Opinião

Atentai para a quimera dos precedentes: riscos para o processo penal

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22 de abril de 2020, 17h33

A quimera dos precedentes abocanhará o processo penal. As denúncias contra a “brasileirização” do dito “sistema de precedentes” vêm sendo feitas há décadas, já abordou André Karam[1], tendo as críticas de Lenio Streck alertado sobre os “precedentes à brasileira”, como em sua obra com Georges Abboud, “O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?”[2], que denuncia os equívocos sobre “súmulas”, “precedentes”, “common law” e termos usados à esmo, sem a compreensão do que de fato significam. No Brasil, se quer dizer de modo simples aquilo que é complexo. Daí a standardização do fenômeno do Direito, de drásticas consequências.

Precedente não é um mero julgado “convertido” em verbetes expostos numa ementa. Tão menos a jurisprudência é. Todos estes costumeiros imbróglios epistemológicos, ensinados e difundidos no meio jurídico como se verdadeiros fossem, devem ser expostos com um sinal de alerta, pois figuram entre os erros usuais do senso comum teórico.

E o que dizer da conceituação e diferenciação brasileiras das tradições (e não sistemas) da “common law” e “civil law”? O Brasil idealiza do seu jeito a “common law” – onda do CPC/2015. A “commonlização”[3] pátria é, na verdade, feita às avessas, e o caminho seguido neste sentido é tortuoso e leva ao abismo.

Porque a tradição da common law, na (da) Inglaterra e expansão marítima inglesa, é peculiar pela conquista da Inglaterra pelos normandos, na batalha de Hastings. Com a ascensão de Williame I (1066), uma estratégia de conservação do poder foi brilhantemente construída: o povo poderia preservar os costumes que formam o direito material.

Medida necessária eis que vários povos de costumes distintos viviam no território inglês, formado em 927. A imposição de costumes para povos distintos não seria bem recebida e causaria revoltas, até mesmo porque o novo rei não era um inglês, mas um normando, invasor. Em 1166, a aplicação dos costumes de direito material passou a se dar, dentre outros modos, através de julgamentos pelo corpo de jurados encarregado de decidir os casos com base nos costumes.

O rei produzia as leis de direito processual, que criavam a estrutura (júri) por meio da qual o povo, representado pelo corpo de jurados, decidia em conformidade com os costumes locais. Assim, por um lado o rei assegurou a imposição de alguns interesses próprios; por outro, não foi visto como um tirano, na medida em que possibilitou que cada um dos vários povos preservasse os costumes que precediam à formação da Inglaterra.

Historiando as tradições jurídicas se pode dizer que os precedentes formam, em si mesmos, um sistema consuetudinário de Direito, uma formulação de costumes jurídicos que leva em conta a tradição consuetudinária social do lugar a que pertence. Significa dizer que o precedente não se constrói do nada ou, quando muito, da motivação da decisão em concreto. O precedente se constrói como uma necessidade social de que se decida o caso de acordo com o Direito vigente, cujas razões de decidir vincularão as decisões posteriores. O precedente tem lume num ato existente, não podendo se cogitar a realização de precedente in abstracto, em que pese, para as decisões futuras aquele precedente possa ter uma referência abstrata tão forte quanto a própria lei. Contudo, é pacífico dizer que o sistema de precedentes sobreleva a importância dos fatos, já que se faz case to case.

Insta dizer que os costumes possuem forte e irrestrita influência na construção de um sistema de precedentes. O sistema de precedentes, geralmente, está incluso em uma tradição de common law que possibilita a criação judicial do Direito tendo o costume como estrutura. O costume é mais que uma fonte do Direito, mas o próprio Direito.

A prática reiterada de uma decisão judicial não necessariamente criará um precedente, mas jurisprudência naquele sentido, recordando-se, sempre, que um primeiro julgamento sobre determinado fato pode tornar-se imediatamente um precedente. Como? Simplesmente pelo fato de o próprio julgamento deter competência para assim fazê-lo[4].

O sistema de precedentes encara o Direito Consuetudinário de modo completamente diverso da forma que o fazemos no Direito brasileiro, o que pode resultar em um sistema completamente dissonante, híbrido, complexo e que poderá desencadear problemas jurisprudenciais.

A tradição jurídica brasileira não trata os costumes como fontes do direito. Valem as leis que versam sobre direito material e direito processual. Portanto, o que os tribunais brasileiros fazem não é mais do que tentar impor, como se precedente fosse, uma metodologia de julgamento e/ou um conjunto de decisões acumuladas acerca de um tema. Eis a “commonlização ao avesso”.

Talvez, nem disso se trate, pois os tribunais não se importam com os costumes do povo, mas a pretexto de declarar estes costumes, moralizam e dizem o que acham que o direito deve(ria) ser.

Este problema interpretativo sobre os precedentes como decisões superiores causa danos interpretativos consequentes, uma vez que se aproximam os Tribunais Superiores da Teoria do Precedente quando não poderia fazê-lo o jurista técnico. É que os Tribunais superiores e a Teoria dos Precedentes se desencontram quando debatem os fatos, essenciais à construção do precedente e irrelevante para a sedimentação da jurisprudência superior.

Não suficiente, essa equivocada aproximação negligencia boa parte da Teoria dos Precedentes que desenvolve a existência dos precedentes horizontais[5] e relativiza a força de decisões que não se constituem em precedentes, mesmo sendo superiores.

No processo civil brasileiro já ocorre a malfadada commonlização (precedentalização) do Direito, desde o CPC/2015 (Artigo 927)[6]. Antes, as decisões havidas tão somente ajudavam na formulação da fundamentação do juiz, como que dizendo “eu não estou sozinho nesta interpretação legal que faço”.

Destarte, como já aventou Streck, alinhou-se a vinculação do precedente à determinação legal que o vincula. Logo, operou-se a legalização de um costume jurídico (?) e, sabido é que a doutrina stare decisis impõe a observância do precedente pelo próprio precedente, e não pela imposição legal desta observância. Trata-se de um sistema complexo, e não de uma simples arregimentação burocrática à letra da lei processual nova.

Contudo, as partículas que tratam dos precedentes no CPC/2015 referenciam a própria jurisprudência. Os precedentes foram incorporados por força normativa de uma lei de tradição da civil law, mas são entendidos como eram antes, uma simples decisão ou coletiva jurisprudência que em determinados casos não se pode sacar, sequer, a ratio decidendi da obter dicta.

Gize-se, então, que os precedentes não são o mesmo que a jurisprudência, e isso é muito sensível no Brasil onde as expressões eram (são?) utilizadas como sinônimos. O problema de as expressões não serem diferenciadas encontra um postulado quantitativo, como já disse Michelle Taruffo[7], já que os precedentes são poucos em relação à jurisprudência. Na realidade brasileira, se chama por jurisprudência todo o conjunto de decisões judiciais de tribunais, sendo um termo plural, de per si. E durante muito tempo a analogia entre casos para dar concretude à decisão foi a forma com que os precedentes importaram no Brasil.[8]

Requer-se um giro interpretativo do termo “precedente” para que este tenha a autonomia premeditada no CPC/2015. Isso sem adentrarmos na temática da polissemia do termo jurisprudência – e sua função na língua inglesa – conforme os perfeitos apontamentos de Cáceres Nieto[9], e a incerteza sobre seus significados e sua aplicação. Sem se destacar, também, os aspectos qualitativos, de regra e teoria jurídica para se determinar o que é jurisprudência.

O que se pretende demonstrar é que sequer tínhamos de modo bastante claro os conceitos, a abrangência e o alcance do instituto jurídico da jurisprudência no sistema romano-germânico de tradição civil law no Brasil e nos colocamos a interagir com um sistema anglo-saxão de tradição common law para inventar um sistema de precedentes abrasileirado.

Mas se pudéssemos contribuir com uma pretensa (e impossível rápida) resposta sobre o que são os precedentes, arrazoando o porquê entendemos contraditória a estruturação brasileira, diríamos que um conceito único é por derradeiro impossível, uma vez que prescinde de recortes teóricos que possam, in fine, subsidiar uma conclusão. Como assinala Núñez Vaquero[10], é necessária uma noção bastante ampla sobre o precedente para que seja possível racionalizar sobre o que é. Mas se pode iniciar o debate da mesma forma pretendida por Iturralde[11], de que “é uma decisão, de um tribunal ou um juiz, tomada depois de um raciocínio sobre uma questão de direito em um determinado caso, e necessária para o estabelecimento do mesmo, sendo uma autoridade o precedente obrigatório para o mesmo tribunal e para outros tribunais de igual ou inferior competência, em casos subsequentes em que a discussão se situe sobre a mesma questão de direito”.

Os precedentes são decisões judiciais que decidem um caso e sua classificação jurídica – o que significa dizer a interpretação correta do direito, tal qual a perspectiva dworkiniana do Direito como integridade – estabelecendo que partes da decisão são ratio decidendi e/ou obter dicta. Sim, dentro de um precedente há precedentes e não precedentes, ou seja, não se pode dizer que toda a decisão havida em sede de precedente é uma formulação de precedente, quando apenas a ratio decidendi o é.[12]

A ausência de um paradigma hermenêutico bem construído acarreta sérias e diversas consequências negativas no que se fala sobre o tema por aí. O processo penal pode não estar no front da batalha, mas uma hora será também alcançado – se já não estiver em vias de.

Não se pode acomodar, no âmbito do processo penal, acreditando-se que o problema é apenas do vizinho. Enquanto não é a própria casa que está pegando fogo, contenta-se em observar as outras queimando (em que pese, por variadas outras razões, a casa do processo penal já esteja reduzida a cinzas). O grito de socorro dos vizinhos está sendo ouvido. Baldes d’água devem ser buscados para ajudar a apagar o incêndio. Esse fogo vai acabar alcançando o processo penal – em que pese tenha quem esteja queimando sem reclamar, ou ainda se extinguindo em meio as chamas sem sequer se dar conta disso.

 


[1] KARAM TRINDADE, André. As profecias da doutrina sobre o fetiche pelos precedentes no Brasil. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-nov-05/diario-classe-profecias-doutrina-fetiche-pelos-precedentes-brasil. Acesso em: 30/01/2020.

[2] STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[3] “Chamar de commonlização certa doutrina brasileira dos precedentes não é exagero retórico. Há(via) muitos doutrinadores que sustenta(va)m teses abertamente sob esse epíteto, ou algo parecido. E mais do que isso: o stare decisis (que é a doutrina que sustenta o common law) já está até explicitado em tese sacramentada pelo ministro Edson Fachin, recentemente em voto em Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal.” In STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica. 2. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 13.

[4] Aqui não entrará ao debate do momento em que o precedente ingressa no ordenamento jurídico. Se quando da sua definição como precedente pelo órgão que profere a decisão do precedente. Se prelo primeiro julgamento que utiliza daquele que se autoproclamou precedente. Ou do primeiro julgamento que aponta a utilização pelo julgamento anterior de um precedente autoproclamado. In NÚÑEZ VAQUERO. Álvaro. Sin precedentes: una mirada escéptica a la regla del stare decisis. DOXA, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 39 (2016) ISSN: 0214-8676 pp. 127-156.

[5] E, ainda: autoprecedentes; precedentes verticais descendentes e ascendentes; precedentes internacionais; precedentes oblíquos; precedentes transnacionais. In NÚÑEZ VAQUERO. Álvaro. Sin precedentes: una mirada escéptica a la regla del stare decisis. DOXA, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 39 (2016) ISSN: 0214-8676 pp. 127-156.

[6] “(…), em nenhum país em que o precedente faz parte da sua tradição jurídica é necessário que a lei imponha um sistema de vinculação, definindo o que é precedente e impedindo ‘atos de rebeldia’ diante da autoridade do precedente (…)” in STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica. 2. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 35. Streck aponta que a expressão “atos de rebeldia” não é de sua autoria, mas de Daniel Mitidiero.

[7] TARUFFO, Michelle. Precedente y jurisprudencia. Traducción de Claudia Martínez Vallecilla y Fernando Gandini.

[8] “PROCESSUAL CIVIL.  AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MARCO TEMPORAL PARA A APLICAÇÃO DO CPC/2015. DATA DA PROLAÇÃO DA SENTENÇA.  PRECEDENTES.  HONORÁRIOS FIXADOS DE FORMA IRRISÓRIA.    MAJORAÇÃO.    POSSIBILIDADE.    PRECEDENTES.    1.   A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que a prolação da sentença é o marco temporal para delimitar o regime jurídico aplicável à fixação de honorários advocatícios. In casu, tendo a sentença sido prolatada na vigência do CPC/1973, devem os honorários ser fixados nos moldes de seu art. 20. (…)” (Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1694752 / SP. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL 2017/0215062-3. Julgamento de 09/05/2019).

Atentemos que um julgamento de maio de 2019, refere-se a precedentes e jurisprudência como sinônimos. Mas deve-se dizer que o termo precedente pode ser usado como sinônimo de uma decisão anterior, ou de uma coisa que aconteceu anteriormente, e apenas isso. Não parece ser bom fazê-lo, já que há muitas maneiras de dizer que a decisão é justificada por decisões plurais e gerais no mesmo sentido (analogicamente) sem usar o termo precedente.

[9] CÁCERES NIETO, Enrique. Sobre la utilidad del estudio de la filosofía del derecho. Revista Jurídica Estudiantil. Departamento de Derecho. Universidad de Sonora. Año 3 / Número 13. p. 6.

[10] NUÑEZ VAQUERO, Álvaro. Sin precedentes: una mirada escéptica a la regla del stare decisis. DOXA, Cuadernos de Filosofía del Derecho, 39 (2016) ISSN: 0214-8676 pp. 127-156. p. 128.

[11] ITURRALDE, Victoria. Precedente Judicial. Eunomía. Revista en Cultura de la Legalidad. Nº 4, marzo – agosto 2013, pp. 194-201. p. 195.

[12] Por ratio decidendi entendido o conteúdo do precedente que é aplicável a outro caso, a parte do precedente que tem valor vinculante, seja como norma geral aplicada na decisão, seja como norma geral mais o conjunto de fatos do caso, isto é, como todos os elementos essenciais ou necessários para a decisão judicial. O precedente é uma decisão que, como importante, liga os outros pelo seu conteúdo – construído pelo costume e pela aplicação jurisdicional de uma cultura jurídica específica. Forma a estrutura da common law.

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