-lo em detrimento dos direitos e garantias já conquistados e tão fortemente enraizados na cultura e na jurisprudência consumeristas do Brasil.

Nesse sentido, para que a hipótese do inciso III do artigo 2º da MP 948/2020 assuma o condão de desobrigar o fornecedor do reembolso do valor pago pelos serviços cancelados, urge que se estabeleçam parâmetros mais concretos e específicos a serem observados quando da formalização de um eventual acordo entre o fornecedor e o consumidor.

Mesmo no atual contexto socioeconômico em que se encontram as nações do mundo como um todo, não há espaço para se falar em polarização entre a recuperação da economia e a preservação dos direitos do consumidor. Aliás, é exatamente nesse momento que deve ser assegurada a lisura das relações consumeristas com o maior afinco possível, haja vista tratar-se o consumidor de uma das principais molas propulsoras da economia.

Ademais, faz-se oportuna e essencial a invocação do princípio da harmonia nas relações de consumo, referido no inciso III do artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor, que defende a "harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (artigo 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

É fato que a pandemia causada pelo coronavírus continua a ceifar milhares de vidas e a devastar a economia de nações do mundo inteiro, inclusive as nossas. No entanto, a válida tentativa de recuperarem-se setores fortemente abalados pelos prejuízos sofridos não deve implicar no comprometimento dos direitos e garantias assegurados ao consumidor. A balança precisa manter-se no melhor equilíbrio possível entre a adoção de medidas de urgência e a preservação de valores e princípios, sob pena de se condenar o cenário socioeconômico a um colapso irreversível e de consequências deletérias.

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    é advogada, colaboradora na Defensoria Pública do Distrito Federal nas áreas de Direito Civil e do Consumidor e pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal (ESMA/DF).

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