Opinião

Ensaio crítico sobre a gestão de dados no Sistema Único de Saúde

Autor

  • Víctor Minervino Quintiere

    é doutor em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Research Fellow na Universitá degli studi Roma TRE na Itália mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos & Quintiere Advogados professor do programa de pós-graduação em Direito Penal do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) professor convidado do programa de pós-graduação da Escola Baiana de Direito em Direito Penal e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas (Fajs) do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

19 de abril de 2020, 15h06

Em função da pandemia decorrente da Covid-19, que atinge todo o mundo, e, para o presente foco de análise, o Brasil, todos os campos do conhecimento vêm sendo dramaticamente atingidos.

Crises fazem parte da história de todas as sociedades, mas a atual reúne elementos relativos simultaneamente à saúde humana e à economia, tornando ainda mais complexo o seu enfrentamento.

Ante os vários desenhos possíveis, o presente ensaio pretende analisar e, por que não?, propor solução dentro dos sistemas legislativo e político existentes, capaz de auxiliar no enfrentamento  não apenas da pandemia da Covid-19 como no aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde no Brasil.

O presente ensaio está divido em quatro partes: 1) características do sistema norte-americano de saúde; 2) conceito de saúde nos planos internacional e nacional; 3) correlação entre descentralização e o pacto federativo adotado no Brasil; e 4) dataveillance como mecanismo de gestão de dados apto no combate preventivo e repressivo às pandemias.

A primeira parte desse ensaio consiste em traçar as principais características do sistema norte-americano para, ao final, compará-las com o sistema brasileiro.

Trata-se, em síntese, de um sistema de dominância de mercado no qual ocorre o financiamento privado predominantemente, fazendo com que o Estado deixe de ser responsável por oferecer um nível ótimo de saúde (BISPO, 2005).

Em que pese não ser universal, o gasto é de cerca de 14% do PIB, sendo que 44% consiste de gasto público. No que tange a análise numérica, entretanto, 40 milhões de americanos não têm assistência à saúde (BISPO, 2005).

O Estado, portanto, garante assistência limitada através do Medcare e do Medaid aos idosos e à população de baixo nível socioeconômico (IESS, 2007). Os demais membros da população, diante desse cenário, devem procurar adquirir um seguro-saúde.

As principais críticas ao sistema norte-americano de saúde consistem no alto custo, na baixa eficiência e nos problemas relativos à gestão (os quais permitem fraudes, lucros abusivos e práticas pouco eficientes).

Em que pese o sistema norte-americano não possuir um Sistema Único de Saúde, as seguintes semelhanças são apontadas no estudo da IESS, senão vejamos: "Sistema de seguros obrigatórios e planos de saúde; sistema de compra direta de serviços; variação de preço de acordo com a faixa etária; cobertura mínima; monitoramento dos reajustes; vetado o rompimento do contrato pelas seguradoras; incentivo ao uso de medicamentos genéricos".

Finalizados os pontos relativos às características, críticas e semelhanças com o sistema brasileiro de saúde, passemos a análise da segunda parte desse ensaio, que consiste em analisar, no plano legal, o conceito de saúde. No plano internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) [1] define saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades".

No plano nacional, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo196, dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Já o artigo 197 alça à condição de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Encerrando a descrição da saúde no plano constitucional, o artigo 198 disciplina que ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, organizado de acordo com: 1) a descentralização, composta por direção única em cada esfera de governo; 2) o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e 3) a participação da comunidade.

Ainda no plano constitucional, oportuno destacar dois pontos importantes e associados a correlação entre descentralização e o pacto federativo adotado no Brasil: 1) o papel dos gestores locais do SUS e dos agentes comunitários; e 2) a possibilidade de participação da iniciativa privada na assistência à saúde.

Sobre o primeiro ponto, o § 4º do artigo 198 dispõe que os gestores locais do SUS poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.

Já o artigo 199 da Constituição Federal Brasileira de 1988 destaca que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. A leitura completa do referido dispositivo nos permite concluir algumas diretrizes.

A primeira delas consiste na perspectiva de que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do SUS, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

O segundo ponto diz respeito à vedação da destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

A terceira diretriz consiste na afirmativa de que é vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país, salvo nos casos previstos em lei.

O quarto ponto relativo ao artigo 199 que merece destaque diz que a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

No plano infraconstitucional brasileiro, a saúde está prevista no artigo 2 da Lei n. 8.080, de 1990, responsável por instituir o Sistema Único de Saúde (SUS), sendo considerado "um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício".

Nesse sentido, o referido dispositivo destaca que é dever do Estado garantir a saúde mediante a formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, consistindo, ainda, dever do Estado a não exclusão das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

O artigo 15 da referida lei, dentro da correlação entre descentralização e o pacto federativo adotada no Brasil, dispõe como atribuição comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios exercer, em seu âmbito administrativo, entre outras atribuições, a organização e coordenação do sistema de informação de saúde.

Nas disposições finais e transitórias do artigo 39, § 8º, da Lei n. 8.080, de 1990, consta, em relação à correlação possível entre o Sistema Único de Saúde e a tecnologia, que o acesso aos serviços de informática e bases de dados mantidos pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social será assegurado às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde ou órgãos congêneres, como suporte ao processo de gestão, de forma a permitir a gerencia informatizada das contas e a disseminação de estatísticas sanitárias e epidemiológicas médico-hospitalares.

Em relação ao quarto ponto do presente ensaio crítico, consistente no exame do dataveillance como mecanismo de gestão de dados apto no combate preventivo e repressivo às pandemia, o interesse pela correlação entre o Sistema Único de Saúde e a tecnologia surgiu da análise da fala do atual presidente da Agência Brasileira para o Desenvolvimento da Indústria no Brasil (ABDI) [2], em seminário internacional sobre a Covid-19, momento no qual mencionou que uma das soluções consistiria em encontrar soluções para prevenção, rastreamento e monitoramento das pessoas nas comunidades mais pobres.

No dia 15 de março, em virtude do aumento do fluxo de acesso à internet derivado do isolamento social próprio da pandemia, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) determinou às operadoras de telefonia e internet medidas a serem implementadas para ampliar e aumentar a velocidade de acesso da população nesse período de crise [3].

Sobre o acesso da população brasileira à internet, exemplificativamente, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio de 2017 (PNAD), realizada pelo IBGE [4], apontaram que o percentual de domicílios que utilizavam a internet subiu de 69,3% para 74,9% de 2016 para 2017, representando uma alta de 5,6 pontos percentuais. Além disso, a presença do celular aumentou, passando de 92,6% para 93,2% dos domicílios.

Diante de um simples passar de olhos nos números, é possível concluir preliminarmente que a internet é utilizada na maioria dos domicílios do país servindo, portanto, como um possível meio de monitoramento e vigilância, nesse caso, sobre a expansão da Covid-19 no Brasil.

 No estudo da vigilância propriamente dita, palavra intimamente ligada à proteção de dados e ao fenômeno do dataveillance, as análises de Jeremy Bentham (1843) e Michel Foucault (1999) serviram de modelo inicial.

O surveillance e sua relação com a sociedade, em especial, diante de sua utilização como instrumento de gestão de dados da saúde pode servir como opção para todos os gestores do SUS.

O surgimento de novas tecnologias e as conseqüências quanto ao armazenamento e ao processamento de dados serviu de mola propulsora para o aumento exponencial de estudos tanto sobre metadados como sobre a surveillance.

Dentro do estudo sobre vigilância, o modelo da surveillance assemblages, proposto por Richard Ericson e Kevin Haggerty (2000), dá ênfase aos fluxos discretos de dados, ou seja, "ao aspecto do surveillance que se convencionou chamar de dataveillance" (NETO, MORAIS e BEZERRA, 2017).

No tocante ao dataveillance, após desenvolver os conceitos de dataveillance racial, econômico-penal para Víctor Minervino Quintiere, dataveillance eleitoral consiste em um mecanismo de coleta de metadados destinado a finalidade eleitoral, tornando possível, a partir dessa coleta, a respectiva vigilância de eleitores e utilização aptas a ensejar manipulação e profundas alterações no cenário das eleições pré-existente.

Sobre o SUS, a partir da vigilância de metadados dos indivíduos será possível monitorar não apenas a expansão atual da Covid-19, mas, e principalmente, evitar ainda mais o alastramento, servindo para não sobrecarregar ainda mais os leitos, mecanismo que diminuiria certamente os custos relativos, por exemplo, com respiradores e outros utensílios essenciais ao combate da doença.

A influência que a manipulação de metadados pode gerar na vida das pessoas, em especial nos processos eleitorais, é facilmente percebida, exemplificativamente, no documentário "Privacidade Hackeada", da Netflix, que retrata o caso Cambridge Analytica.

Nesse ponto, importante destacar caso concreto que serve como verdadeiro exemplo de dataveillance. Tratou-se da descoberta de vazamentos de dados do Facebook a uma companhia, a Cambridge Analytica, responsável, entre outros casos, pela eleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Nesse contexto, a gigante da tecnologia Facebook compartilhava tanto dados quanto, principalmente, metadados privados por meio de acordos ocultos com outras companhias, possibilitando, através do monitoramento contínuo das redes, identificar dois grupos de indivíduos: um primeiro que possuía tendências claras de voto e um segundo composto por pessoas indecisas.

Diante da identificação dos grupos, o trabalho era dividido em duas frentes: em relação ao grupo de indecisos, as plataformas eleitorais trabalhavam com mensagens, dados e metadados que auxiliassem as pessoas a decidirem por votar no candidato(a) que teria contratado a empresa responsável pelo dataveillance eleitoral.

Já em relação ao grupo de pessoas com tendências claras de voto, por exemplo, no candidato da oposição, a empresa prestadora de serviços relativos ao dataveillance eleitoral fornecia por meio de mensagens, vídeos, dados e metadados informações que, ao mesmo tempo, tinham por objetivo desconstruir a visão positiva em relação ao candidato que seria o destinatário originário do voto, bem como o de construir uma nova visão (positiva) no tocante ao candidato que teria contratado os serviços de dataveillance eleitoral.

Para o plano de utilização do dataveillance na área da saúde, o monitoramento dos metadados dos indivíduos possibilitará, em menor tempo, de forma relativamente barata e de maneira mais eficiente, a atuação cooperada entre União, estados, Distrito Federal e municípios.

Sugere-se a implementação paulatina, focando-se inicialmente nos chamados grupos de risco, ou seja, que o monitoramento dos metadados ocorra em relação a idosos e pessoas de qualquer idade que tenham condições médicas pré-existentes, pessoas privadas de liberdade, mulheres, povos indígenas, pessoas em movimento humanos, meninas, meninos e adolescentes, pessoas LGBTI, pessoas de ascendência africana, pessoas com deficiência, trabalhadores e pessoas que vivem na pobreza e extrema pobreza, especialmente trabalhadores informais e pessoas sem-teto; bem como no defensores de direitos humanos, líderes sociais, profissionais de saúde e jornalistas, grupos de risco descritos no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos [5].

Portanto, retomando aos pontos que serviram de base para o presente ensaio, foram apontadas as características do sistema norte-americano de saúde, criticas e semelhanças com o sistema brasileiro, sendo possível concluir, após o exame detalhado do SUS brasileiro, que a realidade vivenciada por nós é, em aspectos de logística e difusão da saúde, melhor do que o proposto pelo sistema norte-americano.

Além disso, foram vistos os conceitos de saúde nos planos internacional e nacional, tendo sido feita, na terceira parte do ensaio, a correlação entre descentralização e o pacto federativo adotado no Brasil.

Por fim, foi analisado o conceito de dataveillance como mecanismo de gestão de metadados apto no combate preventivo e repressivo às pandemias o que, além de poder ser usado no Brasil para o combate à pandemia da Covid-19, deverá ser implementado paulatinamente, a partir da incidência do monitoramento nos chamados grupos de risco.

Referências bibliográficas
Bispo JP, Messias KLM. Sistemas de Serviços de saúde: principais tipologias e suas relações com o sistema de saúde Brasileiro. Rev Saúde Com 2005; 1(1):79-89.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 11.abril.2020.

BRASIL. Lei n. 8.080, de 1990. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 11.abril.2020.

Conceito de saúde para a OMS. Disponivel em:< https://www.almg.gov.br/export/sites/default/acompanhe/eventos/hotsites/2016/encontro_internacional_saude/documentos/textos_referencia/00_palavra_dos_organizadores.pdf>. Acesso em: 11.abril.2020.

IESS. A Reforma da Saúde Norte-americana. Saúde Suplementar em Foco – Informativo Eletrônico. Ano 1, n. 02. São Paulo, 5 de abril de 2010.

Mendes EV. Revisão bibliográfica sobre Redes de Atenção à Saúde. Belo Horizonte: [s.n]; 2007. Ney C. Sistema de saúde americano: Ruim e difícil de ser modificado. Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). Dez, 2009.

Relatório Pandemia e Direitos Humanos nas Américas. Disponível em:< file:///C:/Users/Victor%20Quintiere/Downloads/Resolucion%20-%20Pandemia%20y%20Derechos%20Humanos%2001_20.pdf.pdf.pdf.pdf.pdf>. Acesso em: 11.abril.2020.

 


[1] Conceito de saúde para a OMS. Disponivel em:< https://www.almg.gov.br/export/sites/default/acompanhe/eventos/hotsites/2016/encontro_internacional_saude/documentos/textos_referencia/00_palavra_dos_organizadores.pdf>. Acesso em: 11.abril.2020.

[2] Disponível em:< https://www.abdi.com.br/postagem/conectados-contra-a-covid-19>. Acesso em: 11.abril.2020.

[3] Fato público e notório divulgado em vários meios de informação. Vide, por exemplo, o seguinte link: Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/03/internet-pode-sofrer-lentidao-com-aumento-de-acessos-na-quarentena/>. Acesso em: 11.abril.2020.

[4] Disponível em:< https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23445-pnad-continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais>. Acesso em: 11.abril.2020.

[5] Relatório Pandemia e Direitos Humanos nas Américas. Disponível em:< file:///C:/Users/Victor%20Quintiere/Downloads/Resolucion%20-%20Pandemia%20y%20Derechos%20Humanos%2001_20.pdf.pdf.pdf.pdf.pdf>. Acesso em: 11.abril.2020.

Autores

  • é sócio do escritório Bruno Espineira Lemos & Quintiere Advogados, professor no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e vice-presidente da Comissão de Acompanhamento das Reformas Criminais da OAB-DF.

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