Opinião

Sete passos para começar a colocar ordem no caos

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21 de abril de 2020, 9h19

Os impactos da pandemia da doença Covid-19 são evidentes, trágicos e de propagação assustadoramente rápida. Em um primeiro momento, é natural que nossa reação, ditada pelo espanto e sentido agudo de urgência, seja mais intuitiva e reflexa do que refletida e ponderada. E isso em todos os planos, desde aquele prosaico, de nossas vidas cotidianas e atitudes pessoais, até o institucional. Entre um e outro, situa-se o universo dos contratos e, aí, o microcosmo das concessões de serviços públicos.

O cenário que se desenha para tais contratos é pouco animador. Ainda sem saber ao certo o que está acontecendo e sem saber o que acontecerá, assistimos a uma avalanche de notificações e comunicações declarando genéricas ocorrências de "caso fortuito", "força maior", "fato imprevisto", tudo para "prevenir direitos" ou mesmo para postular a aplicação de cláusulas cujos efeitos ainda nem temos condições de aferir. Já se perfilam também, no mundo das atividades reguladas, pedidos de auxílio econômico, muitos sob as vestes de "reequilíbrio econômico-financeiro".

É compreensível que assim seja neste confuso momento inicial, mas muito em breve será preciso lidar com as inevitáveis sofisticações e complicações próprias dos juristas e dos tribunais. Por mais exasperantes que às vezes sejam as distinções e teorias de que o Direito é feito, elas permearão os debates sobre (re)negociações, revisões e resoluções de contratos, e em especial quando for invocada a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro.

Com o objetivo de lançar um pouco de ordem e clareza no trato do tema, vamos explorar superficialmente sete tópicos em torno dos quais orbitará uma parte das discussões jurídicas relativas à pandemia e seus efeitos nos contratos de concessão. Esses tópicos podem ser vistos como passos metódicos a serem dados para avaliar, ao menos de modo aproximado, a situação em que se encontram as partes desse negócio jurídico: concedente, concessionário e, também, o usuário (por vezes tido como sujeito estranho à concessão).

A apresentação que se segue, além de sumária, é idealizada. E isso por duas razões. Primeiro porque os diferentes tópicos aparecem isolados e destacados dos demais, como se cada passo fosse algo perfeitamente identificável e separável dos outros. Na prática, sabemos que não é assim: o trato desses temas ocorre de modo simultâneo e a solução dada para um deles não raro exerce influência sobre os demais. Em segundo lugar, a apresentação é idealizada porque é certo que, à vista da magnitude e abrangência da pandemia, dos desdobramentos vindouros, da natureza complexa das concessões e da notória dificuldade que enfrentamos para obter informações precisas e atualizadas, a tarefa de realizar projeções, estimativas, cálculos e mesmo de construir uma narrativa completa e coerente do que se passa no contrato é algo marcado pela incerteza e incompletude. Por outras palavras, é difícil e será sempre precário posicionar-se sobre cada um dos passos indicados.

Reconhecer, porém, que a realidade é mais complicada do que sua narrativa não pode ser obstáculo a que se busque relativa precisão analítica, por meio de uma abordagem metódica. Clareza e método não conflitam com a tomada de decisões concretas tempestivas e sob incerteza, muito antes pelo contrário. À medida que formos voltando à (nova) normalidade, as inevitáveis disputas irão cobrar fundamentação e capacidade crítica dos atores, sejam eles reguladores, concessionários ou mesmo consumidores.

Primeiro passo: delimitar o universo
Assistiu-se, ao longo dos últimos trinta anos, em muitos setores regulados, a uma verdadeira revolução normativa. Em quase todos eles, uma diretriz fundamental cuja correção jurídica não será discutida aqui presidiu a reforma: reduzir ao máximo a incidência do regime de serviço público e ampliar a configuração da atividade como privada. E isso com todas as consequências que pudessem advir daí, entre elas a ampliação do espaço para a prestação competitiva da atividade e a consequente redução da carga regulatória.

A materialização ou face visível dessa diretriz estava nos diferentes títulos jurídicos que habilitariam o privado a realizar a atividade: deu-se grande ênfase ao instituto da autorização e, em alguns setores, à concessão de uso de bem público em contraposição à concessão de serviço público.

Pois bem: um dos elementos distintivos dessa última figura em relação às outras está, justamente, na proteção que é dispensada ao privado quando da ocorrência de certos eventos ao longo do prazo do contrato. Diz-se que é próprio da concessão de serviço público e não da autorização, por exemplo receber por parte do ordenamento jurídico uma intensa tutela da equação econômico-financeira, a bem da continuidade do serviço (e da proteção à confiança do empresário privado).

Essa equação e sua proteção podem ser configuradas de modos distintos, conforme as disposições de cada contrato e as especificidades de cada serviço. De outro lado, não se está negando a priori às autorizações algum grau de proteção em face de eventos futuros. Mas a extensão, a profundidade e o grau dessa proteção serão diferentes. A distinção entre concessionários de serviços públicos e os demais sujeitos regulados preserva os princípios que orientaram as reformas setoriais. Trata-se de prestigiar a dicotomia fundamental também na esfera de alocação de riscos.

Segundo passo: identificar o bem jurídico
De modo muito impreciso, costuma-se falar de "equação" ou "equilíbrio econômico-financeiro" da concessão, sem maiores especificações. Essas expressões pretendem cobrir o que se passa em todos os contratos administrativos, desde aqueles mais simples regidos pela Lei 8.666/1993 com sinalagma singelo e de curta duração até as complexas e duradouras Parcerias Público-Privadas reguladas pela Lei 11.079/2004 (sem esquecer as concessões da Lei 8.987/1995).

Normalmente, as lições construídas para os primeiros negócios transferem-se, sem maiores reflexões, para os segundos. Fala-se de uma "balança" cujos pratos devem manter o equilíbrio fixado quando do início da concessão. De um lado, os "benefícios", ou "vantagens"; de outro, os "ônus" ou "desvantagens". Outra alegoria usada é a da equação matemática, com o sinal de igualdade a separar as variáveis positivas daquelas negativas. A essas metáforas simplórias agregam-se vagas considerações sobre áleas. Conquanto intuitivas e de fácil apreensão, essas imagens pouco ou nada indicam acerca do que, exatamente, deve-se tutelar a título de equilíbrio econômico-financeiro.

A doutrina mais moderna vem chamando a atenção para o caráter infinitamente mais intrincado do arranjo econômico das concessões. No lugar da equação matemática do um-por-um, ou da balança equilibrada com régua, alude-se a uma contraposição em que temos, de um lado, certa matriz de riscos desenvolvida e positivada no contrato, conjugada com a exigência, também estipulada no contrato, de determinados padrões de serviços; de outro lado, temos um bem determinado regime de remuneração. Não são, pois, números que se enfrentam face a face, mas posições jurídicas (e mesmo expectativas juridicamente fundadas) que envolvem atividades sob risco (prestação do serviço e respectivo pagamento).

Esse modelo, mais aderente à realidade, pode ser concretizado de mil maneiras e refinado até o casuísmo, a depender da qualidade da regulação e do contrato. Como quer que seja, impõe-se deixar de lado a fácil generalização e identificar, exatamente, o que se há de proteger, em cada caso concreto, em face dos eventos que abalam o equilíbrio econômico-financeiro assim concebido.

Terceiro passo: a necessária identificação do evento cuja consequência pretende-se tenha abalado a economia do contrato
Genéricas menções à pandemia podem ser aceitas para indicar o campo geral em que o problema se apresenta, mas são insuficientes para produzir efeitos jurídicos.

É preciso substituir a invocação vaga por uma adequada identificação da cadeia de eventos que se estende desde o fato originário (a disseminação do vírus e/ou a doença por ele causada) até a consequência concreta que se verificou no contrato. Isso porque, entre a doença e o desalinhamento do negócio, podem advir atos estatais gerais e abstratos (leis, decretos, portarias, etc.), atos administrativos individuais e concretos (dirigidos ao concessionário, seus colaboradores, contratantes, etc.), atos de fornecedores e colaboradores e mesmo ações de terceiros que não possuem relação jurídica com o concessionário.

O correto exame de pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro requer uma adequada identificação e coordenação de causas e eventos. Nem todos os acontecimentos derivados "da pandemia" receberão o mesmo tratamento jurídico na matriz de riscos da concessão. Por exemplo, as consequências jurídicas para o concessionário que teve seus funcionários contaminados pela Covid-19 não serão necessariamente as mesmas aplicadas ao concessionário que sofreu uma queda de receita em virtude da determinação de paralisação de atividades econômicas pelo poder público, e poderão ser ainda distintas as consequências jurídicas para o concessionário que amargou uma redução da demanda em virtude de uma espontânea paralisação de atividades de seus usuários em local que não se encontra sob qualquer restrição. A solução dependerá, em boa medida, do que disser o contrato; para alcançá-la, contudo, é essencial analisar o caso concreto em suas especificidades. Em síntese, é necessário obter uma precisa identificação do(s) evento(s) que se pretende tenha(m) tido consequências sobre a economia do contrato.

Quarto tópico: dimensionamento dos impactos econômicos do evento e adequada tradução deles no programa contratual
Esse ponto é, talvez, o que encerra maiores dificuldades, considerando-se a amplitude da pandemia, o caráter dinâmico dos acontecimentos e a complexidade inerente aos contratos de concessão.

De qualquer modo, não basta que o consumidor perceba uma genérica "dificuldade de pagar a tarifa", ou que o poder público em uma PPP patrocinada experimente uma "brutal falta de caixa", ou que o concessionário sofra um "severo abalo econômico". Sob a perspectiva do concessionário (e, depois, do regulador), as consequências empíricas (econômicas, técnicas, etc.) do evento devem ser levadas ao contrato e ali traduzidas juridicamente, isto é, transpostas para as cláusulas da concessão e, mais ainda, para o seu rol de direitos e obrigações. Cumpre identificar, com o apuro possível, quais foram as prestações (principais e acessórias) que restaram afetadas; deve-se ainda apontar se tais prestações foram atingidas total ou parcialmente, e com que intensidade. Isso é fundamental para que se possa avaliar natureza, dimensão e intensidade de um desequilíbrio. De nada adianta apontar exatamente o que se protege (primeiro passo) se depois formos imprecisos no cálculo do estrago.

Ainda que seja difícil aferir o exato impacto da Pandemia sobre o contrato, e mesmo que, preliminarmente, não se possa chegar senão a uma noção aproximada e pontual desse impacto, podemos desde já deixar um alerta: deve-se tentar evitar comportamentos oportunistas de qualquer uma das partes, que em tese poderão aproveitar o ensejo criado pela pandemia para contrabandear problemas que, na verdade, estão relacionados a outras causas e circunstâncias. Por esse motivo, determinações gerais e abstratas veiculadas, por exemplo, em leis de "reequilíbrio" devem ser vistas com cautela.

Em resumo: à conta da pandemia vai debitado apenas o que é da conta da pandemia, e nada mais. Essa conta deve ser o mais possível discriminada, transparente e devidamente apresentada à luz do específico contrato de concessão de que se cuida. O papel do regulador, aqui, é crucial.

Quinto tópico: qualificação jurídica do fato e imputação de suas consequências aos diferentes sujeitos
Identificado o fato e delimitadas as suas consequências econômicas e jurídicas, segue-se a sua leitura tendo por pano de fundo os institutos e as figuras da teoria geral dos contratos (administrativos) e, sobretudo, do próprio contrato de concessão.

Aqui entram considerações sobre "previsibilidade vs. imprevisibilidade", "risco próprio do negócio vs. risco estranho ao contrato", "capacidade de controle ou mitigação vs. absoluta necessidade e incontrolabilidade", etc. Essas características empíricas permitirão a compreensão jurídica dos eventos e a correta distribuição de suas consequências.

A qualificação jurídica deve apoiar-se em duas fontes. Primeira: o entendimento "extracontratual" (doutrinário, jurisprudencial) de conceitos da teoria geral dos contratos e da responsabilidade civil, tais como "caso fortuito", "força maior", "fato do príncipe", "álea ordinária", "álea extraordinária", etc. Segunda: a específica disciplina estabelecida no contrato que pode variar significativamente em relação às noções gerais. Como já referido, toda concessão possui, explícita ou implicitamente, uma matriz de risco em que se encontra estabelecido, com diferentes graus de detalhamento, um conjunto de eventos que podem desencadear consequências capazes de alterar (para o bem ou para o mal) o equilíbrio do contrato de concessão. Impende, portanto, acomodar o evento a essa previsão.

Nesse passo, é possível antever uma dificuldade: em algumas concessões, o modo de prever e discriminar riscos não se vale apenas de um único critério, mas, ao menos, de dois que se sobrepõem de modo pouco claro. Os eventos ora são elencados com base a considerações materiais ou de "zona" (risco de demanda, risco de projeto, risco de mudanças no contrato, risco de medidas fiscais, etc.), ora com base em critérios que remetem a qualidades ou atributos, tais como previsibilidade, imprevisibilidade, capacidade de mitigação ou gestão, caso fortuito, força maior, etc. Assim, contratos há em que se atribui, sem maiores qualificações, o risco de demanda ao concessionário, e, ao mesmo tempo, coloca-se a cargo do concedente o risco por força maior. Nesse caso, como lidar com hipóteses em que o risco de demanda é causado por um evento imprevisto?

Supondo-se que se tenha tido sucesso em reconduzir o fato às hipóteses do contrato, deve-se, novamente, recorrer à matriz de risco para verificar a qual dos contratantes foi imputada a responsabilidade por arcar com os impactos por ele produzidos, bem como para verificar se tal responsabilidade cobre a neutralização dos efeitos nocivos, ou apenas uma mitigação deles.

Sintetizando o acima exposto, impõe-se averiguar: I) a qualificação jurídica e o enquadramento do evento entre os diferentes tipos de riscos contratuais; II)  a identificação do sujeito que por ele responde; e III) a determinação da dimensão em que responde.

Sexto tópico: adoção dos remédios. O que fazer?
Assumindo-se que o fato foi identificado, qualificado, enquadrado na matriz de risco, dimensionado em suas consequências, e reconhecendo-se que cria um dever de ação a cargo de uma das partes, cabe definir como essa ação será realizada, isto é, quais serão os mecanismos utilizados para neutralizar ou mitigar a(s) consequência(s) do evento infausto.

No contexto do contrato de concessão, há de se ver se é o caso de revisar o contrato para manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, ou de extingui-lo, visto serem essas as consequências possíveis.

Na primeira hipótese, prima facie preferível, cumpre tomar em consideração as possibilidades de revisão que estão à disposição das partes revisão de preços ou tarifas, de quantidades, de qualidade da prestação, de prazos, auxílios econômicos, etc. Na segunda hipótese, para além da dissolução do vínculo, existe também a disciplina de compensações financeiras devidas de parte a parte, indenizações por investimentos realizados, etc.

Dado o ineditismo da situação trazida pela pandemia, mais do que nunca serão exigidas boa-fé, transparência e colaboração entre as partes para que possam ser encontrados os mecanismos apropriados ao equacionamento dos problemas que surgirão para os envolvidos na concessão concessionário, poder concedente e consumidores.

Sétimo tópico: medidas de cautela diante da crise e a possível configuração de uma 'dupla ou tripla onerosidade'
Ainda que todas essas etapas tenham conduzido à conclusão de que é legítimo exigir alguma providência a cargo de uma das partes do contrato, cumpre atentar para o seguinte: a parte beneficiada pela providência deve estar adimplente em face do contrato (antes da ocorrência do evento) e deve ainda ter procurado mitigar os efeitos do infortúnio. Caso contrário, essas exceptiones podem ter por consequência a exoneração do obrigado à reparação, parcial ou totalmente.

Para arrematar, impõe-se fazer um último registro sobre a peculiaridade da situação presente: diferentemente de muitas outras circunstâncias anormais reguladas pelo direito e que estão na base do funcionamento do que se poderia chamar de "institutos jurídicos normais para lidar com anormalidades" , o evento pandemia afeta todos os sujeitos envolvidos na concessão e, mais importante, afeta-os de um modo tal que resulta extremamente complexo identificar quem, entre eles, sofreu o maior abalo. Se o concessionário teve frustrada suas legítimas expectativas diante do contrato, o consumidor também ficou em posição substancialmente alterada em face do fornecimento do serviço público objeto da concessão; algo semelhante se pode dizer em relação ao poder público. Isso mostra que se está diante de uma situação sui generis. Normalmente, resta claro que o evento imprevisto atinge uma das partes de modo mais intenso do que a outra. No caso com que estamos lidando, isso talvez não seja o caso.

Os tradicionais mecanismos de regulação da anormalidade podem ser insuficientes para tratar do problema, ou apresentar funcionamento diferente daquele costumeiro. A situação atual suscita discussões sobre a possibilidade de revisão dos próprios mecanismos de revisão e distribuição de áleas do contrato. Complexo, certamente. E desafiador.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Souto Correa Advogados e coordenador da área jurídica do Projeto Monitor Regulatório Covid-19, iniciativa do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (CERI da Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ).

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