Opinião

A sucessão por trust no exterior e a posição da Receita Federal Brasileira

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22 de abril de 2020, 8h20

O trust é instituto jurídico formado no âmbito do Direito consuetudinário inglês, cujas regras foram moldadas ao longo da história mediante a common law [1] e, principalmente, pela equity [2], tornando-o um desmembramento do direito de propriedade desenvolvido na Inglaterra.

René David, citando o historiador do Direito inglês F. W. Maithland, escreve que o trust "é uma instituição tão flexível, tão geral quanto o contrato… e, talvez, a realização mais original obtida pelos juristas ingleses. Parece-nos quase constituir um elemento essencial à civilização" [3].

Por meio do referido instituto jurídico (que não é reconhecido nem praticado no Direito brasileiro), é possibilitado que determinada pessoa (na qualidade de settlor ou grantor) transfira bens ou direitos para a titularidade de outrem, condicionando, entretanto, o exercício desses direitos transferidos ao interesse de alguém (o beneficiary), ou então para a realização de um objetivo ou fim específico. Quando tal situação ocorre, diz-se que o titular que recebeu a transferência está "in trust" para com algo ou alguém, sendo então este titular denominado de "trustee".

No primeiro caso (exercício do direito pelo trustee em favor de uma pessoa) estamos diante do private trust; já no segundo caso (exercício do direito pelo trustee para a realização de um objetivo especial), estamos diante da figura do purpose trust.

Dada a generalidade de tal situação, o instituto do trust pode ser utilizado para a concretização de diversas finalidades econômicas e sociais: desde a curadoria dos bens e direitos de um incapaz (substituindo assim a técnica de representação legal do incapaz), passando pela consecução de objetivos societários ou associativos por meio da pessoa do trustee (substituindo a figura da personalidade jurídica de uma sociedade ou associação para tanto) e chegando a ser utilizado até na determinação da partilha de bens na sucessão causa mortis (suprindo a finalidade que os institutos da herança e do testamento se propõem).

Na organização de partilha de bens, René David preleciona que "o morto não tolhe o vivo na Inglaterra", de modo que é possível que "a sucessão, antes de ser transmitida ao herdeiro 'ab intestat' ou ao legatário universal, é confiada ao 'administrator' ou 'executor'; este se torna o depositário dos direitos que pertenciam ao 'de cujus. No entanto, assimilado ao trustee (cujo nome foi dado por uma razão de ordem histórica) o 'administrator' ou 'executo' deve exercer esses direitos no interesse de todos aqueles (herdeiros, legatários, credores) que têm direitos sobre a herança e que receberão, no fim, parte ou totalidade desta" [4].

De fato, é difícil para operadores do Direito no âmbito da civil law compreender e admitir esta figura, que foi culturalmente desenvolvida ao longo da história do Direito inglês, mediante uma interação entre common law e equity, em meio a valores jurídicos (como, e.g., a liberdade de criar novos desmembramentos à propriedade, ou então a rejeição da civilística romana) não presentes na nossa cultura jurídica, que, para as resolução de situações fáticas que seriam tratadas pelo trust, conta com a positivação de categorias pré-moldadas para as relações de Direito Privado, decorrentes do Direito romano e germânico que herdamos.

Esse choque de cultura jurídica dificulta ainda mais, por exemplo, a sobreposição do Direito Tributário brasileiro para a tributação de determinada riqueza estruturada em um trust.

Isso porque muitos dos signos de riqueza adotados pelo Direito Tributário brasileiro (para a delimitação material da hipótese de incidência dos tributos) revelam-se verdadeiros arquétipos extraídos de categorias jurídicas de Direito Privado, oriundas do Direito romano, tais como a propriedade, o patrimônio e a sucessão patrimonial.

Todavia, com o efeito da globalização, cada vez mais é possível que o Direito Tributário nacional se depare com situações, por exemplo, de riqueza percebida por residente no país e que é beneficiário de relação envolvendo trust firmado no exterior.

Recentemente, a Receita Federal do Brasil (RFB) foi instada a se manifestar por meio de Solução de Consulta COSIT nº 41 de 2020 [5] sobre essa situação, envolvendo o patrimônio de uma viúva residente fiscal no Brasil que, na qualidade de beneficiary, passou a receber valores de trust firmado pelo seu falecido marido (na qualidade de settlor) nas Bahamas (país que possui cultura jurídica influenciada pela common law inglesa).

Importante salientar que, conforme narrado na consulta, os valores recebidos pela contribuinte mediante o trust se deram em razão do falecimento do settlor (de cujus), que, antes da sua morte, havia transferido patrimônio à titularidade do trustee.

Apesar de não encontrarmos mais detalhes sobre o caso concreto na Solução de Consulta, os indícios da narrativa apontam que o recebimento do trust em questão se relacionava à transferência de patrimônio propriamente, da titularidade do trustee para a titularidade da contribuinte (beneficiary), em decorrência do falecimento do de cujus (settlor).

Diante deste cenário, a contribuinte formulou consulta questionando se o recebimento destes valores deveria ser considerado como transmissão "causa mortis" para fins de incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação (ITCMD) à alíquota de no máximo 8%, sendo isento do Imposto sobre a Renda (IR), nos termos do artigo 6º, inciso XVI, da Lei Federal nº 7.713 de 1998; ou então se deveria ser considerado como rendimento proveniente do exterior, atraindo assim a incidência do IR à alíquota de até 27,5%, nos termos do artigo 8º da Lei Federal nº 7.713 de 1998.

Ao responder à consulta, a RFB manifestou entendimento de que tal situação se enquadraria nesta última hipótese, como recebimento de rendimentos percebidos de fonte no exterior, ou seja, fato gerador do IR.

Ocorre que a Solução de Consulta COSIT nº 41 de 2020 (a primeira da RFB a tratar sobre tributação de valores recebidos por residente fiscal no Brasil a título de trust havido no exterior) deixou a desejar quanto a uma delimitação fática mais detalhada, sobre a as regras entabuladas no trust em análise (que geralmente constam de instrumento denominado "trust deed"), o que pode gerar uma certa insegurança jurídica na vinculação deste entendimento para outros casos envolvendo trust.

Isso porque, como dito acima, o trust é instituto genérico bem amplo, que pode ser utilizado em diversas situações e com diversas finalidades. Se, no caso da consulta (o que não restou esclarecido), a contribuinte estivesse recebendo valores de rendimentos oriundos da administração "in trust" de patrimônio tido pelo trustee, certamente teríamos de concordar pela incidência do IR.

Por outro lado (e é o que nos parece), se o que estivesse sendo recebido pela contribuinte fosse a transferência do patrimônio (que o de cujus confiara ao trustee antes da morte) em razão das regras de partilha contidas no trust, estaríamos diante de uma possível hipótese de incidência de ITCMD, diante da natureza sucessória da operação, que não pode ser ignorada para a delimitação da incidência tributária [6].

Desta feita, se os valores recebidos se deram mesmo a título de sucessão patrimonial, a Solução de Consulta COSIT nº 41 de 2020 possivelmente extrapolou os limites legais para a incidência do IR (que, de acordo com o artigo 43 do CTN, tem como fato gerador a renda, e não o patrimônio).

Infelizmente, como os detalhes acerca dos direitos e obrigações do trust não foram delimitados com clareza na referida consulta, fica a dúvida quanto à materialidade para incidência tributária (se de IR ou de ITCMD) sobre o fato analisado.

Referências bibliográficas
DAVID, René. O Direito inglês. Tradução: Eduardo Brandão. Martins Fontes. São Paulo. 1997.

RFB. Solução de Consulta nº 41 – Cosit de 31 de março de 2020. Disponível:< http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=108304>.

 


[1] Direito constituído pelos precedentes emanados inicialmente pelas Cortes de Westminster, no decorrer do desenvolvimento da sociedade inglesa.

[2] Direito constituído por meio de remédios processuais específicos emanados pela Coroa, por meio da Corte da Chancelaria.  

[3] DAVID, René. O Direito inglês. Tradução: Eduardo Brandão. Martins Fontes. São Paulo. 1997.p 99.

[4] Op. cit. p. 101.

[5] RFB. Solução de Consulta nº 41 – Cosit de 31 de março de 2020. Disponível:< http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=108304>.

[6] Isso sem levar em conta a controvérsia acerca da inconstitucionalidade em razão de inexistência de Lei Complementar para incidência do ITCMD nas hipóteses em que o de cujus possuía bens ou era residente ou domiciliado no exterior que, apesar de não ser o foco do presente artigo, encontra-se pendente de julgamento pelo STF em sede de Repercussão Geral reconhecida nos autos do RE nº 851108.

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  • Brave

    é advogado tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados e monitor e pós-graduando no Curso de Especialização em Direito Tributário Nacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

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