Opinião

Novo coronavírus, velha corrupção

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21 de abril de 2020, 14h44

Os jornais noticiam diariamente a triste situação causada por um novo vírus que assola o mundo inteiro. Mortes, isolamento, comércio fechado, crianças sem aula, mais mortes. A experiência de outros países nos mostra que é hora de adotar medidas excepcionais. A despeito do quadro atípico, certas cautelas são imprescindíveis [1].

Emergências em saúde pública, como a provocada pelo novo coronavírus, costumam dar azo também a episódios de corrupção. Não faltam relatos, por exemplo, sobre o desperdício de recursos com o pagamento de propinas, fraudes, conluios e superfaturamentos no combate à epidemia de ebola em países africanos [2].

No Brasil, escândalos recentemente revelados por derivações da Operação Lava Jato [3], bem como casos antigos, a exemplo da "máfia das ambulâncias" e da "máfia dos vampiros", confirmam o entendimento internacional de que a saúde pública naturalmente já é um campo propenso à ocorrência de ilícitos da espécie [4]. A pandemia da Covid-19 tende a agravar o quadro.

A corrupção em sentido amplo é usualmente definida como o "abuso do poder delegado para ganhos privados". Interpretando-se o fenômeno sob o prisma econômico, o risco de corrupção aumenta sempre que um agente público concentra poder para a prática de um ato de alocação de recursos ou benefícios escassos, especialmente se exerce tal múnus discricionariamente, em um quadro de pouca accountability.

Nesse contexto, uma emergência em saúde pública representa a tempestade perfeita. Ao mesmo tempo em que escasseia os recursos públicos (tanto financeiros quanto médico-hospitalares), ocasiona também o aumento da concentração de poder discricionário nas mãos de determinados agentes públicos, que o exercerão justamente em uma seara sobre a qual os possíveis controladores não possuem nenhuma expertise técnica. Não fosse o bastante, a urgência e celeridade impostas pelo quadro de pandemia reduzem ainda mais a já baixa efetividade dos controles internos existentes.

Sem a pretensão de esgotar as inúmeras possibilidades de corrupção no cenário que se apresenta, analisam-se aqui dois campos ilustrativos: a) a carência recursos para o atendimento médico-hospitalar; e b) o aumento no número de contratações diretas.

Em relação ao primeiro, a escassez de recursos hospitalares pode vir a criar, em determinadas hipóteses, incentivos perversos para que o atendimento em saúde seja destinado não por critérios impessoais, mas, sim, por influência financeira, política ou social, quando não por laços de parentesco ou amizade. Minorar a incidência de tais casos exige mais do que nunca que a regulação e alocação de leitos hospitalares públicos seja transparente, seguindo parâmetros técnicos, preferencialmente definidos e unificados previamente. Além disso, demanda que as unidades hospitalares que compõem o sistema de fato disponibilizem todos os seus leitos aptos a serem regulados.

Ainda em relação à carência de recursos, o aumento da demanda por insumos médicos no mundo inteiro, combinada com a reduzida oferta, cria um cenário propício à elevação de preços e até mesmo à possível formação de conluios entre os potenciais fornecedores em suas negociações com o poder público, sendo certo que é usual que cartéis em contratações públicas estejam associados também à corrupção de agentes públicos como mecanismo para facilitar a sustentação do acordo colusivo [5].

Em relação ao segundo ponto, a Medida Provisória no 926/2020, editada em 20 de março, criou hipótese temporária de licitação dispensável, que perdurará até o fim da emergência de saúde pública. O diploma flexibilizou algumas regras do regime geral de licitações, ao excepcionalmente permitir, por exemplo, em determinadas hipóteses justificadas pelo gestor, a dispensa da estimativa de preços; a contratação de empresas que hajam sido punidas com declaração de inidoneidade ou com suspensão do direito de contratar com o poder público; bem como a eventual dispensa de comprovação da regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, de cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação.

É óbvio que a Administração Pública necessita de maior flexibilidade e celeridade, com o escopo de aprimorar a sua capacidade de resposta à emergência. Todavia, o incremento do poder discricionário dos gestores públicos, justamente em uma seara historicamente já sensível, não deixa de preocupar. Embora corrupção nas contratações públicas possa ser instrumentalizada sob as mais diversas formas, a contratação direta, sem competição, é reconhecidamente um dos principais canais para o espúrio favorecimento de particulares [6].

Enfrentar o risco de corrupção nas contratações públicas não é fácil nem mesmo em cenários de normalidade. No quadro de emergência em saúde, duas diferentes linhas de atuação parecem relevantes.

Em primeiro lugar, o papel da sociedade civil pode se mostrar fundamental, especialmente em uma pandemia que está sendo combatida com quarentenas. Há de se exigir a máxima transparência e publicidade em relação às licitações e à execução contratual, disponibilizando-se ao público a maior quantidade possível de dados, a permitir a fiscalização social. Nesse sentido, é positiva a previsão do § 2º do artigo 4º da Medida Provisória nº 926/2020, que determina a disponibilização de informações na internet, devendo tal política ser interpretada e aplicada extensivamente, dentro do possível. Recentemente, a Transparência Internacional sugeriu dez elementos a serem considerados para a melhor divulgação dos dados [7], documento que pode auxiliar os gestores na implementação de boas práticas.    

Em segundo lugar, ante o possível incremento de omissões e falhas nos controles preventivos em função da necessária celeridade, tornar-se-á ainda mais importante o trabalho de auditoria e fiscalização, a posteriori, por parte dos órgãos de controle competentes. Entretanto, possíveis equívocos dos gestores, que também eventualmente aumentarão em frequência pela necessidade de pronta resposta e pela pressão por resultados, não devem ser confundidos com ilícitos dolosos ou com erros grosseiros.

Diminuir a circulação do novo coronavírus e atender aos enfermos certamente são as prioridades para o país no momento. Contudo, não se deve perder de vista que a emergência em saúde pública também aumentará antigos problemas, que precisam continuar a ser observados e enfrentados simultaneamente durante a crise.

 


[1] O autor agradece à Dra. Tatiane Lima Ribeiro pelas críticas e sugestões à versão original do texto.

[2] V. SHEPLER, Susan. “We Know Who is Eating the Ebola Money!”: Corruption, the State, and the Ebola Response. Anthropological Quarterly, vol. 90, n. 2, p. 451–473, 2017.; e SIVJAK, Boris; DUPUY, Kendra. Ebola and corruption: overcoming critical governance challenges in a crisis situation. U4 Brief. 2015.

[3] São exemplos as Operações Fatura Exposta, Ressonância, S.O.S e Unfair Play, capitaneadas pela força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro.

[4] V. SAVEDOFF, William D.; HUSSMANN, Karen. Why are health systems prone to corruption. In: TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Report 2006. Londres: Pluto Press, 2006, pp. 04-13.

[5] V. CARVALHO, Victor Aguiar de. Cartéis em licitações: concorrência, incentivos e prevenção aos conluios nas contratações públicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, pp. 10-17.; e SONIN, Konstantin; LAMBERT-MOGILIANSKY, Ariane. Collusive Market Sharing and Corruption in Procurement. Journal of Economics & Management Strategy, vol. 15, n. 4, p. 883-908, 2006, pp. 883-884.

[6] Dentre outros, v. AURIOL, Emmanuelle; STRAUB, Stéphane; FLOCHEL, Thomas. Public procurement and rent-seeking: the case of Paraguay. World Development, vol. 77, p. 395-407, jan. 2016.

[7] TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Contratações públicas em situações de emergência: elementos mínimos que os governos devem considerar para reduzir riscos de corrupção e uso indevido de recursos extraordinários. Disponível em: <https://www.transparency.org/files/application/flash/COVID_19 _Public_procurement_Latin_America_ES_PT.pdf>.

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