Opinião

A Covid-19, a política e o STF

Autor

  • Fabrício Castagna Lunardi

    é juiz de Direito no TJ-DFT titular do Tribunal do Júri de Samambaia integrante do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito pela UnB.

21 de abril de 2020, 10h53

O país tem passado por muitas turbulências nas últimas semanas, em razão de uma situação nova, nunca antes vivenciada pela atual geração de brasileiros: um vírus com grande possibilidade de contágio e considerável taxa de mortalidade. O novo coronavírus (SARS-CoV-2) tem tomado conta do noticiário nacional e gerado impacto imensurável na vida de todas as pessoas. A sigla Covid-19 significa "Corona Virus Disease" (tradução: doença do coronavírus) e a designação "19" se refere ao ano de 2019, quando os primeiros casos em Wuhan (na China) se tornaram conhecidos. Nunca um vírus havia sido tão estudado dentro e fora do circuito de especialistas. Um mundo inteiro assombrado com a escalada da pandemia.

O alto grau de contágio e de mortalidade gerou uma grande crise e um desafio enorme aos sistemas de saúde de todos os países, na medida em que o tratamento para os casos graves exige internação em UTI e uso de ventiladores mecânicos, para o que os governos não estavam preparados, sobretudo considerando que um percentual significativo da população pode ficar doente ao mesmo tempo e não haver disponibilidade de leitos para todos. Inicialmente divulgada como uma doença que atacava pessoas idosas e com comorbidades, foram sendo também noticiadas mortes de pessoas jovens e sem qualquer tipo de doença associada.

A Covid-19 não demorou para produzir efeitos na vida das pessoas, não somente pelas incertezas e pelo medo, como também pelo fechamento dos estabelecimentos comerciais, de órgãos públicos e de todos os locais em que haja aglomeração de pessoas, gerando severo impacto econômico para empresas e aumento substancial do desemprego.

No Brasil, em ano de eleições municipais, não tardaria para que alguns políticos começassem a usar o sofrimento da população com viés eleitoral, para angariar votos pela polarização política que buscavam criar em torno do tema. Esse fato culminaria em trazer para o cenário político nacional situações inusitadas e, até então, incomuns.

No Brasil e na América Latina, o que se afirmava, nas duas últimas décadas, era a existência de um presidencialismo de coalizão, que concentra poderes nas mãos dos presidentes dos países [1], com ou sem o uso do braço militar. No entanto, o que tem se observado no Brasil, na pandemia do coronavírus, é um isolamento político do presidente pelos demais poderes da República.

Há muito tempo não se via um vice-presidente contrariar e mandar não cumprir ordem de um presidente da República, como ocorreu recentemente. No último dia 25 de março, Hamilton Mourão foi a público para desautorizar Jair Bolsonaro com relação à orientação deste, dada em pronunciamento no dia anterior, para que a população voltasse às ruas e reabrisse os comércios durante a pandemia do coronavírus. [2]

Também não havia, na história recente do país, um caso de um presidente da República decidir demitir um ministro de Estado, mas, no mesmo dia, voltar atrás por pressão dos presidentes das duas Casas Legislativas, do STF e dos militares, como ocorreu no último dia 6 de abril [3]. Era igualmente incomum ter um ministro da Saúde falando para a população não dar ouvidos ao presidente da República e mandar que as pessoas sigam as orientações dos governadores dos estados, como aconteceu neste mesmo dia [4].

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, alguns estudos criticavam a sua intromissão indevida na seara política; outros, a sua condescendência com as elites políticas. As forças e as fraquezas da Corte Constitucional brasileira foram objeto de pesquisa que fiz, durante quatro anos, e que recentemente publiquei no livro "O STF na política e a política no STF: poderes, pactos e impactos para a democracia" (Saraiva Jur, 2020). Analisei a história recente, desde 2013, e posso afirmar que nem mesmo durante o último impeachment o capital político de um presidente da República esteve tão baixo a ponto de um ministro do STF poder desautorizar e retirar previamente do chefe do Governo Federal a decisão sobre determinada política nacional, como ocorreu recentemente.

O presidente da República ameaçava editar um decreto para determinar a reabertura de estabelecimentos comerciais, contrariando as medidas mais amplas de isolamento social defendidas pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e adotadas pelos governos estaduais e municipais [5]. Então, no último dia 8, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, acolhendo pedido formulado em ação promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), proibiu o presidente da República de contrariar governadores e prefeitos na "adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras" [6].

Apesar de se tratar de um momento político, de contingências e de um contexto de restrição social absolutamente novos, causados pela pandemia de Covid-19, decisões políticas do STF não são novidade. Da mesma forma, não é novo o fato de a corte, em temas como tais, ter mais consideração de argumentos sociais, econômicos e políticos do que propriamente jurídicos. O que é absolutamente novo é o isolamento político do governante máximo do país e a forma como ministros de Estado, membros do Congresso Nacional e ministros do STF estão atuando, ao assumirem a condução política do enfrentamento da pandemia do coronavírus no país, ao lado de governos locais.

Desde a "terceira onda" de democratização que ocorreu nos países latino-americanos, aumentaram os estudos sobre o papel das cortes constitucionais na política, de modo que a tese relativa à dificuldade contra majoritária tem perdido espaço nas pesquisas da região. Aliás, pelas análises quantitativas e qualitativas que desenvolvi na obra acima citada, observa-se que há boas razões para que o governo, o parlamento e as elites políticas fortaleçam e fomentem o poder de revisão judicial da Corte Constitucional brasileira [7].

Por isso, analisar o papel e a atuação do STF na sua inter-relação com os demais Poderes Constituídos exige ultrapassar as discussões convencionais sobre ativismo judicial. Do ponto de vista dinâmico e contextualizado, as questões constitucionais que envolvem a atuação da Corte Constitucional brasileira possuem maior complexidade. Muito além do design institucional do STF, a atuação da corte na política é moldada pela estrutura de oportunidades constitucionais, pelos incentivos sociopolíticos, pelo comportamento individual e coletivo dos seus ministros e pelo conjunto de estratégias que envolvem os diversos atores no cenário político.

De outro lado, mesmo diante dos incentivos irresistíveis para que o STF atue como moderador de arroubos na política que desafiam instituições e a própria saúde pública, é preciso sempre se atentar para os riscos da judicialização da política, a fim de que não se torne simples politização da Justiça e o Judiciário não seja transformado em apenas mais uma arena política.

 


[1] SANTISO, Carlos. Economic Reform and Judicial Governance in Brazil: Balancing Independence with Accountability. In: GLOPPEN, Siri; GARGARELLA, Roberto; SKAAR, Elin (Org.). Democratization and the Judiciary: The Accountability Function of Courts in New Democracies. London: Routledge, 2005. p. 117-143. p. 121.

[3] MAIA, Gustavo; TRINDADE, Naira. Bolsonaro decide demitir Mandetta, mas volta atrás. O Globo, 6 abr. 2020. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-decide-demitir-mandetta-mas-volta-atras-24354357>. Acesso em: 9 abr. 2020.

[4] ARCANJO, Daniela; CANCIAN, Natália. Entenda um a um os recados de Mandetta a Bolsonaro no anúncio do 'fico' no governo. Folha de São Paulo, 7 abr. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/entenda-um-a-um-os-recados-de-mandetta-a-bolsonaro-no-anuncio-do-fico-no-governo.shtml>. Acesso em: 9 abr. 2020.

[5] MARTINS, Thays; PHELIPE, André. Bolsonaro diz que cogita reduzir isolamento social por meio de decreto. Correio Braziliense, 2 abr. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/04/02/interna_politica,842024/bolsonaro-diz-que-cogita-reduzir-isolamento-social-por-meio-de-decreto.shtml>. Acesso em: 9 abr. 2020.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 672. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Decisão Liminar. Julgado em 8 abr. 2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf>. Acesso em: 9 abr. 2020.

[7] LUNARDI, Fabrício Castagna. O STF na política e a política no STF: poderes, pactos e impactos para a democracia. São Paulo: Saraiva Jur, 2020.

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