Direito em pós-graduação

A natureza jurídica da pandemia da Covid-19 como um desastre biológico

Autor

  • Délton Winter de Carvalho

    é pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres University of California Berkeley EUA (com bolsa CAPES); doutor e mestre em Direito Unisinos; professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS nível Mestrado e Doutorado.

21 de abril de 2020, 8h00

ConJur
1. O emergir das doenças zoonóticas
Segundo a OMS, os coronavírus são zoonóticos1, o que significa que são transmitidos de animais para pessoas. Já em 2016, em publicação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente sobre as questões e problemas ambientais globais emergentes, esta descreveu um “aumento mundial no surgimento de doenças e epidemias, particularmente de zoonoses – doenças que podem ser transmitidas entre animais e humanos.” 2 As doenças zoonóticas são constantemente associadas a mudanças ou a distúrbios ecológicos3, numa relação direta entre a degradação dos ecossistemas e o surgimento e a difusão dos patógenos da vida selvagem para humanos.4 Aproximadamente 60% de todas as doenças infecciosas em humanos tem origem zoonótica5, havendo, em média, uma nova doença infecciosa surge em humanos a cada quatro meses.6 Nos anos recentes, houve o surgimento de várias doenças zoonóticas, tais como a AIDS, o Ebola, a gripe aviária, a MERS, a SARS, o Zika vírus, entre outras. Portanto, as zoonoses são verdadeiras ameaças ao desenvolvimento econômico, à integridade dos ecossistemas, assim como ao bem-estar animal e humano.7 Apenas na última década, os custos diretos tidos em medidas de resposta e controle ao surgimento de zoonoses foram na monta de U$ 20 bi, enquanto os indiretos chegaram a incríveis 200 bi.8

2. A Pandemia da Covid-19
O surgimento de um novo vírus, primeiro identificado, em Wuhan na China, em Dezembro de 2019, é o responsável pela disseminação da doença denominada Covid-19, que pode causar diversos sintomas, sendo o mais grave o desenvolvimento de doença respiratória grave. Após ocasionar as primeiras mortes e se espalhar rapidamente em nível global, a Covid-19 foi, primeiro, declarada como Emergência de Preocupação Internacional, em 30/01/20, para, em 11/03/20, ser declarada como Pandemia pela Organização Mundial de Saúde.9 Enquanto este artigo está sendo redigido, a Covid-19 já infectou 1.182,827 pessoas e levou a óbito 63.924 pessoas ao redor do mundo.10 Infelizmente, quando este artigo estiver sendo lido os valores já serão outros. Após o primeiro caso diagnosticado no país, em 26/02/202011, o Brasil já soma 9.391 infectados e 376 mortos, como números oficiais.12

3. Sentido jurídico de desastres e a Covid-19
Como já tivemos a oportunidade de afirmar13, a formação do sentido de desastres encontra-se numa relação semântica pendular entre: (i) causas e (ii) consequências altamente específicas e complexas, convergindo para a descrição de fenômenos socioambientais de grande apelo midiático14 e irradiação policontextual (econômica, política, jurídica, ambiental) capazes de comprometer a (iii) estabilidade do sistema social. Os desastres consistem, conceitualmente, em cataclismo sistêmico de causas que, combinadas, adquirem consequências catastróficas.

(i) Uma concepção dominante de catástrofe nos remete aos impactos humanos e sociais ocasionados pela natureza15, tais como terremotos, tornados, incêndios. Esta concepção naturalística de catástrofes tende a vincular os desastres a eventos naturais desencadeadores de danos humanos e à propriedade, dotados estes de grande magnitude. Subjaz a esta noção mais tradicional de desastres, uma distinção cartesiana entre homem/natureza, concebendo desastres como aqueles eventos naturais, não habituais e de intensidade irresistível16.

No entanto, a evolução tecnológica e científica da Sociedade Contemporânea ocorrida, principalmente, após a industrialização, desencadeou a ampliação da capacidade de intervenção do homem sobre a natureza, havendo, em quase todos desastres denominados naturais, algum fator antropogênico17, o que frequentemente torna as fronteiras entre estes conceitos turvas. Apesar de tais dificuldades conceituais, para fins didáticos, os desastres são constantemente descritos e classificados segundo suas causas, como “naturais”, mistos ou antropogênicos. Os desastres naturais são aqueles decorrentes imediatamente de fenômenos naturais, atribuíveis ao exterior do sistema social, sendo frequentemente classificados em categorias de desastres geofísicos, meteorológicos, hidrológicos, climatológicos e biológicos18. Entre os exemplos de desastres biológicos, encontram-se as epidemias e as infestações de insetos19.

Note-se, portanto, que as pandemias são frequentemente passíveis de se configurarem em desastres biológicos, geralmente sob a classificação de naturais, em dicotomia aos desastres antropogênicos, com as devidas ressalvas já observadas aqui neste texto sobre o critério da “causalidade natural”20. Em suas especificidades, este consiste em um verdadeiro desastre ao sistema de saúde pública mundial.

(ii) No que diz respeito à segunda dimensão constitutiva do sentido de desastre, há um destaque para as consequências de um evento para o seu enquadramento como desastre. Os desastres são constantemente descritos como eventos que acarretam perdas de vidas humanas, saúde pública, de propriedades ou mesmo ambientais. A UNDRR, responsável pela uniformização conceitual em nível internacional, descreve desastre como “uma perturbação grave do funcionamento de uma comunidade ou sociedade em qualquer escala devido a eventos perigosos que interagem com condições de exposição e capacidade, levando a um ou mais dos seguintes itens: perdas e impactos humanos, materiais, econômicos e ambientais.”21 Importante destacar que o sentido de desastre não se refere a um plano individual, mas diz respeito a eventos que atuam no plano da sociedade (societal disasters), geralmente entendidos como eventos de grandes perdas para um número substancial de pessoas e bens22.

Para o Centre for Research on the Epidemiology of Disasters, desastre é a situação ou o evento que supera a capacidade local, necessitando um pedido de auxílio externo em nível nacional ou internacional, bem como um evento imprevisto e, frequentemente, súbito, que causa grande dano, destruição e sofrimento humano23. Para o referido centro de pesquisa da Universitè Catholique de Louvain – Belgium, ao menos um dos critérios que seguem deve ser preenchido para a configuração de um evento danoso à condição de desastre: (a) 10 ou mais mortes humanas (efetivas ou presumidas); (b) pelo menos 100 pessoas atingidas (necessitando de comida, água, cuidados básicos e sanitários; desalojados e feridos); (c) ter sido declarado estado de emergência; (d) ter havido um pedido de ajuda internacional24.

Os números da Covid-19 são capazes de demonstrar, sem a necessidade de maior aprofundamento, que esta se enquadra como desastre, também a partir da análise de sua intensidade, superando não apenas o número de óbitos (a), mas o número de atingidos (b), como também, a declaração de Estado de Emergência (d). Não bastassem todos estes “atributos”, a presente pandemia tem um gravíssimo efeito colateral econômico.

(iii) A análise sistêmica dos desastres demonstra, por sua vez, o fato desses se tratarem de fenômenos dotados de alta complexidade e constituídos por causas multifacetadas e consequências graves. A interação entre estes fatores ressalta a relevância de uma análise sistêmica de tais fenômenos para a formação de seu sentido. Sistemicamente, os desastres são provenientes de circunstâncias naturais, tecnológicas ou sociopolíticas. Esta combinação de fatores exógenos e endógenos ao sistema social, é capaz de ocasionar a perda de sua estabilidade sistêmica. O comprometimento da estabilidade sistêmica repercute, assim, na quebra das rotinas coletivas inerentes às comunidades, na sociedade e na necessidade de medidas urgentes (e, geralmente, não planejadas) para gerir (restabelecer) a situação25. Os desastres são fenômenos extremos capazes de atingir a estabilidade sistêmica social, num processo de irradiação e retroalimentação de suas causas e efeitos policontextualmente (econômicos, políticos, jurídicos, científicos).

Em nível de Direito Internacional dos Desastres26, a perda da capacidade de resposta ao evento em face de uma desestabilização sistêmica também compõe o conceito de desastres proposto pelo Projeto de Artigos para a Proteção de Pessoas em Eventos de Desastres da Comissão de Direito Internacional da AGNU.27 O sistema normativo brasileiro adota uma descrição conceitual de desastres também a partir de uma simbiose entre os três elementos acima descritos (causas, consequências e estabilidade).28 A perda da estabilidade sistêmica também é uma constante na conceituação dos desastres, representada, no Direito brasileiro, pelo institutos da decretação de situação de emergência29 ou de estado de calamidade pública30.

Note-se inevitável, aqui também, considerarmos a Pandemia causada pelo novo coronavírus como um verdadeiro desastre, tendo este desencadeado uma desestabilização social sistêmica, o que redundou em decretações generalizadas (em nível nacional, estadual e mesmo municipal) de Situação de Emergência e de Estado de Calamidade. Apenas para fins de exemplo de tal situação destacam-se a declaração, em nível federal, de Emergência em Saúde Pública 3132 e do Estado de Calamidade Pública33.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


1Disponível em https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf, p. 08. Acesso em 03/04/20.

2 UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP 2016 Report: Emerging Issues of Environmental Concern. Nirobi: UNEP, 2016. p. 04.

3 Idem, ibidem. p. 19.

4 Idem, ibidem. p. 04.

5 Idem, ibidem. p. 18; WOOLHOUSE, M.E.J. and GOWTAGE-SEQUERIA, S. Host range and emerging and reemerging pathogens. Emerging Infectious Diseases, 11, 2005. p. 1842–1847. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3367654/ pdf/05-0997.pdf.

6 Idem, ibidem. p. 18; McDERMOTT, J. and GRACE, D. Agriculture-assocaited disease: Adapting agriculture to improve human health. In: Fan, S. and Pandya-Lorch, R. (eds), Reshaping agriculture for nutrition and health. International Food Policy Research Institute, Washington, D.C. 2012. http:// ebrary.ifpri.org/cdm/ref/collection/p15738coll2/id/126825.

7 Idem, ibidem. p. 19.

8 WORLD BANK. People, pathogens and our planet: Vol. 1. Washington, DC: WB, 2010. Disponível em http://documents.worldbank.org/ curated/en/2010/01/12166149/people-pathogens-planet-volume-one- towards-one-health-approach-controlling-zoonotic-diseases. Acesso em 04/04/20.

9Informação prevista em https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020. Acesso em 05/04/20.

10 Informação disponível em tempo real: https://www.worldometers.info/coronavirus/?fbclid=IwAR0zkpRD_zQZb4UkziGI_Xvv75s5Q3eynf7-f9pOspxGbgHbe7OqpGBrIBI. Acesso em 05/04/20.

11 Disponível em https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus. Acesso em 03/04/20.

12 Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/03/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-3-de-abril.ghtml. Acesso em 03/04/20.

13 CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2020. p. 52-60.

14 Sugerman, Stephen D. “Roles of Government in Compensating Disaster Victims. Issues in Legal Scholarship. Symposium: Catastrophic Risks: prevention, compensation, and recovery. Article 1. Berkeley: UC Berkeley Electronic Press, 2007. p. 3.

15 Ségur, Philippe. La catastrophe et le risqué naturels. Essai de definition juridique. Revue du droit public, p. 1693 e ss.

16 Idem.

17 Farber, Daniel; Chen, Jim; Verchick, Robert. R. M.; Sun, Lisa Grow. Disaster Law and Policy. 2a ed. New York: Aspen Publishers, 2020. p. 3.

18 Vos, Femke; Rodriguez, Jose; Below, Regina; Guha-Sapir, D. Annual disaster statistical review 2009: the numbers and trends. Brussels: Cred, 2010. p. 13.

19 Tipologia esta adotada nacional e internacionalmente.

20 FARBER, Daniel. “Navegando a Interseção entre o Direito Ambiental e o Direito dos Desastres.” In: FARBER, Daniel; CARVALHO, Délton Winter de. Estudos Aprofundados em Direito dos Desastres. 2ª ed. Curitiba: Appris, 2019. p. 27-28.

21 Disponível em http://www.un-spider.org/node/7661. Acesso 05/04/20.

22 Sugerman, Stephen D. “Roles of Government in Compensating Disaster Victims.” Issues in Legal Scholarship. Symposium: Catastrophic Risks: prevention, compensation, and recovery. Article 1. Berkeley: UC Berkeley Electronic Press, 2007. p. 1.

23 Vos, Femke; Rodriguez, Jose; Below, Regina; Guha-Sapir, D. Op. cit., p. 12.

24 Idem.

25 Porfiriev, Boris N. “Definition and delineation of disasters.” In: QUARANTELLI, E. L. (Ed.) What is a Disaster? New York: Routledge, 1998. p. 62.

26 CARVALHO, Délton Winter de. Op. Cit. p. 66-76.

27 Art. 3º, desastre é “um evento de calamitoso ou uma série de eventos que resultam em ampla perda de vidas, grande sofrimento e angústia humana, deslocamento em massa ou danos materiais ou ambientais em larga escala, comprometendo seriamente o funcionamento da sociedade.”

28 Art. 2.º, II, do Dec. 7.257/10 desastre é o “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais.

29 Art. 2.º, III, do Dec. 7.257/10.

30 Art. 2.º, IV, do Dec. 7.257/10.

31 Portaria 188/20 do Ministério da Saúde que “declara Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional em decorrência da Infecção Humana pelo novo Cornonavírus (2019-nCoV).”

32 Lei 13.979/20 que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.”

33 Decreto Legislativo n. 06/20 que “reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.” Reconhece-se que apesar do Estado de Calamidade Pública ter se dado com o fim específico de aliviar o controle fiscal de gastos públicos, este também demonstra cabalmente uma perda de estabilidade inerente aos desastres.

Autores

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    é advogado, professor do programa de pós-graduação em Direito da Unisinos e pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres pela University of California (EUA) e doutor e mestre em Direito.

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