Direito Civil Atual

Ideias para o Judiciário brasileiro em tempo de pandemia — parte I

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20 de abril de 2020, 8h00

ConJur
Em artigo recentemente publicado neste prestigioso veículo, o primeiro autor teve oportunidade de apontar o risco de grave comprometimento da atividade jurisdicional em razão dos efeitos deletérios da pandemia que nos assola. A conclusão foi uma conclamação aos advogados para que, antes da judicialização e sempre que possível, buscassem as soluções negociadas.

Reptos como esse compreensivelmente podem despertar alguma dose de ceticismo. Por incrível que pareça, apelar ao exercício consciente da cidadania pode mesmo soar ingênuo porque, ao início e ao final, as condutas individuais ou coletivas têm uma racionalidade econômica. Soa áspero, mas, forçoso convir, é uma visão realista. Portanto, e por mais que os cientistas sociais — dentre eles os juristas — possam ter (justificadas) restrições a análises feitas sob aquele enfoque, elas podem ser importantes para entender a realidade e para identificar ações concretas.

Embora sem o completo domínio dos postulados que integram a assim chamada “Análise Econômica do Direito”, arrisca-se aqui a formulação de algumas ideias que, direta ou indiretamente, têm inspiração naquela perspectiva metodológica. Algumas dessas ideias — se não todas — podem se revelar rematados equívocos; algumas poderão restar superadas tão logo consigamos resgatar as rotinas que tínhamos; algumas, talvez, possam ter alguma utilidade agora e, quem sabe, perdurar ao menos na medida em que delas possam ser extraídas lições para o futuro. Não se trata de nutrir a falsa crença de que, quando tudo isso passar (?), seremos um mundo melhor. Mas, se pudermos ao menos ter aprendido alguma coisa que possa nos ajudar, o duro sacrifício não terá sido em vão.

Cumpre registrar que o presente texto é em boa medida resultado de pesquisa, reflexões e debates ocorridos ao ensejo da disciplina de pós-graduação denominada Análise Econômica do Processo Civil: teoria dos jogos, ministrada pelos subscritores na Faculdade de Direito da USP. Conquanto a matéria não tenha sido concebida especificamente para estudar problemas decorrentes da Covid-19, os temas ali analisados podem e devem ser relacionados ao cenário que se apresenta por força da pandemia. Como tal, o texto procura dar resposta à muito louvável iniciativa da Coordenação de Área de Direito da Capes, de obter e divulgar textos com tal objetivo. Por isso, este trabalho deve ser considerado como resultante de trabalho coletivo de todos os colegas que participam daquela atividade, ora homenageados na pessoa do professor Milton Barossi Filho.

Por sua extensão, o texto será desdobrado em duas partes, publicadas em sequência.

Antes de tudo, é preciso considerar que a locução “Judiciário brasileiro” está longe de encerrar um conceito homogêneo. Não apenas pelas funções que desempenham no sistema, mas também por estarem sujeitos a regramentos diversos e imersos em realidades real ou potencialmente distintas, os diferentes órgãos jurisdicionais da federação nem sempre podem ser tratados de maneira uniforme. Para ilustrar, uma coisa é pensar na estrutura necessária para sustentação oral perante o Supremo Tribunal Federal; outra, para a mesma tarefa perante tribunais estaduais — o que é bem ilustrado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, pelo volume de casos que processa. Nessa linha, é preciso considerar as realidades e estruturas das diferentes Justiças especializadas, as diferenças entre tribunais superiores e locais, assim como entre magistrados que oficiam em tribunais e aqueles que atuam em primeiro grau.

Contudo, desde que se esteja atento a esse aspecto, as diferentes experiências de um determinado órgão — tanto mais num contexto que, de certa forma, equalizou situações — podem servir de exemplo para outras. Afinal de contas, as circunstâncias de estarmos relativamente isolados pela pandemia e de termos que recorrer a trabalho à distância, via recursos tecnológicos, são fatores que permitem alguma uniformidade porque, em última análise, da comarca mais distante ao STF, o que está em jogo é o exercício da jurisdição, para atuação do direito objetivo e solução de conflitos.

Além disso, também é preciso ter consciência de que a massa de processos que chega ao Judiciário também não tem um perfil homogêneo. Isso significa dizer que esse congestionamento não tem uma causa — e portanto, uma solução — única. Não é possível colocar em patamares idênticos problemas decorrentes, por exemplo, do acúmulo de execuções fiscais, dos cumprimentos de sentença contra a Fazenda Pública (especialmente via precatório), das controvérsias envolvendo fornecedores e consumidores em larga escala, dos litígios resultantes de grandes contratos entre grandes agentes econômicos, das questões de família e assim por diante. Mesmo sob o prisma de uma análise econômica, os pontos em comum que todos esses casos possam apresentar são quase irrelevantes diante de suas diferenças. E, já que se cogitou de ingenuidade, ingênuo mesmo — ou coisa pior — seria tratar coisas tão diferentes como um problema único.

Para ilustrar, é muito difícil dizer a repercussão que os efeitos econômicos da pandemia terão sobre o enorme acervo de processos envolvendo a Fazenda Pública, seja como autora, seja como ré.

Sob a ótica da cobrança de créditos, tudo dependerá da política governamental que se adote a respeito do pagamento de tributos — em particular a tolerância que se possa ter em relação à inadimplência, que tudo indica crescerá (agora e para além do período mais agudo da pandemia). Saber como lidar com isso não será certamente apenas um problema do Judiciário. Se a execução fiscal já era, antes da crise, um grande desafio, o porvir se afigura sombrio. Aparentemente, o que há de melhor a fazer é encontrar formas de lidar com o crescimento do inadimplemento antes que ele dê ensejo a mais uma enxurrada de demandas. Ou seja: o problema continua essencialmente o mesmo, mas talvez a crise ajude a precipitar a construção de soluções para um problema tão grave.

Por outro lado, é de se esperar que a crise repercuta negativamente sobre o cumprimento de precatórios, exacerbando a situação dramática de credores que — especialmente nas esferas estadual e municipal – aguardam pagamentos às vezes por décadas. Sob o enfoque econômico, as soluções são — e tendem a ficar ainda mais — escassas pela simples razão de que a falta de recursos da Fazenda ordinariamente não gera qualquer consequência — nem mesmo de intervenção no ente devedor se poderia cogitar, já que o interventor padeceria da mesma limitação, como já reconheceu o STF ao esvaziar esse controverso instituto. Talvez, um campo a explorar (ou incrementar, conforme o caso) fosse o de soluções em que os ativos consistentes nos créditos pudessem cumprir função econômica com maior efetividade, quer pela circulação no mercado, quer pela capacidade de levar à extinção de dívidas, quer por outros mecanismos que levassem em conta o potencial desse acervo, mesmo à míngua de efetivo pagamento pelos entes públicos. Nada disso é novo, mas também pudesse ganhar uma nova dimensão neste momento.

Fora do mundo que envolve a Fazenda Pública, as relações entre fornecedores e consumidores — especialmente as de larga escala — exigem um tratamento diferenciado. Mais do que em qualquer outro domínio, aqui não há como se cogitar de desincentivo econômico sob a forma de aumento de custos de ingresso em juízo. Mesmo em momento de crise, comprometer os avanços obtidos em matéria de acesso à justiça — nesse campo e em outros — seria um equívoco. Neste ponto, talvez mais do que em qualquer outro, a pulverização dos conflitos pode ser danosa para todos e, conforme preocupação já externada, levar o caos ao Judiciário. Por isso, sob o ângulo econômico, a melhor solução parece estar no incentivo ao tratamento coletivizado (em sentido amplo) dos conflitos e respectivas soluções; mas não apenas em juízo.

Isso deve começar pela atuação dos entes reguladores: a equilibrada e eficiente atuação das agências — pautadas por especialização e autonomia — deveria, ao menos em tese, contribuir para que uma plêiade de demandas deixasse de chegar ao Judiciário. Caberá a esse último, quiçá, rever criticamente o papel que tem até aqui desempenhado no controle desses entes administrativos: nem tolerar ilegalidades, nem substituir a avaliação tecnicamente justificada de quem tem instrumentos e atribuição legal para tanto. Se decisões judiciais simplesmente se substituírem às tomadas nas esferas regulatórias, desconsiderando análises econômicas e técnicas racionais, não poderá o Judiciário se queixar do volume de demandas que, por conta disso, nele acabem por desaguar.

Nessa mesma linha de raciocínio, é preciso estimular as formas de solução não adjudicada de controvérsias sob perspectiva transindividual. Isso pode envolver órgãos internos dos fornecedores (como é a figura do ombudsman bancário) e também os adequados representantes, que não devem cumprir apenas o papel de legitimados ativos (quiçá passivos) para demandas coletivas (em sentido amplo), mas igualmente o de protagonistas de soluções de autocomposição — naturalmente, com observância da legalidade, da impessoalidade, da transparência e da preservação do interesse público. O momento é cada vez mais propício à busca de soluções consensuais de espectro transindividual, inclusive envolvendo o Ministério Público (até mesmo em tema de improbidade administrativa, por força de recente inovação legislativa) e a Fazenda Pública (com o que, de certa forma, complementam-se as considerações feitas acima a respeito de litígios com o Estado).

Isso levará fatalmente a repensar — se não imediatamente, mas para o futuro próximo — a relação entre tutela coletiva e individual. A pura e simples subsistência da concorrência entre uma e outra, tanto mais no contexto em que vivemos, evidencia ainda mais a inconveniência de um modelo que, embora até se justificasse trinta anos atrás, hoje se revela indesejável. Em termos econômicos, a pura e simples admissão de coexistência de tutela coletiva e de demandas individuais gera um encargo que tende a ser insuportável — quando menos irracional — para o sistema, obrigado que está a, quando menos, processar cada uma das demandas individuais. E nem mesmo o modelo de julgamento de “casos repetitivos” e “precedentes” pode superar isso a curto prazo, na medida em que a uniformização da jurisprudência — num país que fez opção pela prevalência da lei federal — leva tempo; um tempo do qual não dispomos neste momento.

Aliás, isso não é um problema apenas por conta da concorrência entre tutela individual e coletiva. Na medida em que a outorga de legitimidade concorrente a diferentes representantes adequados — sem que eventualmente se reconheça o estado de litispendência pela propositura de demanda por um deles — surge a indagação: transigir com quem? A transação feita com um adequado representante garante que o agente econômico não terá que responder por pleito de outro? O problema já estava posto antes da pandemia e as dramáticas consequências do seu advento podem acelerar a busca de sua solução. Portanto, pensar em soluções consensuais é também e obrigatoriamente pensar em confiança, estabilidade e segurança das soluções negociadas.

Fora do terreno da Fazenda Pública e das relações de consumo, talvez seja possível tentar encontrar alternativas comuns a litígios civis e empresariais — não obstante, conforme já destacado, a visão homogênea de fenômenos distintos possa a levar a conclusões distorcidas.

Em termos econômicos, a ideia básica seria a de tornar o ingresso em juízo uma atitude mais responsável e, de volta ao princípio, considerar os custos envolvidos parece ser um caminho realista.

Desde logo, a ideia de condicionar o acesso ao Judiciário à prévia tentativa de conciliação ou mesmo de mediação — se pudesse ser considerada constitucional — parece ser indesejável, mormente porque já foi tentada em mais de uma oportunidade e fracassou. Para que o Estado pudesse legitimamente impor essa condição seria preciso que ele ofertasse ao jurisdicionado uma eficiente e acessível gama de instrumentos predispostos ao atingimento de soluções não adjudicadas — um verdadeiro sistema “multiportas”. A realidade, contudo, mostra que o Judiciário brasileiro vê a si mesmo, prioritariamente, como agente de soluções adjudicadas. Sem embargo de esforços como aqueles materializados nos centros judiciários de solução de conflitos, os números da litigiosidade em que se busca solução adjudicada mostram que a perspectiva dominante ainda continua a ser esta.

Sem desmerecer o papel que a cultura dos jurisdicionados e de quem os patrocina desempenha na aparente predileção pela solução adjudicada, como, então, criar incentivos racionais ao uso de mecanismos tendentes a soluções consensuais (que não apelando para o discernimento)? Embora a resposta seja difícil, talvez possam ser cogitadas as seguintes ideias:

a) consideração de que a taxa judiciária devida quando do ajuizamento precisa necessariamente fazer a distinção entre atividade preliminar de tentativa de obtenção do consenso, de um lado, e o regular prosseguimento do processo, se for o caso, de outro. Exigir-se do jurisdicionado o pagamento de uma taxa judiciária plena, desde logo, significa um claro desincentivo ao consenso. Portanto, urge — e não é preciso que haja legislação a respeito — que se interprete a lei de forma a que a taxa judiciária só seja efetivamente exigida a partir do momento em que, superada a possibilidade de transação (via conciliação, mediação ou qualquer outra técnica utilizada em momento inicial do procedimento), tenha regular prosseguimento o processo rumo à solução adjudicatória. Não cremos que a sugestão tenha eco, mas ela fica aqui registrada para exame dos homens de boa vontade, verdadeiramente dispostos a incentivar os meios não adjudicados de controvérsias.

b) consideração de que, não havendo efetiva estrutura do Judiciário para tentativa de conciliação (por terceiro, não pelo juiz), sejam as partes estimuladas a recorrer a estruturas privadas, aparelhadas para tanto. São várias as câmaras de conciliação e mediação, muitas das quais muito bem estruturadas e com excelente corpo de profissionais. Dir-se-á que aí está uma indevida privatização da Justiça. A essa objeção se opõe a indagação: e que alternativa melhor o Estado oferece? Se oferecer, muito bem. A realidade da comarca de São Paulo, por exemplo, dá conta de que não se designa audiência de conciliação/mediação sob o argumento de que isso retardará o processo por falta de estrutura pessoal e material do juízo. Então, se não puder oferecer algo melhor, o que o Estado tem a fazer é, diante de uma demanda concretamente proposta, estimular que terceiros intervenham para tentar o consenso. Aliás, está aí mais uma razão para que o Judiciário não exija taxa judiciária por um serviço que ainda não prestou; e que talvez não venha a prestar, quando o processo ainda está no início e há perspectiva de solução consensual. Assim, as partes – mesmo que já proposta a demanda – podem ter um verdadeiro incentivo para buscar o consenso.

c) a consideração, pelas partes e pelos advogados, de que a solução consensual e antecipada (no confronto com a solução adjudicada, que tende a tardar) pode ser economicamente mais vantajosa. Técnicas desenvolvidas pela Análise Econômica do Direito — e tratadas em boa quantidade do obras acadêmicas — podem auxiliar na consideração das melhores estratégias a adotar, sob o prisma econômico. Essa aferição é reconhecidamente complexa porque, para adotar a linguagem da chamada “teoria dos jogos”, é difícil mensurar de forma racional e coerente os payoffs cabíveis aos partícipes, em diferentes cenários. Mas, uma coisa é certa: a decisão de ir a juízo precisa ser também uma decisão econômica. E, sob esse prisma, eventualmente se poderá perceber o desacerto da opção pela busca de solução adjudicada.

Findamos aqui a primeira parte e convidamos o leitor a acompanhar o complemento, que virá nesta terça-feira (21/4).

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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