Opinião

Controle das condutas dos agentes públicos em combate à Covid-19

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21 de abril de 2020, 9h29

Já não escapa ao conhecimento de qualquer cidadão médio que é vivenciado, atualmente, um estado de emergência de saúde pública causado pelo novo coronavírus (Covid-19). Mesmo aqueles que encaram com maior resistência a crise atual possuem a ciência de que há um novo vírus, com alta transmissibilidade e com potencialidade de levar a óbito os infectados.

Fato é que, para enfrentamento da situação atípica que ora se vivencia, tem-se demandado dos agentes públicos uma série de medidas. A necessidade de agir prontamente e de forma eficaz não raramente poderá tornar necessário que sejam adotadas medidas que se submeterão, posteriormente, a controle.

O controle de suas condutas, entretanto, não poderá ser motivo de medo, ao agente administrativo, de agir. Em muitos casos, a observância à juridicidade se mostrará impossível, mas o não agir será muito mais desastroso. Nessas situações, a pungência da necessidade real poderá tornar necessária certa preterição do ordenamento jurídico.

Tais situações deverão ser consideradas pelos órgãos de controle que, analisando a conformidade com o ordenamento jurídico das condutas da Administração Pública, de seus agentes e, mesmo, de particulares que com ela se relacionam, não poderão deixar de atentar-se à situação emergencial vivenciada e às particularidades que concretamente foram enfrentadas para combate-la.

O artigo 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, reformada pela Lei nº 13.655/2018, apresenta, entre seus artigos 20 e 30, normas que funcionam como verdadeiros faróis para os operadores do Direito Administrativo, positivando vetores de interpretação e aplicação das normas que orientam a gestão pública, a fim de aprimorá-las e atualizá-las. Destaca-se, aqui, o artigo 22.

Extrai-se, sobretudo, do seu caput e do § 1º que o artigo 22 da LINDB tem a intenção de tornar o Direito Administrativo mais contextualizado, ligado aos fatos e, portanto, menos idealista. Com efeito, as vicissitudes do mundo concreto, as dificuldades enfrentadas pelas Administrações Públicas, bem como a imprevisibilidade de certos eventos, podem ser totalmente diferentes daquelas idealizadas pelo legislador. Assim, na concretização daquilo que abstratamente foi legislado seja para prática de atos administrativos ou para o posterior controle destes —, as circunstâncias envolvidas deverão ser consideradas [1].

O dispositivo consagra normativamente, portanto, a necessidade de que o controlador se atente à realidade, encare as dificuldades enfrentadas pelo agente público [2]. É necessário, portanto, atenção a possível escassez de tempo que dispunha o gestor quando da prática do ato controla, aos recursos que dispunha (inclusive orçamentários), a mão de obra disponível, entre outros fatores. É o que o legislador classificou como obstáculos e dificuldades reais.

Em matéria de controle, em especial, é necessário perceber que a pena não é um fim em si mesmo, não podendo, portanto, ser aplicada como uma simples resposta ao descumprimento da regra [3]. As fiscalizações e sanções administrativas são, antes, um instrumento a favor da conformação da conduta dos particulares (agentes públicos ou não) a fim de que se evite resultados atentatórios ao interesse público [4].

Nesse cenário, punir é apenas uma das formas de dissuadir e disciplinar[5]. Contudo, não raro o que se vislumbra das instâncias de controle é aplicação direta da pena máxima aplicável ao caso sob controle, sem qualquer atenção a circunstâncias do caso concreto que possam atenuar a sanção [6] ou mesmo excluir a sua necessidade.

E depois que a pandemia passar?
Uma preocupação que com certeza já reside nos pensamentos de uma grande parcela dos agentes públicos é: "E depois que a pandemia passar, como os órgãos de controle irão agir perante as condutas que adotei para o combate da situação de emergência pública causada pelo coronavírus?".

Como já introduzido, invariavelmente, no contexto atual, os gestores públicos estão praticando e irão continuar precisando praticar condutas irregulares, ao menos a partir de um ponto de vista ortodoxo.

Ao fim da pandemia, outrossim, tais gestores estarão sendo submetidos ao crivo das instâncias de controle, que precisarão estar atentas às dificuldades do período. Sob a luz do artigo 22 da LINDB, sobretudo de seu § 1º, o controle a ser realizado sobre os atos administrativos praticados no contexto do enfrentamento da crise de saúde pública deve considerar os obstáculos e as dificuldades reais do gestor que o praticou.

É possível antecipar ao menos duas situações que poderão ser enfrentadas: 1) problemas relacionados à interpretação da norma; e 2) problemas relacionados ao descumprimento de procedimentos ou requisitos normativos.

No campo do Direito Administrativo, não raro se encontram normas com textura aberta, que se valem de conceitos jurídicos indeterminados como "emergência", "adequação" ou "melhor oferta", que precisão ser densificadas pela Administração diante do caso concreto. Não raro, entretanto, o conceito concreto extraído da norma pelo gestor público no momento de agir se diferencia daquele extraído posteriormente pelo controlador.

De forma exemplificativa, é possível ilustrar uma situação que tem ocorrido em diversas Administrações Públicas brasileiras. No intuito de efetivar as políticas de isolamento social e, ao mesmo tempo, permitir a continuidade de serviços públicos, inclusive com atendimento dos cidadãos, alguns gestores tem-se utilizado da hipótese de dispensa de licitação do artigo 4º da Lei 13.979/2020 [7] para contratar diretamente a compra de aparelhos celulares. A medida poderá ser imprescindível para que servidores públicos possam, atuando em home office, continuar a atender ao público.

Assim, em um primeiro momento, pode-se imaginar que a compra de celulares para um determinado órgão público em nada irá contribuir ao combate da situação emergencial que ora se enfrenta. Tal poderá ser a interpretação do órgão de controle. Contudo, uma vez contextualizado, nota-se que a interpretação realizada pela Administração contratante é razoável, merecendo o respeito do controlador.

A contextualização imposta pelo artigo 22 da LINDB exige do controlador que, notando haver, no caso concreto, uma série de interpretações razoáveis para a indeterminação jurídica, considera todas elas como lícitas, ainda aquela que não seja a que entenda por mais correta [8].

Por vezes, entretanto, o gestor público encontrar-se-á em uma situação em que o descumprimento da norma legal será inevitável. Com efeito, às vezes a necessidade pública a ser atendida é tão urgente que não será possível cumprir, em sua inteireza, os procedimentos ou requisitos normativos para a conduta que precisaria cumprir para a prática da conduta adotada, seja por ausência de tempo hábil para tanto, seja pela ausência de recursos, não apenas financeiros, mas de mão de obra, de equipamentos necessários, etc.

Assim, pode-se representar, ilustrativamente, que um determinado município se depare, repentinamente, com um grande número de cidadãos infectados pelo coronavírus. Não dispondo em seus quadros de médicos suficientes para atendimentos do alto número de pacientes que padecem com a Covid-19, veem-se, o prefeito e o secretário de Saúde, em situação em que precisam contratar, em caráter emergencial, mão de obra que supra a demanda inesperada. Em situação tal, o gestor pode não dispor de tempo para promover expedientes contratuais, mesmo os mais simplificados, como a contratação de médicos por meio do Regime Especial de Direito Administrativo Reda.

O mesmo poderá ocorrer com a contratação de medicamentos, ou qualquer outro bem, serviço ou insumos. Mesmo com a edição da Lei nº 13.979/2020, que possui um procedimento simplificado para contratação por dispensa de licitação para enfrentamento das crises geradas pelo vírus, não se pode excluir a possibilidade de que o gestor, na prática, encontre-se impossibilitado de cumprir suas formalidades diante da alta emergência da necessidade que se lhe apresenta.

Em tais situações, ainda que o ato administrativo sob controle seja, em tese, ilegal, é necessário que se leve em consideração as circunstâncias práticas encaradas pelo agente, e que, como previsto no § 1º do artigo 22, impuseram, limitaram ou condicionaram a sua ação. É importante, ainda, que se avalie os resultados da conduta praticada, a fim de ponderar se seria mais danoso, na prática, nada praticar, ou a pratica da conduta efetivamente adotada, descumprido determinadas formalidades legais.

Se não forem as dificuldades e os obstáculos reais vivenciados suficientes para eximir o agente de sua responsabilidade, eles devem ser considerados, minimamente, na dosimetria da sanção a lhe ser aplicada, como informa o § 2º do dispositivo da LINDB em comento.

O que não se pode, outrossim, como se tem defendido, é simplesmente perseguir a pena, como se fosse esta uma resposta automática e inescapável à irregularidade. O efeito colateral de assim entender é a inação do administrador, que se omitirá de agir para o atendimento da necessidade concreta para evitar as penas do posterior controle [9].

Condutas irregulares praticadas por particulares
É necessário, ainda, que se note que também as condutas dos particulares em relação jurídica com a Administração Pública, no atual momento, deverão ser avaliadas sob a luz do artigo 22, da LINB.

Nesse sentido, é bom que se note que o § 1º do artigo 22 da LINDB se refere a "agente" de forma que também no controle das ações dos agentes particulares (não apenas dos agentes públicos), no contexto de suas ações conformadas por normas de origem contratual ou aquelas típicas do poder de polícia administrativa, deve ser contextualizada.

Assim, é plenamente possível que contratos administrativos sofram atrasos porque sua contratada está com dificuldade de encontrar determinados insumos necessários ao cumprimento, ou porque está adotando medidas preventivas para evitar a proliferação do coronavírus e precisou reduzir sua mão de obra, ou mesmo porque se encontra essa em adaptação para o regime de home office.

Um exemplo que tem sido amplamente estudado no contexto da pandemia atual é do particular que comercializa álcool em gel e aumentou os seus valores. Em proteção aos direitos dos consumidores, órgãos e entidades protetivas estatais estão fiscalizando esses estabelecimentos e os autuando pela elevação do preço. Antes de submeter o particular a pena, entretanto, é necessário que se conheça e se considere as dificuldades que eles próprio está enfrentando com seus fornecedores, com sua mãe de obra, etc.

Ponderações e recomendações
Por fim, algumas ponderações e recomendações se fazem necessárias.

Primeiramente, é necessário entender que o que se defende aqui não é que o artigo 22 da LINDB permita que as normas jurídicas sejam completamente ignoradas. O dispositivo não é carta branca para que os agentes públicos ajam como bem entenderem.

Reconhece-se que ao lado dos gestores bem intencionados, compromissados com a situação emergencial, há aqueles que se aproveitarão destas para intencionalmente cometer irregularidades, a fim de obter vantagens indevidas para si ou para terceiros. A tarefa do controlador realmente não é, de fato, simples, contudo, não é possível criar uma solução genérica de penalizar todos os gestores, sem prestigiar os fatos concretos de cada um dos casos sob fiscalização.

A escolha do gestor, outrossim, deverá ser razoável e possuir nexo causal com o combate à situação emergencial causada pelo coronavírus. Mas, dentro do possível, o ordenamento jurídico deve ser observado o máximo possível. A legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a eficiência e os demais princípios que regem a atividade da Administração poderão ser relativizados diante das vicissitudes do caso concreto, devendo, contudo, sempre ser realizados o máximo possível, uma vez que, como ensina Robert Alexy, são mandados de otimização.

O descumprimento de qualquer formalidade legal deverá ser justificável de forma suficiente pelas dificuldades reais enfrentadas pelo gestor. Assim, imprescindível se faz que os atos sejam realizados de forma motivada, ainda que a motivação se realize apenas posteriormente, já que, por vezes, o tempo disponível para que o agente público aja pode não ser suficiente mesmo para uma formalização das razões.

É de se recomendar ainda que, se necessário for, para o gestor público ou para o particular, praticar um ato irregular, por conta dos problemas enfrentados relacionados à Covid-19, que se busque a pronta regularização da situação, sempre que possível. Assim, no exemplo anterior, se precisou a autoridade pública contratar médicos para atuar no tratamento dos infectados sem atender aos procedimentos legais, porque lhe faltaram tempo ou recursos suficientes, é recomendável que, assim que possível, promova o procedimento simplificado de contratação de Reda para substituição da mão de obra contratada.

 


[1] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre Júnior. As Normas de Direito Público na Lei de Introdução do Direito Brasileiro: Paradigmas para Interpretação e Aplicação do Direito Administrativo. São Paulo: Contracorrente, 2019. p. 76.

[2] Segundo Eduardo Jordão, o dispositivo consagra um "primado da realidade", produzido uma espécie de "pedido de empatia" do controlador com o gestor público (Artigo 22 da LINDB. Acabou o Romance: Reforço do Pragmatismo no Deito Público Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Lei n. 13.6555/2018), nov. 2018. p. 70).

[3] VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: Justificação, interpretação e aplicação. Belho Horizonte: Fórum, 2019. p. 104.

[4] VORONOFF, Alice. Op. Cit. p. 102.

[5] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras. O art. 22 da LINDB e os novos contornos do Direito Administrativo sancionador. Conjur. 25 jul. 2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-jul-25/opiniao-artigo-22-lindb-direito-administrativo-sancionador > 08 abr. 2018.

[6] NOHARA, Irene Patrícia. Resquícios Medievais no Processo Administrativo Brasileiro. In: SOUZA, Ruy Carodozo de Mello (Coord.). Temas de Processo Administrativo. São Paulo: Contracorrente, 2017, p. 133-151. p. 140.

[7] Mais sobre o assunto, ver: QUINTELLA, Luiz; GONZAGA, Júlia de Almeida. Op. cit.

[8] JORDÃO, Eduardo. Op. cit. p. 78.

[9] Cf. GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do Medo: a crise de ineficiência pelo controle. Direito do Estado, seção Colunistas, n. 71, 2016. Disponível  em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle>. Acesso em: 09 abr. 2020.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico, mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Lisboa e especialista em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.

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