Consultor Jurídico

Rodolfo de Carvalho: Direito e filosofia na Covid-19

21 de abril de 2020, 17h23

Por Felipe Rodolfo de Carvalho

imprimir

Os olhos procuram sem atenção. Muita luz. Excesso de som. Anúncios. Pronunciamentos. Estatísticas. Mentiras desmentidas. Subnotificações. Com dificuldade as mãos vasculham o campo. O observador é participante. Nem tudo é espetáculo! O nariz escorre. A tosse é seca. O corpo está febril. O regime é de sufoco. Quem é que não está contaminado?

Enquanto os juristas rapidamente sacolejam seu capital cultural à busca de uma teoria adequada à imprevisão dos acontecimentos, os filósofos se prostram diante do cenário na intenção de uma palavra sensata capaz de interromper o palanfrório instalado. Há por aqui Filosofia? Ou mesmo direito de filosofar? Com que direito, agora, uma Filosofia do Direito?

O silêncio de Deus entreabre as perguntas do homem. O estado pandêmico suscita a questão e coloca o mundo em parêntese. Haverá a humanidade de aceitar o mal como um destino inelutável? Resignará a admitir a morte de uns ou de muitos como seu trágico histórico necessário? Justificará à guisa de contas a pagar uma imensidão de violências gratuitas e de sofrimentos inocentes?

Não se pode fazer um elogio leviano da Filosofia. Há, de fato, momentos em que filosofar é não só uma imprudência e uma impertinência senão também uma indecência. Situações há em que o que se demanda é um agir sobre o mundo: rápido, consequente e eficiente… Imprescindível, sim, é se fazer as perguntas certas, mas perguntas certas não se levantam em circunstâncias indelicadas.

No entanto, num contexto pródigo de especialistas, que logo se consultam, emitem pareceres, sugerem conjecturas e preconizam reformas, ao filósofo é restituída sua tarefa primordial. Sem que tenha condições de identificar a cura, acompanhar os doentes, conter os efeitos nefastos do vírus que se alastra, resta-lhe, então, neste seu mister modesto, refletir sobre a atual in-condição humana.

Há um compromisso que antecede o exercício filosófico. Como Filosofia da Justiça é que a Filosofia do Direito se justifica. Filosofar? Apenas como resposta a uma demanda. O homem angustiado está repleto de explicações. Falta-lhe um sentido nisso tudo. Por quê? Por quê? Por quê?

Nos infortúnios da história, em que o mundo globalizado ergue novamente suas fronteiras, os objetos aos embaraços são distribuídos e redistribuídos, elevando-se em seu preço, e a existência se retira na economia da casa, reassumindo a antiga ideia de privação, mas onde sobretudo pessoas se infectam e morrem, morrem de morte matada, com ou sem diagnóstico, nem tanto por obra da doença, muito mais por obra daquilo que dela se faz nesses instantes, em que a história progressiva balança e roça a derrocada, o que se pode pensar sobre o Direito?

Pode-se pensar, antes de tudo, que talvez existam empreendimentos humanos mais essenciais; de conceito em conceito aos poucos se formam pirâmides conceituais, mas ainda não se enchem barrigas nem se ajuda a respirar.

Em todo caso, prova mesma de que a ruína completa ainda não se consumou reside no fato de que normas temporárias ainda são propostas e debatidas, leis excepcionais se promulgam e decretos precários se editam, revogam-se e se cassam às canetadas. Enquanto há qualquer coisa de jurídico ruminando na terra, a esperança de uma humanidade capaz de integrar seus conflitos e resolver seus problemas pelo medium do argumento ainda não completamente se dissipou. A morte do Direito, não a sua enfermidade, é um dos primeiros sinais de que o abismo da barbárie foi alcançado.

No entanto, na contramão das suas pretensões, sem que se tenha dado conta de não ser o elixir de todos males, o Direito, de médico a paciente, está enfermo. Seu quadro patológico o transforma num conjunto de medidas provisórias… que parecem instabilizar a ação e instalar um quadro de incertezas. Afinal, o que está valendo? O perigo é o de que direitos à custa conquistados se percam na maré das relativizações, supostamente protegidas pelas manifestações de acordo individuais. Direito? Com que força? Rebus sic stantibus! Problemático é quando o estado de coisas não se destina a perdurar e o tempo jurídico adquire a qualidade do instantâneo. Os direitos, infectados, vão aos poucos, como seringas, descartando-se.

Mas, justamente neste processo de descarte, a consciência jurídica se desperta diante da ofensa. A cada direito que se perde é uma multidão humana que resta desamparada. Por que Direito? Nos períodos críticos, em que a moléstia se agudiza, é que se pode com maior precisão fazer o diagnóstico e dar o prognóstico. Como se condição de uma lucidez terrível se encontrasse nas ocasiões dolorosas em que se pisa a soleira da morte, defrontando-a. Neste estágio, em que mortes se multiplicam numa escalada assustadora, em que corpos apodrecem, deixados à deriva na rua, em que as lágrimas são obrigadas a derramar depressa, sem tempo de molhar a roupa passada dos defuntos, é legítimo perguntar: Tem por acaso o Direito a ver com a morte?

Da morte só se tem a certeza do seu mistério. O curioso do homem é que pela distração do cotidiano seja capaz dela se esquecer; pior do que isso, conquanto se lhe represente a falibilidade dos seus poderes, creia a ela se sobrepor pelo vigor enganoso da saúde que ostenta. Mais ou menos do que eterno, quer ser imortal, ele que ainda conta os dias e mede os prazos pelo calendário…

Do início ao fim, o percurso, contudo, é infalível. O caminho está traçado. Os registros biográficos troçam da liberdade humana. A cada segundo, a cada minuto, a cada hora que passa, o homem envelhece. Sua senda, a bem dizer, sua sina, é a do envelhecimento: antes de criar um mundo, ou de presidi-lo, experimenta o tempo que opera a seu despeito. No homem, a idade que se esconde não é uma pieguice desarrazoada; no fundo, a constatação do seu fracasso. O homem o Homem , sem distinção de gênero, tem medo de morrer. Em sendo certa e indubitável, a morte, que não se extingue, adia-se.

Eis o cenário de fundação do Direito moderno. O medo da morte provocada pelo assassínio do outro ilumina o discernimento para o contrato. Instituições jurídicas se criam, assim, egoisticamente, pelo temor da morte que ameaça. Em causa, uma relação pessoal angustiante com a própria finitude. O Direito, que me protege da morte, afasta-me, imunizado, do perigo representado pela figura do próximo tóxico, contagiante, amedrontador. Lei? Um instrumento sanitário que cria esferas proprietárias, demarcando zonas individuais que separam os sãos do contato alérgico com os pestilentos. No cerne do empreendimento jurídico, uma arquitetura legal que transforma o conjunto dos direitos subjetivos usufruídos numa série de barreiras que isolam e edificam por sobre cada indivíduo uma casa onde se recolhe e onde se previne de toda aproximação arriscada. Como preço da morte adiada: o distanciamento social.

A humanidade não haveria de se surpreender, portanto, com as medidas restritivas de locomoção impostas… Ao mesmo tempo tão próximos, mas já tão… tão.. distantes, os rostos se encontram e as mãos (desde que não sejam as de um mendigo, de um malcheiroso, de um imunodeprimido…) se tocam, num gesto banal irrefletido. Inevitavelmente, os corpos se esbarram e se arranham, mas os ombros logo se encolhem. Como as do paraíso do consumo, muitas portas sem maçanetas se abrem sozinhas, embora nem todos as possam atravessar. Famílias de luxo se refugiam em enclaves fortificados, enquanto famílias de lixo são lançadas aos lixões periféricos. Escolas para ricos. Escolas para pobres. Escolas virtuais. As linhas que separam, que fazem da separação o modo habitual e paradoxal de convivência em sociedade, estão latente ou patentemente espalhadas, desde as filas de cadeiras às faixas de trânsito, desde as prateleiras das bibliotecas aos departamentos das universidades, desde os assentos nos tribunais às linhas que circundam os territórios estatais. Está tudo separado. Os pais. Os filhos. Os amigos. Não apenas os inimigos… Medida por medida. O que cabe a cada um? O espaço separado precisa estar bem mensurado e dividido. Qual o tamanho de um leito? Em que quantidade serão necessários? Em sua insuficiência, uma criança ou um idoso: quem terá prioridade? Dilemas de uma Justiça distributiva, que, no extremo, no seu suum cuique tribuere, terá de atribuir a cada um, ou a mais de um, a exata dimensão de uma cova.

Será preciso, então, num cálculo utilitarista, aceitar como natural, dada por inarredável, a morte dos mais frágeis, a pretexto de que para os demais la marche vitale não pode estacar? Que "Filosofia" estará por trás das mentes loucas e assassinas que insistem num processo cuja teleologia se degringolou? Os ânimos pululam. O pânico atormenta os espíritos nauseados. Dos noticiários inflam informações que deixam os corações ansiosos e apreensivos. A fase é de parada. Há que parar para pensar. Inverter a marcha. O que importa mais? O funcionamento regular das ações corrompidas de interesse ou as mortes que chegam e que arrasam a suposta boa disposição das coisas?

A pandemia coloca o Direito de frente com a dilemática questão da morte. Que morte considerar? A minha? A do outro? Quem entender a morte entende tudo, inclusive o Direito, que, como a morte, é mistério. Mistério do início e do fim da sociabilidade humana, diria Tercio Sampaio Ferraz Jr. De mistério em mistério, quiçá, ao cabo, tudo faça sentido. Para entender o Direito, será necessário compreender a morte. A morte do Direito? A morte humana? Uma morte outra que não a minha. Por acaso, ou por ocaso, é de se acreditar que o sentido do Direito se deixe estalar aí, onde alguém, que não eu, ausenta-se deste mundo morrendo. Por que Direito? Por um receio: para além do meu medo da morte, o temor da morte alheia, tão implacável quanto a minha, até mesmo mais provável e iminente. Só aquele que morre pode legitimamente gozar de direitos. Não é lícito deixar quem quer que seja morrer à míngua.

O Direito talvez constitua este remédio humano, já ultrapassada a etapa de teste, contra as próprias mazelas que o homem é capaz de causar à humanidade. Na sua base, não está o protótipo de um Übermensch atlético, que constrói uma fictícia realidade jurídica perfeita, moldada pelo ideal metafísico de autonomia; antes, numa in-condição humana de vulnerabilidade, da qual resulta sua exposição à ferida, à lesão e ao ultraje, situa-se, um tanto quanto sem posição, como se seus pés não se firmassem suficientemente no chão, um sujeito moribundo, combalido e adoentado, arrastando-se em direção ao seu epílogo e requerendo medicação.

O vírus apenas escancara no homem a sua falta de coroa. O rei está nu, mesmo se achando coberto de razão. Se é assim, tudo há que ser repensado. O trabalho especializado dos juristas deverá se fazer acompanhar das reflexões dos filósofos. Pois, no fim de contas, o direito de filosofar talvez somente se justifique enquanto o mundo carece de orientação. Não é que a Filosofia, ou a Filosofia do Direito, esteja à altura, por si mesma, de evitar o desastre. Na insônia constitutiva que a acomete, que faz dela vigilante histórica, quem sabe possa ao menos desembaraçar o real e conceder um antecipado aviso de incêndio: pode ser fatal!