Direito Civil Atual

Quais decisões judiciais a pandemia instabiliza?

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22 de abril de 2020, 10h03

No processo civil, para além do evidente potencial de aumento da judicialização das relações sociais, a pandemia da Covid-19 representa importante impacto a uma série de relações jurídicas já litigiosas e diretamente reguladas por decisões judiciais proferidas em contexto pré-pandemia. Os critérios de direito material certamente auxiliam a solução de cada caso concreto a partir de suas especificidades. O que se pretende nesse texto, no entanto, é uma abordagem a partir de aspectos processuais.

A ideia é entender como o sistema de estabilidades processuais que permeia o processo civil deve ser visto em um contexto de pandemia. E conferir quais decisões podem ser modificadas, em qual extensão e a partir de qual procedimento. É importante compreender como processo civil recebe a instabilização provocada pela pandemia.

O processo civil busca a estabilidade – é a regra. As partes não podem ser submetidas a retrocessos indefinidos no processo, razão pela qual todos os atores do processo são, ainda que em diferentes graus, submetidos à preclusão ao longo do processo (art. 507 do CPC). Estabilidade processual, no entanto, não deve significar processo estático. Há casos que exigem soluções dinâmicas, ainda que estas perpassem pela modificação de decisões judiciais inicialmente reputadas estáveis1.

Uma análise da jurisprudência formada em contexto pré-Covid revela certa dificuldade do Poder Judiciário brasileiro em apreender o dinamismo do processo muito em razão de uma compreensão inadequada da preclusão para o Juiz. Tome-se como exemplo as diversas decisões do STJ2 que indicam que questões de ordem pública – por excelência, questões não submetidas à preclusão – seriam sim atingidas pela preclusão para o Juiz3. Ou, ainda, a enorme dificuldade que alguns Juízes ainda têm em aceitar a alteração dos meios de satisfação da execução no curso do processo, sempre em razão da preclusão para o Juiz4.

A preclusão, neste caso, "é fenômeno que impede o juiz de rever questões incidentais anteriormente resolvidas"5. Um elemento essencial para a marcha do processo, sem dúvida. O que não se admite é o indevido engessamento. Há hipóteses que reclamam dinamismo.

Da mesma maneira que ocorre no campo material, as decisões judiciais podem se efetivar mediante situações jurídicas instantâneas, exauridas imediatamente, ou continuadas, cujo cumprimento se protrai no tempo. O CPC entrega solução dinâmica às situações jurídicas continuadas a partir da regra do art. 505, I.6 Faltou ao dispositivo, entretanto, aptidão para contemplar uma solução mais completa ao fenômeno.

Antes de tudo, a redação e a localização topográfica do dispositivo (Seção V – Da Coisa Julgada) dão a entender que se está diante de um caso de relativização da coisa julgada, o que é um erro. Depois, a redação do dispositivo condiciona a revisão do decidido à hipótese de haver sentença e coisa julgada, excluindo de sua abrangência as decisões interlocutórias cobertas pela preclusão, o que também é inadequado.

A ideia de relativização da coisa julgada é sistematicamente inadequada porque, como explica Eduardo Talamini, a norma ali contida não importa qualquer tipo de relativização da coisa julgada formada em ação anterior, mas decorre da própria natureza da relação jurídica continuada, que “em vista de seu caráter dinâmico e sua duração continuada no tempo, dá ensejo à constituição de novas causas de pedir no seu próprio curso”7.

O segundo problema acaba por ser uma decorrência do primeiro. Se há possibilidade de modificação em razão do caráter da relação jurídica objeto da decisão, é um equívoco limitar a possibilidade de revisão aos casos em que já há sentença. A correta compreensão do art. 505, I, do CPC, exige sua extensão para as decisões e estabilidades processuais no geral, para os casos de relação continuada.

Nada pode instabilizar mais do que a pandemia da COVID-19. Pode importar, como nunca, em modificação no estado de fato ou de direito de milhões de partes de ações em curso no Poder Judiciário. Fatos supervenientes e imprevisíveis sempre existiram, mas não dimensão atual.

Daí decorre a necessidade que os Juízes apreendam as relações jurídicas de trato continuado (e o regime jurídico daí decorrente) para além do senso comum. Se ações revisionais ordinárias – como as de alimentos ou de aluguel – não enfrentam grandes resistência (ao menos do ponto de vista técnico), o mesmo não se pode dizer de situações menos óbvias, mas igualmente subsumíveis à lógica subjacente ao art. 505, I, do CPC.

As atividades constritivas decorrentes da execução ilustram bem o tema. Não é raro que o débito não seja satisfeito apenas com os bens penhoráveis de maior liquidez (conforme ordem preferencial do art. 835 do CPC). Quanto menos líquido o bem, maior deve ser a intervenção do Juiz para adequar a satisfação do crédito às especificidades do caso concreto. É comum, por consequência, que, nesses casos, a satisfação do crédito não decorra de um único ato suficiente para integral adimplemento, mas de atos constritivos continuados. Embora estáveis, as decisões que cominam determinações que objetivam a satisfação do crédito podem ser modificadas, desde que haja instabilização do contexto factual.

Um exemplo claro: o CPC permite a penhora de parte do faturamento da empresa (art. 835, X). A depender do valor do crédito, a penhora deverá perdurar por vários meses. A jurisprudência do STJ exige que tal penhora seja em “percentual fixado que não torne inviável o exercício da atividade empresarial8. Há um juízo de razoabilidade essencialmente factual. Diante das circunstâncias do caso concreto, será definido valor que não torne a atividade empresarial inviável. Ainda que processualmente estável, decisão dessa natureza pode ser revista a qualquer tempo. A alteração do fluxo de caixa, em razão da pandemia, pode tornar a manutenção do percentual inicialmente fixado inviável para a continuidade da empresa.

Essa lógica se reproduz em diversas situações. Pense-se nas obrigações de fazer impostas liminarmente; nas medidas coercitivas de limitação de direitos; nos alugueis provisórios das ações renovatórias de locação de imóveis; nos contratos de prestação continuada objetos de litígio; enfim, toda a sorte de decisões judiciais pré-pandemia que impuseram às partes restrições, ônus ou deveres em curso atual e futuro. A pandemia pode ter instabilizado todas estas hipóteses – o que deve resultar em alterações das decisões em um processo civil dinâmico. Estabilidade processual não equivale a processo estático.

É evidente que não se cogita aqui uma ampla e irrestrita alteração de decisões judiciais estáveis. A ideia é apenas mostrar que as limitações do processo não podem impedir a revisão de decisão de trato continuado, desde que a alteração seja materialmente justificável. O processo, em regra, não pode se voltar contra atos processuais passados já exauridos em razão de fatos supervenientes. Mas, da mesma forma, quando este exaurimento é diferido no tempo, a situação se inverte: é dever do Juiz adequar a situação atual e futura aos fatos supervenientes verificados.

Em conclusão, o art. 505, I, do CPC, estabelece regra geral a tornar possível a modificação de qualquer decisão judicial estável que regule uma relação jurídica continuada. Exaurido o comando jurisdicional, a modificação não é possível; havendo determinação atual e futura, no entanto, a alteração é permitida. Procedimentalmente, o pedido revisional pode ser veiculado de forma incidental. É uma possibilidade que abrange todas as decisões judiciais estáveis que regulam relações de trato sucessivo, e não apenas a sentença acobertada pela coisa julgada.

Para terminar, é importante advertir que a pandemia não é uma carta branca para que as decisões judiciais sejam modificadas. Como defendeu Carlos Eduardo Ruzyk Pianovski, em uma perspectiva de direito material, da mesma forma que a boa-fé exige do credor comportamentos de cooperação, não pode o devedor se valer de comportamentos oportunistas para deixar de efetivar suas obrigações.9 O alerta também vale aqui: argumento de instabilização não pode ser cômodo pretexto.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 Um sistema dinâmico de estabilidades processuais não é exatamente uma novidade no processo civil brasileiro. A defesa dessa perspectiva foi feita de forma ostensiva pela pesquisa de fôlego de Antonio do Passo Cabral em seu doutoramento, desenvolvido ainda sob a vigência do CPC/73. Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed Salvador: JusPodivm, 2014.

2 São várias decisões nesse sentido. Como exemplo: “2. Mesmo as matérias de ordem pública estão sujeitas à preclusão pro judicato, razão pela qual não podem ser revisitadas se já tiverem sido objeto de anterior manifestação jurisdicional. Precedentes. 3. Agravo interno não provido” (AgInt no AREsp 1519038/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, 12/02/2020).

3 Os Acórdãos do STJ recorrentemente utilizam o termo “preclusão pro judicato” como sinônimo de “preclusão para o Juiz” – ou seja, impossibilidade de nova decisão sobre questão já decidida. Há críticas terminológicas ao termo, razão pela qual, nesse texto, optou-se pela expressão “preclusão para o Juiz”. Cf. TEISHENER, TESHEINER, José Maria. Preclusão pro judicato não significa preclusão para o juiz. Disponível em: https://www.paginasdedireito.com.br/index.php/artigos/93-artigos-jan-2006/5116-preclusao-pro-judicato-nao-significa-preclusao-para-o-juiz>.

4 PENHORA SOBRE FATURAMENTO. INATIVIDADE TEMPORÁRIA. (…). PRECLUSÃO PRO JUDICATO E VEDAÇÃO LEGAL. (TRF2. Agravo de instrumento 004771-72.2013.4.02.0000, Rel. Wilney Magno de Azevedo Silva, 4ª Turma Especializada, 18/07/2017).

5 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Preclusão processual civil. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 183.

 6 Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

7 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 90.

8 STJ. AgInt no REsp 1811869/SC, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, 26/11/2019.

9 PIANOVSKI, Carlos Eduardo Ruzyk. A crise do covid-19 entre boa-fé, abuso do direito e comportamentos oportunistas. 16 de abril de 2020. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/324727/a-crise-do-covid-19-entre-boa-fe-abuso-do-direito-e-comportamentos-oportunistas>. Acesso em: 16 de abril de 2020.

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