Opinião

A crise pandêmica e a relativização da coisa julgada material

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20 de abril de 2020, 18h07

Não há como negar que a pandemia causada pelo coronavírus ensejou na atuação do poder Público para minimizar seus efeitos, como isolamento social, restrição temporária de entrada e saída do país, locomoção intermunicipal, fechamento de portos, aeroportos e rodovias, de centros de compras, bares e estabelecimentos congêneres, igrejas e templos de qualquer culto e de todas as atividades não essenciais em que haja aglomeração de pessoas.

Com exceção das empresas exploradoras de atividades essenciais, assim consideradas no Decreto nº 12.282/2020, que regulamentou a Lei nº 13.979/2020, ou em atos de governos estaduais, a crise decorrente da pandemia do novo coronavírus leva a uma significativa restrição e diminuição na demanda de produtos e serviços.

Diante desse cenário, é inevitável que centenas e milhares de empresas sintam fortemente a retração econômica. Em face disso, emergem as mais variadas questões jurídicas e, no presente caso, as consequências geradas a partir do potencial descumprimento de acordos homologados judicialmente.

É cediço que os prazos de vencimento de acordos homologados em juízo integram a coisa julgada material, não sendo, em tese, suscetíveis de alteração por decisão judicial superveniente (CF, artigo 5º, XXXVI; CPC, artigo 508), ressalvadas as hipóteses de novação ou invalidação.

Sob outro aspecto, o prazo para o pagamento das parcelas em acordo judicial ou extrajudicial judicialmente homologado não é propriamente processual, porquanto não se trata de prática de ato no processo, mas para cumprimento de uma obrigação decorrente de relação de direito material, não obstante possa haver repercussão processual. Assim, não sendo prazo de direito adjetivo, não há falar em suspensão ou alteração dos prazos para pagamento dos acordos na linha da Resolução nº 313/CNJ.

O artigo 6º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro dispõe que se configura a coisa julgada quando a decisão judicial de que já não caiba recurso. Por outro lado, o artigo 467 do CPC considera a coisa julgada material quando não está mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Sérgio Gilberto Porto [1] diz que:

"Ares judicata reveste um conceito jurídico cujo conteúdo difere do simples enunciado de suas palavras e extrapola os parâmetros fixados pelo legislador”. (…) a coisa julgada envolve algo mais que a simples soma de seus termos, pois representa um conceito jurídico que qualifica uma decisão judicial, atribuindo-lhe autoridade e eficácia. Trata-se, em suma, daquilo que, para os alemães, é expresso por rechtskraft, ou seja, direito e força, força legal, força dada pela lei."

A coisa julgada é a própria alma do princípio da segurança jurídica, sem a qual não há ordem jurídica e geraria desconfiança nas decisões do Judiciário.

Sobre a questão, Cândido Dinamarco [2], com clareza, diz que se pode "afirmar que a coisa julgada não tem dimensões próprias, mas as dimensões que tiverem os efeitos da sentença".

O mesmo jurista assevera, ainda, que:

"Sendo um elemento imunizador dos efeitos que a sentença projeta para fora do processo e sobre a vida exterior dos litigantes, sua utilidade consiste em assegurar estabilidade a esses efeitos, impedindo que voltem a ser questionados depois de definitivamente estabelecidos por sentença não mais sujeita a recurso. A garantia constitucional e a disciplina legal da coisa julgada recebem legitimidade política e social da capacidade, que têm, de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da sentença."

Há a necessidade de se equilibrar adequadamente as exigências processuais da celeridade e da ponderação, de modo a evitar decisões injustas. Para a realização da obrigação, a Justiça deve oferecer às partes meios adequados e eficientes, considerando-se diversos fatores, como os efeitos da crise pandêmica em análise. Em outras palavras, o processo deve se valer de meios para produzir resultados estáveis para que não prejudique a Justiça e dos resultados por ela produzidos.

José Augusto Delgado [3], sobre a matéria em análise, elucida:

"O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o Estado e com o seu semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das instituições e a necessidade de se fazer cumprir o império de um Estado de Direito centrado no cumprimento da Constituição que o rege e das leis com ela compatíveis, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas, jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí decorrentes, são fatores que têm feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo da moralidade e os limites da legalidade, que afrontam princípios da Carta Magna e que teimam em desconhecer o estado natural das coisas e das relações entre os homens.
A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos fenômenos instáveis supracitados, não pode espelhar a força absoluta que lhe tem sido dada, sob o único argumento que há de se fazer valer o império da segurança jurídica."

Relativizar a coisa julgada é retirar sua imutabilidade em prol de eventual grave injustiça ou inconstitucionalidade, que, na prática, pode corresponder à ampliação das hipóteses legais para a Ação Rescisória, conforme disposto no artigo 485 do Código de Processo Civil.

A bem da verdade, o objetivo do Direito é a busca da justiça e, consequentemente, garantir aos jurisdicionados uma decisão correta e justa.

Nas palavras de Aristóteles [4]:

"Vemos que todos os homens entendem por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo; e do mesmo modo, por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e a desejar o que é injusto."

Portanto, o julgamento justo é o objetivo a ser perseguido, mesmo que nem sempre seja possível separar o conceito de Direito e justiça. As leis e as normas dão embasamento para isso, mas ainda há resistência da sociedade e na aplicação do Direito positivado de forma justa.

Toda decisão judicial deve observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, levando a concluir que não há valores jurídicos absolutos e imutáveis. Rodrigo Klippel [5] elucida:

"Mas garantir direitos fundamentais, por meio da eleição de valores essenciais à sociedade, não é uma atividade tão simples assim, visto que, em diversos casos, as demandas e problemas da vida contrapõem dois ou mais desses valores, sendo necessário que se opte pela prevalência de um ou alguns deles em face de outro(s)."

Em eventual colisão de valores e princípios fundamentais, é imprescindível o uso da técnica hermenêutica dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Carlos Maximiliano[6], com precisão, esclarece que:

"Aceitam os mestres da hermenêutica, inclusive os próprios tradicionalistas adiantados, tudo o que é possível encasar na letra do dispositivo, sob o fundamento de que o legislador assim determinaria se lhe ocorresse a hipótese hodierna, ou ele redigisse normas no momento atual; fornecem espírito novo à lei velha; atribuem às expressões antigas em um sentido compatível com as ideias contemporâneas."  

Em 11/3/2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto da Covid-19 como uma pandemia global. Como medidas de precaução contra a difusão do coronavírus, diversos setores da economia foram afetados diretamente por decisões dos governos locais, sendo obrigados a paralisar suas atividades.

O artigo 1º da Medida Provisória 927/2020 está assim redigido:

"Esta Medida Provisória dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19), decretada pelo Ministro de Estado da Saúde, em 3 de fevereiro de 2020, nos termos do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Parágrafo único. O disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no artigo 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943." (grifo do autor do artigo)

Partindo disso, o artigo 393 do Código Civil estabelece que o devedor não responderá pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado e, complementarmente, o parágrafo único traz a previsão de que esse instituto somente é aplicável se os efeitos dele decorrentes forem imprevisíveis e inevitáveis.

Neste particular, sendo reconhecida oficialmente a força maior, para que possa fazer uso de alguma das excludentes de responsabilidade civil, deverá ser comprovado o nexo causal entre o impacto causado pela pandemia da Covid-19 e o descumprimento da obrigação.

Não há como negar que estão presentes o nexo causal e o impacto causado, porquanto estão evidenciados em face da proibição de funcionamento de atividades não essenciais, como se observa, por exemplo, no Decreto nº 64.881, de 22/3/2020, do Estado de São Paulo:

Artigo 1º — Fica decretada medida de quarentena no Estado de São Paulo, consistente em restrição de atividades de maneira a evitar a possível contaminação ou propagação do coronavírus, nos termos deste decreto.
Parágrafo único
A medida a que alude o 'caput' deste artigo vigorará de 24 de março a 7 de abril de 2020.
Artigo 2º
— Para o fim de que cuida o artigo 1º deste decreto, fica suspenso:
I
o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, 'shopping centers', galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica, ressalvadas as atividades internas;
II
o consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega ('delivery') e 'drive thru'.
§ 1º
O disposto no "caput" deste artigo não se aplica a estabelecimentos que tenham por objeto atividades essenciais, na seguinte conformidade:
1. saúde: hospitais, clínicas, farmácias, lavanderias e serviços de limpeza e hotéis;
2. alimentação: supermercados e congêneres, bem como os serviços de entrega ('delivery”) e 'drive thru' de bares, restaurantes e padarias;
3. abastecimento: transportadoras, postos de combustíveis e derivados, armazéns, oficinas de veículos automotores e bancas de jornal;
4. segurança: serviços de segurança privada;
5. demais atividades relacionadas no § 1º do artigo 3º do Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020.
§ 2º
O Comitê Administrativo Extraordinário Covid-19, instituído pelo Decreto nº 64.864, de 16 de março de 2020, deliberará sobre casos adicionais abrangidos pela medida de quarentena de que trata este decreto.
Artigo 3º
A Secretaria da Segurança Pública atentará, em caso de descumprimento deste decreto, ao disposto nos artigos 268 e 330 do Código Penal, se a infração não constituir crime mais grave.
Artigo 4º
Fica recomendado que a circulação de pessoas no âmbito do Estado de São Paulo se limite às necessidades imediatas de alimentação, cuidados de saúde e exercícios de atividades essenciais."

Neste contexto, os magistrados devem estar atentos aos fatos e às circunstâncias do grave momento por que passa toda a humanidade. Assim, entendemos que há de se reconhecer a relativização da coisa julgada material, formalizada na assinatura em acordos judiciais, de modo a possibilitar a readequação das parcelas ou, ainda, suspensão temporário de seu pagamento.

 


[1] PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 4ª Ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2011, p. 56.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativização da Coisa Julgada. São Paulo : Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo  nº 55, janeiro/dezembro 2001, p. 25.

[3] DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. II Seminário de Direito Ambiental Imobiliário, realizado em São Paulo nos dias 23 e 24 de setembro de 1999. Disponível em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/ambiental3/painel4.htm.

[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. 4ª Ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991, p. 96.

[5] KLIPPEL, Rodrigo. A Coisa Julgada e sua Impugnação; Relativização da Coisa Julgada. Lumen Juris: 2008. p. 90.Juris: 2008. p. 70.

[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Interpretação do Direito. 18ª Ed. Rio de Janeiro : Revista Forense. 1999, p. 154.

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