Opinião

Requisição administrativa e a Covid-19

Autor

  • Fabiano Gonçalves

    é advogado professor da graduação e da pós-graduação lato sensu da UNESA-RJ mestre em Direito Público pela UNESA-RJ especialista em Advocacia Pública pela UERJ e presidente da Comissão de Direito Constitucional e Direito Administrativo da OAB/RJ Subseção Leopoldina.

22 de abril de 2020, 9h24

A pandemia da Covid-19 tem levado alguns governos locais a promover a requisição administrativa de bens e serviços de hospitais, clínicas particulares e indústrias, sob o pretexto de empregá-los no combate ao coronavírus e no tratamento de pacientes contaminados, em algumas oportunidades exorbitando os limites impostos pelo Direito. A nova realidade que se apresenta neste período de crise na saúde pública sugere a revisitação teórica e contextualizada aos novos tempos de antigo instituto do Direito Administrativo, com origem marcadamente autoritário, que remonta ao período Direito Militar romano.   

Para o Direito Administrativo tradicional, a requisição administrativa traduz ato administrativo justificado pela prevalência do interesse público sobre os interesses privados, pelas ideias de poder de império estatal e de domínio eminente e pelo postulado da função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, e artigo 170, III, CRFB), que autoriza o poder público, no caso de iminente perigo público, a utilizar compulsória e temporariamente a propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização posterior, se houver dano, nos termos do artigo 5º, XXV, da Constituição da República.

A Lei n.º 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, autoriza o poder público a requisitar administrativamente bens e serviços de particulares, mediante pagamento posterior de justa indenização (artigo 3º, VII). A comoção pública causada pela pandemia da Covid-19 explica a tendência natural da sociedade de considerar legítimos atos administrativos dessa espécie. O raciocínio geralmente é movido pela noção apriorística de predominância do interesse público, relacionado ao combate ao coronavírus e ao tratamento dos infectados, por um lado, sobre os interesses privados supostamente egoísticos de propriedade, de outro.

Prevalece na sociedade o senso comum de que "razões de interesse público" excepcionais justificariam, como regra geral, medida estatal interventiva tão invasiva ao direito fundamental de propriedade privada. Todavia, sob o aspecto jurídico não existem motivos para menosprezo do direito fundamental a propriedade privada, uma vez que no Estado Democrático de Direito o clichê da supremacia do interesse público como poder abstrato e absoluto não justifica o arbítrio do Estado.

Mesmo sob o pretexto de atuar em nome da proteção à saúde da população, para promover a requisição administrativa o Estado deve fundamentar o ato em evidências fáticas e técnicas, por meio de motivação transparente e proporcional. A falta de planejamento e a ineficiência na gestão não validam o sacrifício de direitos fundamentais. A discricionariedade não pode significar arbitrariedade, nem tampouco liberdade absoluta, e a unilateralidade e auto-executoriedade dos atos administrativos não caracterizam "cheque em branco" para o autoritarismo estatal diante do direito de propriedade, que é a regra constitucional.

A intervenção do Estado na propriedade privada, por requisição administrativa, somente será legítima se baseada em dados concretos e objetivos, aptos a comprovar que a utilização dos bens requisitados, em cada caso específico, é determinante para impedir maiores riscos à saúde pública decorrentes da pandemia da Covid-19. Havendo danos aos bens requisitados ou a utilização de bens consumíveis, cabe à Administração Pública, de maneira espontânea e imediata, cuidar das medidas destinadas à justa indenização dos proprietários.

Com efeito, à luz do princípio da isonomia, se a execução da requisição administrativa independe de provimento jurisdicional, os direitos dos proprietários também devem ser satisfeitos diretamente pelo ente público requisitante, sem submeter os particulares ao desgaste de uma disputa judicial, visto que a Constituição da República também protege os interesses privados.

Por fim, mas não menos importante, o princípio da razoabilidade na perspectiva da necessidade impõe que a requisição administrativa seja utilizada somente como alternativa derradeira, tendo em vista a existência de meios menos gravosos ao direito fundamental de propriedade, como, por exemplo, a desapropriação, na qual o devido processo legal é detalhadamente definido pelo Decreto-Lei n.º 3.365/41, garantindo maior segurança jurídica, além de a justa indenização ocorrer previamente.

Ademais, atualmente o Estado dispõe de meios mais flexíveis e céleres de contratação, nos termos da Lei n.º 13.979, de 6/2/2020, com as posteriores alterações da Medida Provisória n.º 926, de 2020, que considera dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao combate à pandemia do coronavírus, enquanto perdurar a situação de emergência. Com isso, nem os maiores rigores e entraves burocráticos da Lei n.º 8.666/93 e da Lei n.º 10.520/02 podem servir de argumento para adoção da requisição administrativa como regra. 

O princípio da solidariedade social exige atuação conjunta do Estado e da sociedade, especialmente em épocas de crise e de dificuldades, no entanto, não autoriza a aniquilação das garantias e direitos fundamentais dos indivíduos. O Direito Administrativo contemporâneo deve ser compreendido muito mais como instrumento de defesa e promoção dos direitos fundamentais do que como expressão da potestade estatal. 

As decisões administrativas devem equilibrar a situação de interesse público de combate ao coronavírus e o direito fundamental de propriedade privada. Qualquer ato estatal que desconsidere a requisição administrativa como a última ratio será inconstitucional. Afinal, como às vezes as obviedades precisam ser ditas, não custa lembrar que interesses públicos e interesses privados são igualmente protegidos pela Constituição, não havendo fórmula pronta e acabada de predominância a priori de qualquer um deles.

Autores

  • é advogado, professor da graduação e da pós-graduação lato sensu da UNESA-RJ, mestre em Direito Público pela UNESA-RJ, especialista em Advocacia Pública pela UERJ e presidente da Comissão de Direito Constitucional e Direito Administrativo da OAB/RJ, Subseção Leopoldina.

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