Opinião

O Supremo Tribunal Federal e a odisseia constitucional

Autor

  • Roberto Parahyba de Arruda Pinto

    é ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de SP conselheiro da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo) especialista em advocacia preventiva e judicial e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Salamanca (ESP).

19 de abril de 2020, 12h02

Digno de nota o julgamento realizado por videoconferência pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no dia 17 de abril, em que, por maioria de votos, não referendou a medida cautelar deferida pelo ministro Ricardo Lewandowski no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.363, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade, questionando a juridicidade das disposições constantes da Medida Provisória 936/2020 que autorizam a redução proporcional da jornada e do salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho por meio de acordos individuais em razão da pandemia do coronavírus, por literal afronta ao disposto no artigo 7º, VI, da Constituição Federal: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.

Em que pese o julgamento cingir-se à apreciação de medida cautelar, portanto, proferido em sede de cognição sumária (não exauriente), foram suscitadas questões complexas e de alta indagação jurídica, de filosofia do Direito. Notadamente, se o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal (artigo 102 da Constituição Federal), está investido do poder(-dever) de flexibilizar direito fundamental constitucional para assim melhor conformar a Medida Provisória 936 à realidade fática excepcional que estamos vivenciando, de inédito isolamento social, inusitada paralisação das atividades econômicas e produtivas, como medidas de preservação da vida e da saúde das pessoas.

O ministro Alexandre de Moraes, que abriu a divergência acompanhada pela maioria dos votos de seus pares (Roberto Barroso, Luiz Fux, Carmén Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Dias Toffoli), afirmou que a exigência de atuação do sindicato nos acordos geraria insegurança jurídica e aumentaria o risco de desemprego. De igual modo, o ministro Luis Roberto Barroso realçou que a aplicação literal do dispositivo constitucional conduziria o empregador em optar pela dispensa de seus empregados, exatamente o que a Medida Provisória 936 intenta evitar, garantindo uma renda mínima ao trabalhador.

Nesse sentido, Gilmar Mendes invocou o “Direito Constitucional de crise”, no seio do qual “não se pode negar validade a essa norma (leia-se: MP 936/2020) sob pena de, querendo proteger, matar o doente. E os doentes aqui são muitos”.

Em suma, prevaleceu o entendimento da validade e eficácia dos acordos individuais firmados entre empregadores e empregados, na forma prevista na Medida Provisória 936, sob o fundamento de que no estado de calamidade pública que vivenciamos, causado por força maior, afigura-se juridicamente viável e necessária uma “interpretação constitucional aberta” (Gilmar Mendes), contrária à literalidade do texto e ao conhecido brocardo jurídico: in claris cessat interpretatio.

Essa decisão do Supremo evoca a didática distinção feita por Pedro Serrano entre estado de exceção e legalidade extraordinária. O estado de exceção é expressamente previsto pela Constituição Federal, em seus artigos 136 e 137, consubstanciando-se no estado de defesa e no estado de sítio. Nessa excepcional hipótese — distinta da presente — do estado de exceção, o Poder Executivo é autorizado constitucionalmente a suspender o exercício de garantias fundamentais visando a preservação da ordem pública interna. Enquanto, na legalidade extraordinária, como a que estamos vivenciando, a integridade do Direito permanece inabalada.

Nas palavras de Pedro Serrano: “No plano jurídico, a existência de uma pandemia inscreve-se como uma situação de emergência ou calamidade pública de caráter extraordinário, para a qual a ordem jurídica pode e deve oferecer respostas.” “A exceção, como se sabe, caracteriza-se pela anomia, pela falta de norma, pela ausência de legalidade[1]”.

Contextualizar a questão sub examinem pelo STF nos quadrantes do Estado de Direito é premissa fundamental. O que exige também considerar que o artigo 7º, VI, da Constituição Federal, que prevê a exigência da negociação coletiva para a redução salarial, está topograficamente situado no Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, e este por seu turno inserido no Título II – Dos direitos e garantias fundamentais. Estamos tratando, portanto, de cláusula pétrea, assim entendida como aquela insuscetível de ser modificada ou abolida inclusive por Emenda à Constituição, de conformidade com o artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição.

fenômeno das cláusulas pétreas foi expandido após a 2ª Guerra Mundial, passando a abranger não apenas os aspectos estruturantes do sistema político, como a forma republicana ou federativa, como também os direitos fundamentais, o Estado de Direito e a democracia, buscando impedir a erosão dos princípios e valores básicos da Constituição.

Entre os princípios e valores básicos da Constituição se avulta o do Estado Democrático de Direito (o “alfa e o ômega” da ordem jurídica), que pressupõe a participação popular organizada nos chamados corpos intermediários da sociedade civil, dentre os quais os sindicatos. Tanto o direito fundamental de liberdade de associação, como o da liberdade de atuação sindical estão constitucionalmente assegurados, em especial, a atuação realizada por meio de negociação coletiva, destacando-se a previsão de “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho” (artigo 7º, XXVI, da Constituição).

A demasiada ampliação dos poderes hermenêuticos jurisdicionais, com extensões incontroláveis, a ponto de fazer prevalecer o realismo sobre a letra da norma constitucional, traz o risco latente de substituirmos o voluntarismo do legislador pelo voluntarismo do juiz (o ministro Luiz Fux, por exemplo, desferiu em seu voto ataques às entidades sindicais, revelando todo o seu “ilegítimo preconceito” — Gadamer[2]). Hoje, concordamos com a decisão judicial, coincidente com o nosso posicionamento, mas amanhã, caso discordemos, não poderemos invocar o Direito ou o teor da Constituição Federal como obstáculo ao “livre convencimento”. Nesse sentido, há muito, adverte Lenio Streck:

São mais 30 anos de Constituição, em que dia a dia os predadores — endógenos e exógenos — avançam em direção à cidadela do Direito. Enquanto as democracias europeias se deram conta de que o direito pós-bélico necessitava de um elevado grau de autonomia — afinal, o grande mote foi “Constituição (agora) é norma —, por aqui, o Direito continuou a ser tratado como uma mera racionalidade instrumental. Isso é possível de perceber pelo crescimento vertiginoso das teorias ou posturas empiristas — da qual a mais perigosa é o realismo jurídico, não devendo, todavia, serem desprezadas as posturas que se baseiam em análises econômicas do Direito e as teses que admitem o discricionarismo e pamprincipiologismo.

Daí a necessidade de resistir. Defender a legalidade constitucional — conceito que aprendi há décadas com o grande constitucionalista espanhol Elias Díaz — é um ato revolucionário, a ponto de poder afirmar que o professor de direito constitucional é, hoje, um subversivo, se trabalhar, efetivamente, com a força normativa da Constituição. Esse professor, se estiver acompanhado de outros pesquisadores (quatro ou mais), corre sempre o risco de ser processado pelo crime de obstrução epistêmica da justiça. Parafraseando T. S. Eliot — para quem, em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo —, permito-me dizer que, em um país de voluntaristas e realistas, quem defende a legalidade é taxado de “positivista” — o que não apenas significa ignorância, como também um sintoma dos efeitos deletérios que uma má teoria do direito provocou, e continua provocando, no seio do direito brasileiro.[3]

Exteriorizo essas singelas reflexões que de pronto me assaltaram com o julgamento da medida cautelar na ADI 6.363, mesmo incorrendo no risco de ser acusado do “crime de obstrução epistêmica da justiça”, movido também pelo temor (confesso) desse assustador aumento das restrições de direitos fundamentais irrestringíveis (cláusulas pétreas) pelo próprio Poder Judiciário, em decisões impregnadas de subjetivismo.

Em períodos tempestuosos como o presente os direitos fundamentais assumem ainda maior relevância, razão pela qual devemos fazer essa travessia tal qual Ulisses na Odisseia de Homero, amarrando-nos no mastro da Constituição Federal para que não sucumbamos ao canto mortal das sereias.

[1] SERRANO, Pedro. “Todas as vidas são iguais”. Revista Carta Capital 8 de abril de 2020.

[2] “Assim, não existe seguramente nenhuma compreensão totalmente livre de preconceitos, embora a vontade do nosso conhecimento deva sempre buscar escapar de todos os preconceitos”. “Com isso a questão central de uma hermenêutica verdadeiramente histórica, a questão epistemológica fundamental, pode ser formulada assim: qual é a base que fundamenta a legitimidade de preconceitos? Em que se diferenciam os preconceitos cuja superação representa inquestionável tarefa de toda razão crítica? – GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis. Vozes, 2014.p.361,368 e 631.

[3] Uma ode à jurisdição constitucional – revista de cultura, arte e ideias, Jornal Estado de São Paulo – Estadão 15/04/2020

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