Direito em Pós-Graduação

Direito Internacional e pandemia: reflexões críticas sobre o porvir

Autor

  • Wagner Menezes

    é professor associado de Direito internacional da Faculdade de Direito da USP fellow professor na University of California-Berkeley Law membro da New York Academy of Sciences e presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional.

20 de abril de 2020, 8h15

O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons que maus e, na verdade, a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é a isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar. A alma do assassino é cega, e não há verdadeira bondade nem belo amor sem toda a clarividência possível.
Albert Camus, A peste (1947)

ConJur
A sociedade humana enfrenta um dos maiores desafios de sua história com a disseminação global da Covid-19. O vírus atinge todos os continentes e povos do mundo, colocando em xeque tradicionais concepções sociológicas e políticas, sistemas econômicos, regimes e teorias, expondo a fragilidade das estruturas nacionais e internacionais.

O cenário atual exige a união de todos, solidariedade, ações multilaterais, decisões corajosas por parte dos líderes para enfrentar a pandemia em escala global, sendo incertos os impactos concretos e seus resultados, não se sabendo quando todo sofrimento terá fim, não obstante, o que vem ocorrendo, a partir de sucessivos equívocos, permite alguns apontamentos críticos sobre o presente e, reflexões necessárias para o futuro da humanidade.

A sociedade internacional amoldada após a Segunda Guerra apostou na prática do multilateralismo e centralização das discussões internacionais em organizações e instituições internacionais, como estratégia para a preservação da paz e do desenvolvimento de relações amistosas entre os povos para o progresso comum da humanidade, ocorrendo, a partir da criação das Nações Unidas (ONU) e de seu modelo institucional, multiplicação de organismos internacionais especializados no debate dos mais variados temas em foros internacionais.

Nos últimos 70 anos, a sociedade internacional conviveu com o paradoxo do globalismo e do localismo, pautado na centralidade dos debates e discussões em foros internacionais, permeada pela debilidade normativa de suas resoluções (quase sempre ignorada pelos Estados), e a resistência oportunista de líderes, principalmente quando interesses pessoais e políticos nacionais conflitavam com manifestações das entidades internacionais. O manto da soberania e do domínio reservado dos Estados sempre acobertando tais irresignações.

Agora, no centro da discussão sobre a expansão pandêmica, a Organização Mundial da Saúde (OMS) centraliza os debates sobre medidas a serem adotadas pelos Estados. No entanto, suas posições titubeantes frente ao risco de pandemia, ao menos inicialmente, quando recebeu a primeira notificação formal chinesa, a tolerância com insensibilidade de diferentes regimes políticos e líderes, bem como a debilidade de representação político institucional e precariedade estrutural, comprometeu adoção de ações objetivas e concretas a serem adotadas pelos Estados no tempo adequado em uma ação concertada. A Organização não cumpriu com o que se esperava dela, tendo a situação fugido do controle em todo o mundo. Ao invés de uma ação orquestrada para combater a disseminação, sem maestro cada Estado tenta se salvar tocando uma serenata solitária. Ainda assim, a OMS ainda mostra sua relevância em um cenário que requer ações globais coordenadas com medidas locais.

Os líderes políticos dos Estados, de todas as partes e matrizes ideológicas, alguns mais preocupados com discursos de poder, envolvidos por questões locais, e em uma aparente autos- suficiência, foram surpreendidos pelos efeitos devastadores de um inimigo invisível, que não compreende discursos, nem considera fronteiras delimitadas e espaços geográficos hegemônicos, nem mesmo poderio militar econômico. Além disso, com requintes de arrogância, ignorância e desprezo, muitos líderes negligenciavam, como prática discursiva e argumento de autoridade, o conhecimento científico. Ignorando recomendações técnicas e profundamente embasadas sobre os riscos sanitários, preferiram se ater a discursos superficiais e messiânicos. A falta de promoção de investimentos necessários em pesquisa, e na estruturação do Estado para enfrentar tais desafios veio cobrar seu custo, como o que se vê concretamente na ausência de instrumentos médicos, kits para testes, e leitos aparelhados para suportar a demanda pandêmica em todo o mundo, além da dependência industrial patética para fabricação de respiradores, máscaras e insumos hospitalares.

A crença cega no individualismo, na mão invisível do mercado, na expansão econômica e do capital privado mostrou-se parcialmente falha, pois restou aos Estados e as organizações internacionais o enfrentamento solitário da crise, enquanto a sociedade civil, amedrontada, muito pouco fez até o presente momento para contribuir com uma mudança do cenário atual. Os grandes conglomerados financeiros que anunciavam seus bilhões em lucros, agora recolhem-se em silêncio ou de forma pouco solidária ignorando estado de exceção atual reclamam seus prejuízos negando-se a suportar responsabilidade sobre a sociedade de quem obtinham os ganhos. Alimentados por um discurso falacioso e inadequado, entre economia e medidas governamentais restritivas, perder vidas e salvar empregos, pressionam governos a relaxar as medidas de isolamento.

Ainda, na ONU, a grande organização mundial, o cenário é ainda mais desalentador, pois onde se esperava uma ação enérgica e determinada sob liderança do secretário-geral para uma tomada de posição coletiva dos Estados, o que se vê é um debate desnecessário, pueril, tolo e superficial, no Conselho de Segurança sobre a nacionalidade do vírus ou a culpa e a responsabilidade por sua expansão, ou ainda captura de equipamento médicos destinados a outros Estados, enquanto medidas efetivas para coletivamente minimizar os efeitos devastadores da propagação do vírus não são tomadas, desenhando-se um cenário assombroso em razão de sua chegada nas regiões mais pobres do planeta e com maiores problemas sociais.

Diante dessa complexa realidade internacional, é preciso tirar algumas lições e desenhar um novo cenário para a humanidade que emergirá no futuro, após a superação da crise. A primeira delas é que a explosão demográfica mundial e a facilidade das inter-relações humanas trazida pela globalização e a ampla circulação de pessoas obriga a pensar uma ética da espécie, que possa permear as discussões globais. Definitivamente somos todos parte de uma comunidade global e devemos ter um mínimo ético para orientar as ações mundiais e de líderes locais que não podem mais agir à revelia da unidade humana; valores comuns que devem estar acima da decisão de Estados e devem ser reproduzidos em textos internacionais como norma imperativa, jus cogens, pautado no respeito à existência da humanidade que deverá conduzir a ação concertada de todos pelo bem comum. Observa-se que hoje isso não é mais utopia, ou projeto de idealismo ingênuo, é uma questão de sobrevivência da espécie humana.

As organizações internacionais, todas elas, devem superar o modelo atual, que já não atende mais as demandas de um mundo profundamente inter-relacionado. É preciso fortalecer institucionalmente e estruturalmente as instituições globais com poder supranacional para determinados temas, mantendo a discricionariedade estatal noutros, de forma objetiva, numa perspectiva de um Direito Internacional multinível composto por regras internacionais, transnacionais, universais, cooperativas e regionais. Deve haver uma pauta comum a ser imposta a todos os Estados especificamente para problemas de caráter global, como epidemias, alimentação, meio ambiente, espaços de uso coletivo como mar, espaço aéreo e sideral, a paz e o desarmamento. Tudo isso pela segurança universal coletiva, sempre apoiado em perspectivas científicas a partir de um diálogo mais profundo dessas instituições com os centros de pesquisa.

É preciso avançar para além da perspectiva de um Estado de “bem-estar”, para um Estado de “responsabilidade social”, superando os abreviamentos políticos e a discricionariedade para definir políticas públicas primordiais, pautado sempre pelo conhecimento científico. O desenvolvimento econômico deve continuar a ser um dos pilares da política pública, mas os Estados precisam comprometer o capital privado e não estar a serviço dele. É preciso inverter a lógica do Estado subserviente ao capital sob a escusa da geração de empregos, ou a falaciosa dependência dos números econômicos. É preciso haver uma contraprestação do setor privado, que crie um ambiente equilibrado entre a exploração do lucro pelo setor privado e a redistribuição obrigatória de renda a todos os povos para emancipação do indivíduo e, estruturação social. Não há justificativa para a expansão do capitalismo com o anúncio de lucros astronômicos para atender investidores, enquanto pessoas vivem sem o mínimo para sobreviver. Não é cabido, no entanto, considerar que a responsabilidade é exclusiva do Estado, a mudança deve partir da corresponsabilidade coletiva da humanidade.

Por fim, a ciência demonstrou seu valor fundamental para a humanidade diante dos desafios da contemporaneidade e da complexidade do mundo que estão a surgir. Apesar dos malgrados cortes e a austeridade de políticas econômicas imposta ao desenvolvimento científico, ainda é este o último bastião para salvar. Reconhecer seu papel é um dos principais passos, para uma profunda mudança da estratégia praticada hoje, especialmente a partir dos Estados, seja no plano nacional ou global, para se priorizar a pesquisa e promover forte investimento em conhecimento e nos processos de aprimoramento a partir da educação para ciência, como estratégia de um reposicionamento dos Estados, das sociedades organizadas e dos povos. O conhecimento científico, nos mais variados campos, deve ocupar lugar central na condução das políticas públicas das diferentes organizações e corporações, nacionais e internacionais especificamente as públicas, e ser corolário da ação dos Estados para o bem comum.

A institucionalização de uma organização internacional para ciência, com independência e autonomia, não só é oportuna mas também necessária, constituída por comitês científicos do mais alto nível de todos os países, como espaço para debater o fomento ao desenvolvimento do conhecimento científico e os avanços nos mais variados campos, onde sejam compartilhados estudos e apresentados análises e projeções de vanguarda sobre os desafios que tocam a humanidade.

Diferentemente do fim da segunda guerra quando estadistas e líderes políticos foram cruciais e fizeram emergir uma nova ordem internacional, atualmente, em meio ao caos instalado, a única esperança para o fim da pandemia está na ciência e, nos cientistas que estão dedicados a encontrar uma cura ou tratamento para o vírus. Enquanto isso, aos povos, cabe a solidariedade e união consciente a partir de ações coordenadas por organismos internacionais, como únicos mecanismos disponíveis para ações coletivas para enfrentamento de um inimigo comum, reconhecendo na verdade científica a bussola para orientar nosso sentido de humanidade.

(*) Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do coronavírus (Covid-19).

Autores

  • Brave

    é professor associado de Direito internacional da Faculdade de Direito da USP, fellow professor na University of California-Berkeley Law, membro da New York Academy of Sciences e presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!